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Justiça

Judiciário tem histórico de altos faturamentos com palestras

Ministros e juízes costumam ganhar mais de R$ 60 mil por palestras em grandes empresas

Curitiba |
Patrocínio em eventos da magistratura afeta autonomia de juízes
Patrocínio em eventos da magistratura afeta autonomia de juízes - Joka Madruga/Terra sem Males

O escândalo em torno da intenção do procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, de abrir empresa para a realização de palestras, levanta novamente o tema das relações e influências indevidas das empresas no sistema de justiça. O centro da recente denúncia feita pelo portal “The Intercept” e a “Folha de S. Paulo” mostra que Dallagnol montou um plano de negócios para lucrar com eventos na esteira da fama e dos contatos conseguidos durante a operação.
Segundo informações da coluna de Mônica Bergamo, da Folha, o procurador justificou que ministrar palestras não é uma atividade proibida para integrantes do Judiciário: “Palestras remuneradas são prática comum no meio jurídico por parte de autoridades públicas e em outras profissões”, disse o procurador.
A atuação de Dallagnol tem sido apontada nas reportagens como intenção de gerenciar empresas, o que é vedado dentro das carreiras dos membros do Judiciário. Segundo as reportagens, Dallagnol chegou a ter uma média de rendimentos de R$ 400 mil anuais em palestras.
A atuação de agentes do Judiciário na realização de palestras, cobrando altos valores, não é um acontecimento isolado e tem sido objeto de denúncia da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh) há vários anos. Como relatado pela Articulação em momentos passados, outros membros da justiça brasileira ficaram conhecidos por receberem altas cifras para darem palestras grandes corporações e congressos.
O caso mais recente, que também foi denunciado pela JusDh para a Agência Pública, aconteceu em 2018, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, recebeu R$ u6,8 mil por uma palestra na Escola Superior de Contas do Tribunal de Contas de Rondônia (TCE-RO). O contrato foi negociado pela empresa Supercia Capacitação e Marketing. O ministro, na época, disse que não havia feito a palestra, mas constava no Diário Oficial do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia sua contratação.
O ex-ministro do STF Joaquim Barbosa também é um dos exemplos de personalidades questionadas pelas suas remunerações com palestras. A Revista Fórum mostrou que o ex-ministro recebeu R$ 60 mil da Câmara de Vereadores de Itajaí (SC) por uma palestra sobre “Ética e Administração” realizada no ano de 2015. Na época, Barbosa exigiu o sigilo do valor cobrado pela palestra e a liberdade de deixar de responder a perguntas consideradas “inadequadas”.
Já o ministro Gilmar Mendes, também do STF, recebeu R$ 60 mil por uma palestra de uma hora no encerramento do curso ‘Aperfeiçoamento e Atualização nos Fundamentos e Procedimentos da Administração Pública’, segundo denúncia no blog Diego Emir. O curso foi organizado pela Escola de Governo do Maranhão, em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP), que é de propriedade de Gilmar Mendes. O valor recebido pelo ministro estaria incluso nos R$ 1.446.966,40 pagos ao instituto de que é sócio. 
Essa parceria entre integrantes do sistema de justiça também se estende para relações com o setor privado, o que é nomeado como “captura corporativa” por atores que monitoram a ação do Judiciário. A JusDh tem destacado 3 principais ações como captura corporativa:
– Patrocínio de eventos da magistratura, por meio do qual as empresas financiam e participam ativamente de congressos, seminários e cursos para juízes, desembargadores e ministros;
– Pagamento de honorários para realização de palestras em eventos promovidos pelas empresas;
– Suspensão de Segurança como instrumento jurídico para viabilizar no âmbito judicial a realização, por exemplo, de grandes projetos e megaeventos;
Em reportagem especial a Folha de São Paulo divulgou que quatro ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) receberam, por exemplo, pagamentos do Bradesco para proferir palestras para o Banco em 2013. No entanto, desconsiderando a relação comercial entre os envolvidos, os ministros não se declararam impedidos de julgar processos que têm o banco como parte na mesma época.
O que mais se destaca dentre os juízes do TST é o caso do atual presidente do Tribunal Superior, João Batista Brito Pereira, que, em dois anos e meio, recebeu R$ 161,8 mil do Bradesco pela realização de um conjunto de 12 palestras entre 2013 e 2015. Na época, Brito Pereira era relator de dez processos movidos contra o banco.
Os outros três magistrados que receberam do Bradesco são o ministro do TST Antônio José de Barros Levenhagen, que ganhou R$ 12 mil por uma palestra e aparece como relator de seis casos envolvendo o banco; Guilherme Augusto Caputo Bastos, R$ 72 mil por seis palestras, 170 ações relatadas; e Márcio Eurico Vitral Amaro, que relata 152 processos, mas que não informa quanto recebeu do banco.

Patrocínio de eventos da magistratura e a autonomia dos juízes
Outro exemplo do que é categorizado como captura corporativa é o financiamento de eventos da magistratura por empresas que possuem uma grande demanda na Justiça brasileira. Em geral, os congressos das associações de magistrados são patrocinados por empresas em resorts e hotéis de luxo, reunindo milhares de juízas e juízes para palestras e formações.
Os congressos se assemelham muito com uma das palestras denunciadas no caso do procurador Deltan Dallagnol. Segundo o áudio vazado, o procurador exigiu, para dar uma palestra, a passagem e estadia para filhos e mulher usufruírem do Beach Park, o maior parque aquático na América Latina, que fica no litoral do Ceará. Valor da palestra: R$ 30 mil. Assunto da palestra: combate à corrupção.
No último Congresso da Associação de Magistrados do Brasil (AMB), realizado em 2018 em Maceió, a JusDh reuniu um conjunto de organizações sociais e movimentos populares para reivindicar um novo modelo justiça, mais transparente e democrático. Conjuntamente com os atores locais, a Articulação realizou uma atividade contraponto ao Congresso da AMB. A agenda dos magistrados reuniu milhares de magistrados em um “resort” patrocinado pela Qualicorp – Soluções em Saúde. A corporação da área de saúde é, com frequência, questionada perante os tribunais.
Onde estão os órgãos de controle?
A Lei Orgânica da Magistratura, norma que define regras para a organização dos tribunais e o trabalho dos juízes e magistrados, aponta no artigo 26 parágrafo II inciso 1º que: O “exercício de cargo de magistério superior, público ou particular, somente será permitido se houver correlação de matérias e compatibilidade de horários, vedado, em qualquer hipótese, o desempenho de função de direção administrativa ou técnica de estabelecimento de ensino”.
No caso do Procurador Deltan, o exercício de outras atividades é regulamentado pela  Resolução Nº 133, de 22 de setembro de 2015 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O texto veda o exercício de qualquer atividade por membros no MP, exceto as práticas docentes.
Já o CNJ, ao definir o que pode ser considerado atividade docente, permitiu não só a participação de juízes como palestrantes de eventos, ainda que realizados por empresas, bancos e entidades com fins lucrativos, como também autorizou o pagamento de honorários pelas “aulas” e “palestras”, explica Luciana Pivato, advogada e coordenadora da Terra de Direitos, organização integrante da JusDh. De acordo com as regras estabelecidas nas Resoluções 170/2013 e 34/2007 (alterada em 2016), o juiz deve apenas comunicar o Tribunal, cabendo ao CNJ acompanhar e avaliar periodicamente.
Luciana recorda que desde 2013 a JusDh incide junto ao CNJ em busca da proibição do pagamento de honorários para palestras e do patrocínio por parte de entidades com fins lucrativos. “Em 2016 enviamos nova denúncia à então presidente do CNJ, ministra Carmem Lúcia, sobre a ineficácia da  Resolução 170/2013 no que diz respeito ao patrocínio de eventos. Para a Articulação, as normas criadas pelo Conselho deixam lacunas  e não impedem a influência indevida dos setores privados lucrativos no judiciário. As regras não garantem a transparência e a independência judicial. Para piorar, o CNJ suspendeu, sob argumento inconsistente de estar pendente de julgamento o Mandado de Segurança 32040 que contesta a Resolução, o monitoramento da norma. A suspensão significa dizer que nem mesmo as regras frágeis criadas vêm sendo aplicadas corretamente”, aponta Luciana.
Ainda de acordo com a JusDh, a fragilidade normativa tem “aberto portas” para influência indevida de empresas, como fica explícito no caso do Dallagnol: agentes da lei têm enxergado dentro das atividades lícitas, como o pagamento de honorários, a possibilidade de realização de atividades ilícitas, ou seja, procuradores que gerenciam empresas.
O tema da captura corporativa dos integrantes do sistema de justiça também foi denunciado ao relator de independência judicial da Organização da Nações Unidas (ONU), em 2018.
 

Edição: Frédi Vasconcelos