Pernambuco

LGBTFOBIA

Opinião | A vida e as mortes de Sandro

Necropolítica e sexualidade em cena

Brasil de Fato | Recife (PE) |
De diversas maneiras, gênero e sexualidade participam das condições de possibilidade dos assassinatos de LGBTs
De diversas maneiras, gênero e sexualidade participam das condições de possibilidade dos assassinatos de LGBTs - Evaristo Sá/AFP

Na manhã do dia 29 de junho de 2019, Sandro Cipriano Pereira, conhecido como “Sandro do Serta”, foi encontrado morto, com um tiro na cabeça, num sítio localizado na zona rural do município de Pombos, Zona da Mata de Pernambuco. 
Sandro, que estava desaparecido desde a noite de 27 de junho, tinha 35 anos, era professor de agroecologia e diretor da Organização Não-Governamental “Serviço de Tecnologia Alternativa” ou, simplemente, Serta, daí referência ao nome pelo qual era conhecido. Sandro ainda fazia parte do conselho diretor da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). Desde a adolescência, atuava junto aos movimentos sociais, sendo considerado uma importante liderança da juventude rural pernambucana e ativista em defesa de direitos humanos, especialmente do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) de Pernambuco.
No último dia 10 de julho, segundo noticiado pela mídia local, a delegada de polícia civil responsável pelas investigações trouxe a público a conclusão de que a morte de Sandro decorreu de um latrocínio, ou seja, roubo seguido de morte. Em entrevista concedida à imprensa, a delegada afirmou categoricamente que o crime “não tem qualquer cunho homofóbico”. Tratar-se-ia meramente de um crime patrimonial. 
De acordo com a delegada, baseada em depoimentos, Sandro Cipriano mantinha, há um ano e cinco meses, um “relacionamento oculto” com Anderson Antônio da Silva. Também segundo ela, as investigações policiais chegaram ao nome de Anderson Antônio depois de testemunhas íntimas de Sandro haverem informado a respeito da existência do relacionamento. Preso no dia 09 de julho, Anderson confessou haver matado Sandro dentro do carro da vítima, na noite de 27 de junho, após uma “discussão por ciúmes”. E, embora tenha reconhecido que subtraiu alguns bens da vítima, como cartões bancários e eletrodomésticos, o agressor negou qualquer motivação patrimonial para a morte.
A conclusão de que a morte de Sandro não resultou de homofobia, entretanto, pareceu-nos precipitada. E nossa posição se baseia em aspectos relevantes em relação à morte de Sandro, em particular, e à morte de pessoas LGBT, de modo geral.
A literatura brasileira acerca de violências letais contra LGBTs costuma identificar, sobretudo nas narrativas de agentes de Estado, a existência de dois “padrões” para essas mortes: dos assassinatos de travestis que, via de regra, ocorrem em espaço público e dos assassinatos de homossexuais, cujo autor da violência muitas vezes se envolveu afetivo-sexualmente com aqueles que se tornariam suas vítimas. Conforme essa literatura, a morte de Sandro se enquadraria facilmente no segundo padrão, considerando que ele mantinha, como dito anteriormente, um relacionamento com Anderson Antônio, que confessou o homicídio. 
A mencionada literatura reconhece que esses “padrões” carecem de leitura mais complexas, na medida em que, de fato, as pessoas costumam vivenciar diferentes formas de vulnerabilização, relativas a condições desiguais de classe, geracionais ou raciais, entre outras. Porém, tais “padrões” ajudam a visibilizar os modos como relações de gênero e de sexualidade operam na produção da violência. De diversas maneiras, gênero e sexualidade participam das condições de possibilidade dos assassinatos.
Mas, ainda que possa parecer, não é fácil a identificação de um crime motivado pela discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Raros são aqueles que assumem suas posturas homofóbicas ou transfóbicas. Não à toa, defendem-se alegando conviver com pessoas LGBT ou, muitas vezes, amenizam os efeitos de seus atos e discursos, afirmando ser “apenas uma brincadeira” e alegando serem exageradas as reações contrárias. 
Não à toa, algumas religiões inclusive vêm reivindicando, curiosamente, o direito de serem excluídas da recente determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passe a ser enquadrada como racismo. O colegiado do STF entendeu, em sua maioria, que a homofobia e a transfobia enquadram-se no artigo 20 da Lei 7.716/1989, que criminaliza o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. 
Mas, a discriminação e abjeção a pessoas LGBT e os atos ou palavras deliberadamente produzidas a partir dessa aversão é apenas uma faceta daquilo que poderíamos definir como crime motivado pela homofobia ou transfobia.
É importante atentar, por exemplo, para aspectos recorrentes no caso de assassinatos de pessoas que se definem como homossexuais ou que, mesmo se definindo como heterossexuais, desenvolvem práticas homossexuais, muitas vezes, de forma “oculta”. Não é raro que, nos casos de assassinatos dessas pessoas, a morte aconteça em suas residências e sucedida da subtração de bens. Assim, o assassino que, durante muito tempo teve acesso à casa da vítima, conviveu com seus amigos e participou do seu cotidiano, vale-se do instante da morte para levar consigo algo que ele poderia ter subtraído, sem grandes dificuldades, em outra ocasião. 
Nos perguntamos se, de fato, é possível enquadrar essas experiências de violência letal apenas como um crime patrimonial? Um homem mantém um relacionamento afetivo-sexual de um ano e meio com outro, mediado (ou não) por benefícios financeiros, apenas com a intenção de roubar cartões e eletrodomésticos?    
Admitir a hipótese, apressadamente alardeada pela mídia, de que a morte de Sandro resultou exclusivamente de um roubo é incidir na ideia de que Sandro foi, desde sempre, enganado por Anderson Antônio, o qual haveria conduzido um relacionamento com o mero e exclusivo objetivo de roubar. Tal hipótese, desse modo, nega a factibilidade do relacionamento, tratando-o como “oculto” e, portanto, ilegítimo, e toma Sandro como alguém incapaz de compreensão de suas próprias relações pessoais, alguém que produziu as circunstâncias de sua própria morte. 
Essa hipótese apaga do crime as relações desiguais de gênero e de sexualidade que levam LGBT a vivenciar relacionamentos “ocultos”, tidos como inaceitáveis, assim como atribui ilegitimidade a determinados desejos, vistos como impróprios.  Novamente, sob o manto da moralidade cisheteronormativa, a vítima se converte em autor da violência. Com isso, acabam sutilmente por atribuir à vítima a culpa por sua morte.  
A busca policial por uma “causa” para a morte, distinta da homofobia, responde a lógicas duais e causais de Estado e também explicita como certas práticas de Estado são elas mesmas profundamente marcadas por gênero e sexualidade. No caso do homicídio de Sandro Cipriano, é notável como o afastamento da hipótese de homofobia e a admissão apressada do latrocínio como causa do crime levam à conclusão de que a morte aconteceu em razão de objetos e não de vidas. 
Nessas narrativas policiais, a vida de Sandro importa menos do que seus cartões bancários e seus eletrodomésticos. Afinal, segundo tais narrativas, eram eles o alvo dos desejos de Anderson Antônio. É notável, portanto, o quão longe estamos de compreender as desigualdades sociais e as violações de direitos que nos conformam e com as quais precisamos lidar, e não reproduzir. Precisamos reconhecer para poder cindir nossas atitudes soberanas, alicerçadas na necropolítica.
Achille Mbembe, filósofo e pensador camaronês, professor da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul e na Duke University, nos Estados Unidos define necropolítica como “a expressão máxima da soberania” que “reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. Matar ou deixar viver constituem os atributos fundamentais da soberania.
Fazendo alusão a Bataille, Mbembe estabelece uma correlação entre a morte, a soberania e a sexualidade. Segundo ele, a sexualidade diz respeito ao regime dos tabus em torno dos impulsos orgíacos e excrementais. Assim, segundo o autor, uma vez que o domínio natural de proibições inclui a morte, entre outras (por exemplo, sexualidade, sujeira, excrementos), a soberania exige que “a força para violar a proibição de matar, embora verdadeira, estará sob condições que o costume define”. E, ao contrário da subordinação, sempre enraizada na alegada necessidade de evitar a morte, a soberania definitivamente demanda o risco de morte.
Sandro, durante toda sua vida, marcada por profundas condições de subordinação, resistiu bravamente à necropolítica, encarando a morte de frente, em suas diferentes dimensões, materiais e simbólicas, seja a morte do seu desejo, a morte do seu modo de existir, a morte do seu modo de amar. Hoje, depois de consumada sua morte física, brutalmente executada, não podemos seguir matando sua subjetividade e sua memória.
Em tempo, enquanto finalizávamos este texto, chegou-nos a notícia de mais um assassinato de um homossexual em Recife, que ocorrera na noite do último 12 de julho. Homem de 63 anos, identificado como Jorge de Lima Andurand foi encontrado morto, na sua própria residência, no bairro da Várzea. Não havia marcas de arrombamento, mas indícios de luta corporal. Objetos foram subtraídos da residência. Coincidência? Definitivamente não. Trata-se de recorrência de uma narrativa perversa que só é possível enquanto não entendermos profundamente e desenterrarmos radicalmente as matrizes que conformam a discriminação e a abjeção em relação às pessoas que não se submetem a padrões normativos de gênero e sexualidade.
* Benedito Medrado é formado em psicologia, doutor em psicologia social e professor da UFPE. Roberto Efrem Filho é formado em direito, doutor em ciências sociais e professor da UFPB.
 

Edição: Monyse Ravenna