Ameaça

Mudança na TV Brasil pode tornar emissora um meio de propaganda do governo Bolsonaro

Para estudiosas da área da comunicação, emissora perde seu caráter público e assiste a um processo de militarização

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Empresa foi fundada em 2007, por meio de decredo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Empresa foi fundada em 2007, por meio de decredo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - Divulgação

O governo de Jair Bolsonaro (PSL) completou 100 dias com mais uma medida que entra em conflito os interesses da sociedade civil. Desta vez, o objeto da polêmica é a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Alexandre Henrique Graziani, presidente da empresa, fundiu a TV Brasil, emissora pública, com a NBR, TV Nacional do Brasil, canal de televisão do governo federal. A ação se deu por meio da portaria 216 e entrou em vigor nesta quarta-feira (10).

Os telespectadores que sintonizarem na TV Brasil já podem notar as mudanças. Na quarta, foi ao ar o primeiro Repórter Brasil desde a fusão dos canais. O programa é o principal telejornal da emissora desde a sua fundação.

A professora de jornalismo da Universidade de São Paulo (USP) Mônica Rodrigues Nunes analisou a edição. Em sua avaliação, o programa confirmou os temores da sociedade civil de que o canal público se confunda com um meio de comunicação do governo.

"O primeiro bloco desse telejornal só falou de notícias que envolviam o governo federal. O segundo bloco, que era o maior deles, com 20 minutos, deu um grande destaque para uma entrevista de 13 minutos com Onyx Lorenzoni [ministro-chefe da Casa Civil] fazendo uma avaliação dos cem dias do governo até o momento. O terceiro bloco fugiu um pouco [das notícias do governo], mas ainda assim, percebi um enfoque das reportagens muito pouco voltados para o Brasil, que é o que se promete" descreve a professora.

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Neste ano, a TV Brasil, assim como a EBC, completa 12 anos. A rede de televisão foi fundada em dezembro de 2007, por meio de uma Medida Provisória do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a fusão dos dois canais, o risco de misturar conteúdos de interesse do governo vigente e o que é considerado importante para o cidadão brasileiro é grande. Na prática, a NBR ofertava informações  sobre os atos do governo federal. Já a TV Brasil mostrava temas que não são acolhidos pelas emissoras comerciais nem estatais.

"As pessoas terão dificuldade de distinguir o que são atos de governo e o que é de interesse público. Não há dúvidas, para mim, de que a junção das duas distanciará a TV Brasil de uma televisão pública nacional, independente e democrática", argumenta a Nunes, que também é pesquisadora na área de televisão.

Inconstitucionalidade

O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que atua há quase 30 anos no país, divulgou nota criticando a medida. Segundo a entidade, ao fundir as comunicações pública e privada, a portaria da EBC viola a Constituição Brasileira de 1988.

No artigo 223 do Capítulo 5, a Carta Magna estabelece que cabe ao Poder Executivo garantir o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de comunicação no país.

"A Empresa Brasil de Comunicação e a TV Brasil mais especificamente, inclusive, foram criadas justamente como forma de regulamentar esse artigo constitucional, ou seja, criar, dentro do sistema de radiodifusão, uma empresa que fizesse comunicação de interesse público, voltado para a cidadania, com pluralidade, diversidade e independência de conteúdo", explica a secretária-executiva da entidade, Ana Claudia Mielke.

Mais violações

Tereza Cruvinel, jornalista e primeira presidenta da EBC, alerta que a portaria de Alexandre Graziani é ilegal. Segundo o artigo 110 do regimento interno da EBC, o diretor-presidente da empresa deve submeter ao Conselho de Administração as propostas de alteração da estrutura organizacional — o que, segunda ela, não ocorreu.

Para Cruvinel, porém, a medida não é surpreendente. A EBC foi pauta frequente em discursos públicos de Jair Bolsonaro ainda na época da campanha presidencial, quando afirmou os objetivos de extinguir ou privatizar a empresa.

"É também previsível que, quando a democracia brasileira está sofrendo este naufrágio veloz, esse naufrágio democrático atinja a comunicação pública. Ela só existe em democracia", defende.

Essas mudanças, de acordo com Ana Claudia Mielke, ferem o próprio regimento que cria a EBC, a Lei 11.652. "A lei prevê que a empresa de comunicação tem que manter autonomia em relação ao governo federal na definição da sua programação. A portaria publicada no dia 9 prevê conteúdos de programação altamente auto referenciados no executivo", afirma a jornalista.

"Ela acaba com o caráter público da emissora e com a autonomia e independência da programação em relação a um governo. Ou seja, vai ser praticamente uma emissora de propaganda do governo de Jair Bolsonaro", critica.

Comunicação de militares?

Ainda nesta semana, Jair Bolsonaro nomeou um militar para a diretoria-geral da EBC, o coronel do Exército Roni Baksys Pinto. É a primeira vez que isso acontece desde a fundação da empresa. Ao diretor-geral cabe o controle operacional da empresa.

Tereza Cruvinel faz duras críticas à nomeação, e caracteriza a medida como uma militarização da operação da EBC e um retrocesso. "No fundo, nós temos o retorno à velha Radiobrás, criada no regime militar para dotar o Estado -- então Estado ditatorial --, de um aparato de comunicação. O que estamos vendo é exatamente isso: o retorno à ideia de o Estado autoritário ter o seu aparato de comunicação, um aparelho ideológico do estado", pontua.

O Brasil de Fato procurou a EBC para responder às críticas sobre a inconstitucionalidade da portaria 216. Por meio da assessoria de imprensa, a entidade afirmou que "A edição da Portaria 216 respeita o artigo 223 da Constituição Federal, como está expresso no próprio documento". Entidades da sociedade civil se preparam para acionar a justiça brasileira contra a Portaria 216.

Edição: Mauro Ramos