Pacto Federativo

Bolsonaro ignora economia dinâmica de pequenos municípios ao ameaçá-los de extinção

Produção rural, proteção ambiental e ganhos com turismo não são levados em conta em PEC proposta pelo governo

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Ouro Verde de Goiás (GO) tem base essencialmente agrícola e pouca arrecadação própria
Ouro Verde de Goiás (GO) tem base essencialmente agrícola e pouca arrecadação própria - Prefeitura de Ouro Verde/Reprodução

Municípios pequenos esbarram nas próprias virtudes ao tentar escapar do risco de extinção presente na Proposta de Emenda à Constituição do Pacto Federativo (PEC 188/2019), apresentada em um pacote econômico do governo federal.

A redação prevê a incorporação de municípios com menos de cinco mil habitantes e arrecadação própria abaixo de 10% da receita total, entre o Imposto sobre Serviços (ISS), o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). As fusões devem ocorrer até 30 de junho de 2023.

No entanto, segundo Eduardo Stranz, consultor da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a PEC não leva em conta que municípios com economias centradas na produção rural, como é o caso da maioria dos pequenos no Brasil, praticamente não arrecadam com tributos.

“Na Constituição de 1988, se deu a competência para o município tributar três impostos – o ISS, o IPTU e o ITBI. Esses três impostos têm a base tributária na área urbana. [Em] uma cidade com cinco mil habitantes, o núcleo urbano é muito pequeno. São dez, 20 ruas que se cruzam, e a grande maioria da população está na área rural, onde se produz. Nessa área rural, o município não tem competência de arrecadar nada. Quem arrecada da área rural é a União e o estado, não o município”, explica Stranz.

 

É o caso de Ouro Verde de Goiás (GO), município com 3.759 habitantes, essencialmente agrícola, importante no abastecimento de cidades como Goiânia e Anápolis. A receita do município passa de R$ 19 milhões ao ano, mas apenas R$ 406 mil (2,1%) corresponde à arrecadação com tributos.

“Ouro Verde é um município produtor. Produz todo tipo de hortifrúti. De que valem os investimentos que nós fazemos nas empresas que estão sendo instaladas aqui? Quem vai arrecadar, neste caso, não é o município, é o estado. Por aquele critério de se observar a sustentabilidade financeira [de acordo com] aqueles impostos, é uma proposta desconexa com a realidade dos municípios”, reclama o prefeito de Ouro Verde de Goiás, Jaime Ricardo Ferreira (DEM).

Marliéria, no Vale do Aço mineiro, com 4.039 habitantes, também está em risco de extinção. O município tem 84% do território dentro do Parque Estadual do Rio Doce, uma área de preservação que não pode ser urbanizada, o que restringe o crescimento populacional. A arrecadação própria, neste caso, é de 4,7% em relação à receita total.

Domingos Sávio de Castro, contador do município, afirma que os moradores se sentem punidos. “O município está há tantos anos lutando pela preservação do Parque Estadual do Rio Doce, e, até certo ponto, é penalizado por não poder fazer uso do solo conforme lhe for conveniente. Por não poder expandir o uso do solo, a população é menor do que 5 mil habitantes e, com isso, ele tem que ser extinto. É um contrassenso”, opina.

No caso de Piratuba, no oeste de Santa Catarina, a alta arrecadação com turismo não o salva do risco imposto pela PEC. Com 3.854 habitantes e atrativas águas termais, o município ostenta uma das maiores receitas do país entre os com menos de 5 mil habitantes – R$ 34.134.359 ao ano -, mas não atinge os 10% propostos pelo governo, já que tem receita própria de R$ 3.330.608 (9,8%).

“Nós temos quatro mil habitantes, porém recebemos 450 mil turistas por ano em Piratuba. Muda muito a arrecadação, também porque temos a Hidrelétrica de Machadinho. Nosso município é muito estruturado. Não vemos a fusão com bons olhos, tendo em vista que a nossa qualidade de vida – IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] – é muito superior à de outros municípios”, diz o secretário municipal de Saúde e Assistência Social, Vanderlei Weber. “O caminho é deixar os municípios estruturados como estão, e buscar uma gestão mais técnica, mais eficiente”, sugere.

Para Francisco Fonseca, professor de Ciência Política da PUC-SP e FGV, falta negociação com os representantes dos municípios para, de fato, seja proposto um “pacto federativo”.

“É um processo que não é democrático, não é pactuado. Portanto, não pode ser chamado de Pacto Federativo. Qual critério diz que os municípios de até 5 mil habitantes deveriam ser fundidos e não os de 10 mil? É um número cabalístico. É um número mágico, sem qualquer critério, sem qualquer explicação”, afirma.

O professor critica a forma autoritária com que o governo tenta extinguir os municípios. “Esses municípios foram criados por plebiscito popular. Então, está se cassando o voto dos eleitores. Mostra o autoritarismo que está presente na ideia de governo. Foram os munícipes que decidiram pela autonomia desses municípios, não um pacote que vem de cima e diz: ‘olha, agora não tem mais. Cassamos o voto de vocês’".

Edição: Julia Chequer