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Sapatos de pano garantem estilo e conforto nas ruas do Recife

Entre altos e baixos, a Dipano mantém qualidade e originalidade há 35 anos

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Dona Cacilda e sua filha Alice, que participam de todo o processo de produção e venda dos sapatos
Dona Cacilda e sua filha Alice, que participam de todo o processo de produção e venda dos sapatos - Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

Hoje o conforto para os pés já é preocupação frequente e slogan para muitas marcas na indústria de calçados. Mas há 35 anos o cenário era outro, o que trazia dificuldades e incômodos no dia a dia de muita gente. Uma das que não se dava bem com os calçados era Cacilda Capozzoli. Ela até tinha um tio que fabricava sapatos, mas os calçados não atendiam aos desejos dos pés da jovem. Até que um dia ela decidiu que faria seus próprios calçados.

Era início dos anos 1980 e ela, com seus 30 anos, começou a montar e costurar suas próprias sandálias, usando os pés como forma. No local de trabalho algumas pessoas gostaram do estilo e começaram a pedir. "Eu não tinha forma, então levava uma lata de cola para passar nos pés das pessoas e fazer a forma", lembra Cacilda, hoje com 65 anos, mais da metade se dedicados aos calçados confortáveis e de pano, que são a sua identidade.

O sucesso das sandálias levou ela a testar o mercado. Começou a levar os calçados para bares "alternativos" como o antigo O Circo, em Olinda, por onde circulavam muitos intelectuais e artistas e a partir do qual fizeram muitos contatos. Além disso ela trabalhava em órgão ligado ao Sebrae, então tinha proximidade com pessoas que atuavam no auxílio aos microempresários.

Após seis meses de produção em casa, com crescente demanda, ela entendeu que fazer os calçados é o que ela queria para os anos que viriam: pediu demissão. "Comecei a ganhar bastante dinheiro. Já havia revendedor da Universidade Católica, a minha sócia e companheira, Valéria, levava para vender nas repartições públicas. E aí contratamos o primeiro funcionário para trabalhar conosco, um sapateiro". E compraram uma motocicleta, que usavam para viajar para João Pessoa (PB) e Maceió (AL) transportando os calçados.

A demanda pelos sapatos de pano só crescia e em 1986 a dupla resolveu viajar de carro para espalhar os sapatos pelo Brasil. "Fomos a cidades onde tínhamos amigos, que nos apresentaram a mais gente - sempre com um perfil mais 'alternativo' -, que gostaram dos nossos sapatos", lembra a empresária. Os sapatos e sapatilhas da Dipano estavam nos pés dos roqueiros de Belo Horizonte, nos shows de Legião Urbana em Brasília e foram abrindo espaços.

De volta ao Recife, começaram a vender na Casa da Cultura. "Foi uma explosão. Tudo muito intenso, rápido. Começamos em 1983 e em 1986 já tinha firma legalizada", resgata Cacilda. Até aquele ano a equipe produzia em torno de 100 pares de calçados por mês. Dois anos depois já produziam 300 pares por dia, 1.200 por mês. "Cheguei a ter 30 funcionários, todos com carteira assinada", lembra, com orgulho. Os jornais traziam anúncios da Dipano: "os pés também amam".

Em meio ao crescimento do trabalho, um abalo: sua sócia e esposa decide sair de cena. "Estávamos no pique todo, na maior produção. E ela disse que fazer sapato não era a praia dela. Disse que queria trabalhar com massagem", afirma, ainda com um pouco de perplexidade. "Eu tinha pedido demissão, meu pai acabara de falecer, eu estava vivendo dos sapatos e de repente teria que assumir aquilo tudo sozinha. Foi um corte profundo", lembra Cacilda, lembrando, já entre risos, detalhes da separação.

No final dos anos 1980 já era bastante comum ver artistas locais usando as sapatilhas. Alguns artistas de outros estados, quando chegavam ao Recife, mandavam alguém ir até Cacilda buscar mais sapatos. "Mas como eu nunca gostei do glamour, acabei por não me interessar por usar isso a nosso favor. Nunca me apeguei ao marketing. Sempre preferi a produção", diz. Durante anos ela fornecia regularmente as sapatilhas do Balé Popular do Recife.

Collor e Alice
A eleição de Fernando Collor de Melo para a Presidência da República, em 1989, guardava uma desagradável surpresa para Cacilda. O confisco das poupanças, no início de 1990, quase acabaria com sua empresa. "Levamos uma grande rasteira. Ele tirou o dinheiro de todo mundo. Quem era esperto deu jeito: usou o dinheiro que estava 'preso' para comprar apartamento. Eu, ingenuamente, pensei: 'já ganhei muito dinheiro, se o Brasil está precisando, vou ajudar'. Comprei nada", lembra, ainda com revolta.

A Dipano já não conseguia pagar seus funcionários, mas não demitiu ninguém. Cacilda começou a vender por preços baixíssimos o que tinha em casa para pagar os trabalhadores. "Foi uma loucura. Antes estávamos produzindo centenas por dia e de repente começamos a produzir só 20 - e mesmo assim não conseguíamos vender", recorda. Nesse período Collor ainda abriu mais o mercado para importações e começaram a chegar sapatilhas chinesas. "O custo da nossa produção era alto. Se eu vendesse a sapatilha só pelo custo da produção, sem nenhum lucro, ela já ficava mais cara que as chinesas", garante.

No início dos anos 1990, em meio a todas as dificuldades, uma grande alegria: ela adotou Alice, sua filha. E isso ajudou mudar o centro de sua vida, até então voltada ao trabalho. Mas ainda assim o período difícil se prolongou por mais de 10 anos, com anos de depressão profunda. "Foi uma barra. A fábrica praticamente fechou e fiquei com muitas dívidas", recorda.

Novo fôlego, apesar do fogo
Um ponto importante da virada de página foi a visita de um amigo, Doutor Leon. "Ele veio aqui, me chamou na porta e eu disse que a fábrica fechou. E ele respondeu: 'Dona Cacilda, por favor. Eu não consigo mais andar. Preciso dos seus sapatos'", lembra. Ele encomendou quatro pares e se comprometeu a levar mais amigos para comprar sapatos. "Eu sabia fazer todas as etapas. Então eu mesma cortei, costurei, montei e solei", lembra, visivelmente emocionada.

Entre 2000 e 2016 Cacilda manteve uma banca de vendas na Feirinha do Bom Jesus, no centro do Recife. E ainda no início dos anos 2000, um grande susto. Um curto-circuito num rádio, de madrugada, colocou fogo em quase toda a fábrica. "Óleo, borracha, espuma, tudo é combustível para o fogo. Perdemos quase tudo", recorda Alice Capozzoli, hoje com 28 anos. "Mas fizemos um bingo solidário para arrecadar dinheiro e reconstruir a fábrica e deu super certo", diz, orgulhosa da mãe que classifica como "guerreira".

O ritmo de produção ainda seguiu bem baixo até 2012, quando mais pessoas passaram a procurá-la para revender. Desde então melhorou um pouco, mas a Dipano ainda continua em "baixa rotação". Atualmente a empresa mantém três funcionários, que ela diz com orgulho que têm carteira assinada e recebem todos os encargos. A fábrica funciona dentro da casa de Cacilda, no bairro do Prado.

Durante a entrevista uma cliente chega à casa, trazendo um pedido de encomenda feito por Lia de Itamaracá. É a estilista Jane Travassos, moradora do Recife há menos de dois anos, mas cliente da Dipano há 20 anos. "Minha família é do Recife e eu sempre comprava quando passava por Pernambuco". Durante um tempo levava os sapatos para revender no Rio de Janeiro. "O único prejuízo é que eles são tão confortáveis que a pessoa não quer mais usar outros", brinca.

Alice, que convive entre os sapatos desde criança, começou com a tarefa de embalar os calçados, mas até hoje não sabe costurar. "Preciso aprender e quero começar pelos retalhos, que só a minha mãe faz e que gosto muito. Mais recentemente, em 2017, resolveu experimentar. "Comecei a fazer pinturas a mão nos calçados. Gosto da imagem de Frida e também me inspiro em estamparias africanas", conta. Ela pensa continuar o trabalho iniciado pela mãe. "É algo artesanal e de muita qualidade, feito com amor. Mais pretendo colocar minha identidade nos sapatos", informa.

Os sapatos de pano são vendidos para a Paraíba, Bahia, Ceará, Acre, Brasília, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Cacilda conta que é raro, mas às vezes entram em contato se queixando do solado ou da fivela, que ela destaca não serem produzidos por ela. "Mas se está no sapato eu me responsabilizo. Podem enviar o sapato ou trazer, que eu conserto. Ou levem ao conserto que eu cubro os custos", promete. "E é por isso que estou no mercado até hoje: eu tenho cuidado com o cliente e faço sapatos de qualidade", garante.

Edição: Monyse Ravenna