ESTADO DE GREVE

Paralisação de servidores federais e resistência ao PL da Uber colocam governo Lula à prova

País passa por momento de 'resgate da luta sindical', afirma Valério Arcary

Ouça o áudio:

Distribuição justa e honesta da renda sanaria muitos dos problemas econômicos do país - Reprodução
O Brasil caminha nos ombros da classe trabalhadora

Desde o início do ano, o governo Lula enfrenta greves em vários setores e categorias do funcionalismo público, entre elas servidores do Ibama e da educação federal. Motoristas de aplicativos também vêm demonstrando seu descontentamento em relação ao projeto de lei (PL) que o governo apresentou para regulamentar esse tipo de trabalho.

O episódio desta sexta-feira (5) do podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato, discute os movimentos de luta para melhoria das condições dos trabalhadores do país. O programa contou com a participação do comentarista convidado Valério Arcary, professor universitário e historiador, e de Marcos Verlaine, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

Nas universidades federais, há servidores técnicos administrativos (TAEs) em greve desde 11 de março. Nos últimos dias, o movimento ganhou adesão de professores e funcionários técnico administrativos dos Institutos Federais, que reivindicam uma recomposição salarial que varia de 22,71% a 34,32%. Esses trabalhadores somam cerca de 400 mil pessoas, o que representa cerca de um terço dos servidores federais do país. 

Antes dos servidores da educação, em janeiro, mais de 1,7 mil funcionários do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis)  anunciaram a suspensão das atividades de fiscalização ambiental. Dias depois, mais de 600 funcionários do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) aderiram à paralisação.

Para Arcary, há uma campanha consciente de desqualificação do funcionalismo público. "O Ibama tem importância estratégica diante do que é a tragédia da expansão da fronteira agrícola na Amazônia. Quando nós pensamos no ICMBio, estamos falando da defesa da biodiversidade, mas quando nós falamos das universidades federais, [...] estamos falando de centenas de milhares, entre professores e técnicos administrativos, que são vitais."

De acordo com Marcos Verlaine, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), "em função da eleição, Bolsonaro jogou muito dinheiro na sociedade, esparramou o dinheiro [...] Já era esperado para esse ano, com um governo mais organizado, com orçamento mais bem estruturado, haver um certo arrocho."

Ele se refere às decisões do ex-presidente de aumentar o fluxo de verbas públicas na economia para buscar um melhor desempenho eleitoral, como a queda forçada do preço dos combustíveis. Segundo Verlaine, as limitações de verba pública sofrem um efeito "bola de neve" ano após ano, ainda mais precedido de um mandato desordenado, como o de Bolsonaro. 

Deste modo, o professor reforça que "nós podemos muito pouco com esse orçamento". "Quase metade do orçamento é para pagar os juros, serviços, e a rolagem da dívida pública [...] sobra muito pouco para todo o resto que é necessário para dar algum tipo de equilíbrio para a sociedade brasileira."

Arcary observa que essa demanda dos trabalhadores, especialmente os da educação, interessa à extrema direita, grupo que ataca com frequência os professores e a ideia de uma educação libertária. "Não vai ter nenhuma revolução [educacional] porque ninguém vai querer ser professor. Quem é que estuda 24 anos para ganhar três salários mínimos?", questiona.

Ele argumenta que uma distribuição justa e honesta da renda sanaria muitos dos problemas econômicos do país, que abriga 62 bilionários. "O mundo não precisa de bilionários. [...] é uma extravagância, é uma anomalia a existência de bilionários", acredita o historiador.

Para ele, acreditar que a política econômica de direita pode favorecer o mandato de Lula, principalmente no campo econômico, é tão plausível quanto "tentar transformar lobos em vegetarianos". "Lobos nunca vão ser vegetarianos, é uma ilusão! E depois você chama os lobos para junto com você, proteger o galinheiro. Lobos não protegem os galinheiros. Lobos querem devorar galinhas, é da sua natureza", diz Arcary.

Para ele, a tentativa de aproximação entre partidos progressistas e conservadores com o objetivo de combater o neofascismo do governo passado e seus impactos na economia brasileira pode ser devastadora. "Essa foi a política da social-democracia da Alemanha nos anos vinte do século passado. Como dizem os jovens, 'deu ruim', veio Hitler, não deu certo", afirma. 

PL do Uber desagrada trabalhadores

Desde a chegada da Uber no Brasil, em 2014, o cenário do transporte por aplicativos tem se expandido rapidamente, trazendo consigo uma série de questões sociais e econômicas que precisam receber atenção.

Na esteira desse quadro, o governo tenta emplacar no Congresso o PLP (Projeto de Lei Complementar) 12/24, que visa regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativo, uma resposta às demandas crescentes por proteção e direitos trabalhistas nessa área. 

Apesar do claro desbalanceamento a favor das empresas presente na proposta, para Valério o quadro dessa nova categoria de trabalhadores é delicado, visto que "o governo tentou com a regulamentação estabelecer regras mínimas, obrigando as plataformas a contribuir para a previdência e obrigando as plataformas a negociações coletivas. Foi a única coisa que o governo conseguiu", acredita.

A proposta não agradou os trabalhadores. Segundo o analista político do Diap, é comum que motoristas não se vejam como trabalhadores, mas como empreendedores. "Veja o que o neoliberalismo fez: pegou uma categoria de gente que ganha pouco e trabalha muito, e eles pensam que são empresários deles mesmos. Isso é uma maluquice [...] se eles ficarem parados 15 dias, terão problemas", argumenta.

Neste contexto, Verlaine assegura que "esse trabalho não é mais bico, é um trabalho como outro qualquer. Tem gente fazendo bico? Tem! Mas a maioria está sobrevivendo com isso". Ele reforça que o projeto de regulamentação por parte do governo, mesmo que tenha tentado favorecer os motoristas, tem "a cara das plataformas".

As greves em um Brasil que vive nos ombros dos trabalhadores

Uma das razões de ser dos movimentos sindicalistas é afirmar a importância e a relevância que a classe trabalhadora exerce no cenário econômico, como destaca o Valério Arcary. 

"Depois dos dois anos do mandato tampão de [Michel] Temer, e dos quatro anos trágicos do mandato do Bolsonaro, [...] eu vejo isso [o movimento grevista] de maneira muito tranquila e positiva. Acho inclusive que o governo [Lula] tem mais disposição de negociação, [...] é um momento de resgate da luta sindical brasileira", afirma.

Para ele, "se os trabalhadores param, nada funciona [...] Se pararem os petroleiros, em dez dias o Brasil para mesmo, não funciona. O Brasil caminha nos ombros da classe trabalhadora".

As greves existem como instrumento de reivindicação não só direitos já pré-estabelecidos, mas também melhorias, reformas, reajustes nos modelos de trabalho e suas garantias empregatícias. Entretanto, reforça Arcary, a extrema direita demoniza e repudia o movimento de greve, paralisação e protesto, visando rachar a classe. Ele destaca que o capitalismo anseia "dividir a classe trabalhadora e lançar os muito pobres contra os remediados".

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos da semana e a conjuntura política do país.

Edição: Thalita Pires