Pernambuco

Política Pública

Lei de Convivência com o Semiárido é regulamentada na Bahia

Em 2013, o estado de Pernambuco aprovou uma Lei estadual de Convivência com o Semiárido, porém não foi regulamentada

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Mobilizações por políticas para o Semiárido marcam a trajetória da ASA
Mobilizações por políticas para o Semiárido marcam a trajetória da ASA - ASA

Se a infância e a adolescência da agricultora Leonice Rocha da Silva, de 55 anos, foi marcada pela tarefa diária de carregar lata d’água na cabeça, hoje muitas mulheres de comunidades rurais do Semiárido não sabem o que isso significa. Isso graças à iniciativa de organizações da sociedade civil que apostaram na proposta da Convivência com o Semiárido, um paradigma que se contrapõe à lógica do Combate à Seca, materializada pelos governos ao longo da história do Brasil.

Em contraponto à eleitoreira “Indústria da Seca”, sustentadora de uma politicagem desmedida no Nordeste e no país, no Semiárido brasileiro, há aproximadamente 20 anos, uma série de ações começou a impulsionar formas de produção apropriadas às características climáticas e socioculturais, valorizando os saberes tradicionais e buscando pautar direitos como acesso à água, à terra, educação contextualizada, segurança alimentar e nutricional. “Foi uma coisa que trouxe para as famílias conhecimento e libertação, uma melhoria muito grande pra que elas permaneçam no sertão”, testemunha Leonice Rocha, da comunidade de Recando, região do Salitre, área rural do município de Juazeiro (BA).

Leonice se refere aos diversos projetos, ações locais, estaduais e até em nível federal que passaram a compor Programas governamentais a partir da proposição da Articulação do Semiárido brasileiro (ASA), entidade que reúne hoje mais de três mil organizações em defesa da Convivência com o Semiárido. A ASA busca influenciar a construção de políticas que assegurem um conjunto de elementos que garanta qualidade de vida em todo Semiárido, seja no campo ou na cidade. Isso passa essencialmente pela necessidade de compreender o ciclo da chuva e armazenar a água que cai, adotar modelos de produção viáveis e sustentáveis, vivenciar uma educação libertadora, lutar pela democratização da terra e dos meios de comunicação, valorizar a cultura popular e conservar os bens naturais.

Após 18 anos de criada, hoje a organização celebra uma importante conquista no estado da Bahia: a Lei nº 13.572/2016, a Lei da Convivência com o Semiárido. “Uma lei que saiu da prática, da vida, do dia a dia dos agricultores”, ressalta Naidson Batista, coordenador da ASA na Bahia. A agricultora Leonice defende que é preciso a continuidade de todas as ações propostas pela Articulação do Semiárido e avalia que “a situação do país hoje é ruim porque a gente tem um governo que não valoriza a população pobre do Semiárido e o governo do estado está dando um passinho à frente do país”. O estudante e caprinocultor Thiago Rocha, da comunidade Fundo de Pasto de Melancia, no município de Casa Nova, reforça: “no momento em que vários programas sociais, inclusive que hoje fazem parte da nossa renda, estão sendo desmontados pelo governo ilegítimo, essa Lei estadual vem para fortalecer e contribuir com algumas iniciativas que infelizmente não tem continuidade”.

A Lei, cujo decreto de regulamentação foi assinado pelo governador Rui Costa (PT) em setembro passado, reconhece a riqueza de bens naturais e culturais que o Semiárido possui e aponta o uso sustentável dos mesmos, pautando o acesso democrático à terra, água, educação contextualizada a região, incentivo à produção agropecuária familiar, sem deixar de lado a valorização do meio ambiente e qualidade de vida da população do semiárido.

De acordo com Naidson Batista, nos últimos 10 anos os governos baianos têm apostado em diversos programas e projetos voltados para a Convivência com o Semiárido, atendendo inclusive demandas pautadas pelos movimentos sociais e entidades que defendem e vivenciam a proposta de Convivência. Contudo, até então se tratava apenas de uma política de governos e não de Estado. Ao fazer essa diferenciação, Naidson apresenta como exemplo o cenário político atual onde o governo federal tem feito cortes de mais 90% em programas que garantem a implementação de tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva e também assessoria técnica e extensão rural, algo que seria mais fácil questionar se o Brasil já tivesse uma Lei Nacional de Convivência com esta região.

Próximos passos

O decreto assinado por Rui Costa trata também da composição do Fórum Estadual de Convivência com o Semiárido, colegiado paritário que será composto por pelas secretarias de Estado, conselhos e colegiados territoriais, instituições de ensino superior e organizações da sociedade civil; do Comitê Governamental de Convivência com o Semiárido e o Sistema de Informações, Monitoramento e Avaliação, além de especificar aspectos referentes à regularização fundiária.

Conforme o secretário de Desenvolvimento Rural da Bahia, Jerônimo Rodrigues, o momento agora é de adequação do plano de trabalho e capacitação de um conselho pra gerenciar as ações. Ele destaca que da mesma forma que a construção da lei contou com contribuições de diversos segmentos da sociedade, assim também se dará a execução da mesma no atual governo. Porém, com relação à rubricas específicas, espera-se que sejam definidas no próximo Plano Pluri Anual (PPA) cuja elaboração deve ser em 2020, até lá será feita repescagem de recursos, informou o secretário.

Jerônimo Rodrigues menciona projetos como o Pró-Semiárido que, segundo ele, já é base para algumas ações que a lei propõe e reforça: “o desejo nosso é esse, pra dentro do Estado o passo seguinte é realizar as ações que estão planejadas”. O secretário sinaliza ainda o interesse do governo da Bahia dialogar com outros estados para incentivar a criação da lei, bem como instigar os municípios baianos a elaborarem leis municipais.

Na opinião da ASA, o desafio agora é “fazer a lei sair do papel e entrar na prática de cada dia. Se nós conseguirmos isso, estaremos efetivamente mudando a vida de muita gente”, aponta Naidson. Além disso, o debate acerca da Convivência com o Semiárido precisa agregar mais elementos dos contextos urbanos e problematizar ainda mais aspectos como a relação entre geração de renda e sustentabilidade. Essas reflexões tem sido feita inclusive por alguns pesquisadores que tem se dedicado a estudar a temática, que hoje já ocupa um espaço considerável no ambiente acadêmico, incluindo a oferta de diversos cursos de graduação e pós-graduação em Universidades Estaduais e Federais.

Semiárido Vivo

A Bahia é o segundo estado a elaborar uma política específica voltada para esta temática e o primeiro a regulamentá-la. Em 2013, o estado de Pernambuco aprovou uma Lei estadual de Convivência com o Semiárido, porém até então não foi regulamentada. A existência dessa Lei hoje na Bahia reafirma uma mudança de compreensão acerca da região e é um instrumento legal para reivindicar, independente do governo, dotações orçamentárias para investir em ações de Convivência com o Semiárido. “Antigamente, se falava em combate à seca, mas essa é uma expressão equivocada porque não podemos combater o clima. O que podemos fazer é criar meios de convivência com o meio ambiente”, ressaltou o governador Rui Costa durante Ato de assinatura do decreto no município de Jacobina.

Porém, muitas vezes as reais potencialidades não são enxergadas, como alerta o jovem Thiago da Rocha ao citar que a renda de muitas famílias é garantida por atividades que ainda carecem de investimentos por parte dos governos, a partir da lógica da agricultura familiar. “No meu caso sou jovem, não tenho interesse de parar de criar bode pra criar gado ou outro animal qualquer, porque entendo que a criação de caprinos é viável em qualquer época do ano, acho que é uma atividade que não precisa só de investimentos, mas de ser vista com mais cuidado”, afirma o jovem de 21 anos, que é estudante de Escola Família Agrícola e tem apostado especialmente na comercialização e beneficiamento do leite de cabra.

“Essa é a minha forma de pensar e viver no campo, acho que a gente tem que fortalecer o que já tem. Eu costumo dizer que a gente aqui no Semiárido, a gente não mora, a gente vive, a gente tem as nossas raízes e continua escrevendo a nossa história”, conclui Thiago.

*Érica Daiane Costa é comunicadora do IRPAA.

Edição: Monyse Ravenna