Pernambuco

MÚSICA

Há 30 anos a banda Devotos canta a realidade do bairro Alto Zé do Pinho, no Recife

Canibal, vocalista da Devotos, que tem 30 anos de carreira, fala de música e as mudanças conquistadas pelo bairro

Brasil de Fato | Recife (PE) |

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A banda de punk rock hardcore que surgiu na década de 1980, possui sete discos de estúdio
A banda de punk rock hardcore que surgiu na década de 1980, possui sete discos de estúdio - Michele Souza

Canibal é vocalista e baixista da Devotos. A banda de punk rock hardcore que surgiu na década de 1980, possui sete discos de estúdio e sempre manteve a identidade de afirmação do bairro do Alto José do Pinho, da Cidade do Recife. Recentemente recebeu homenagem em sessão solene na Assembleia Legislativa de Pernambuco, ocorrida no mês de Agosto de 2019.

Brasil de Fato (BdF): Como ocorreu o processo de surgimento/criação da Devotos? 
Canibal: O começo da Devotos foi muito difícil. Nunca quis ter banda. Sempre participei do movimento Punk aqui do Recife. Eu gostava de fazer fanzine, gostava de participar das passeatas punks, gostava de reivindicar e organizava os eventos, a minha parada era essa. Mas um amigo me incentivava quase todo dia “forma tua banda”, e eu nunca quis ter banda. Mas teve o terceiro encontro antinuclear e a gente organizava pra tocar, e ele disse, “tu vai formar tua banda, o nome da banda é Devotos do Ódio e vocês vão tocar”. E a gente meio que formou a banda, mas foi louco porque a gente não tinha nem instrumento, e eu nunca tinha tocado um instrumento na minha vida. A primeira coisa que eu pensei foi “a gente não vai tocar cover”, já que a gente não sabe tocar a gente faz as nossas próprias músicas porque ninguém vai dizer que tá errado.  Tínhamos outro vocalista, ele passou quase seis meses ensaiando com a gente, na semana do show ele disse que não ia cantar, como eu fazia as músicas eu pensei “não vai dar tempo de arrumar outro vocalista, eu vou cantar” e estou até hoje. Passamos nove anos nessa história de ir tocar e voltar sem ganhar nada. São 30 anos eu, Celo e o Neilton juntos. A banda já teve outra formação, que começou com Celo também, mas ele saiu da banda e entraram outros dois músicos que eram membros do SS-20, a primeira banda de punk rock daqui de Recife, e ficaram comigo um tempo pra banda não ficar parada. Depois eu chamei Celo novamente, e encontrei Neilton e convidei ele pra tocar comigo. Celo eu conheço desde os 14 anos e Neilton desde os 05 anos, então a afinidade foi bem maior.  

BdF: Mesmo após a fama, a identidade musical e política permaneceram. O que foi determinante pra que a banda mantivesse o mesmo perfil ao longo desses mais de 30 anos?
Canibal: A Devotos surgiu para mudar um quadro social dentro da comunidade, que é o Alto José do Pinho, a ideia era essa. Por isso que a gente não pensava em fama, pensava no que estava acontecendo ali no Alto José do Pinho. Todo aquele inconformismo como o saneamento, insegurança, criminalidade, a mídia sensacionalista sempre colocava a comunidade nas páginas policiais e a gente via que o Alto não era tão perigoso assim, eles tinham era um meio de ganhar muita grana com isso, com a miséria. Acho que você tem que reivindicar as melhorias sociais da forma que você se sente melhor e não apenas se engajar numa coisa que você não se identifica e a gente se identificava com a música. A baixa autoestima era muito forte na comunidade, a comunidade não se pertencia, não se via dentro dela mesma e a gente começou a tratar disso nas nossas músicas. No começo era uma coisa de raiva, de ódio, era mais falar mal do que se tinha. Depois de um tempo, ouvindo outras pessoas, um amigo nosso chamado Carlos Freitas disse “o som de vocês é massa, tua letra é muito boa, mas se liga que vocês são do subúrbio e vocês tem que dar esperança pra aquela galera”, então a gente começou a falar daquele mal-estar que se tinha dentro da comunidade perante o governo de uma forma diferente, escrever coisas diferentes e até hoje é assim. Os problemas ainda existem, mas a autoestima da comunidade mudou, O Alto José do Pinho hoje é visto pela cultura que se tem, pelos vários projetos sociais que se tem e não pela criminalidade, como era naquela época. 

BdF: Recentemente o Devotos tocou num lugar um pouco inusitado, numa sessão solene, como foi esse momento?
Canibal: Por tudo aquilo que a gente conquistou no Alto José do Pinho de conseguir tirar das páginas policiais e colocar nas páginas culturais, fazer com que a sociedade subisse o Alto pra ver os caboclinhos, pra ver o Maracatu Estrela Brilhante, pra ver o afoxé e toda a efervescência cultural, o deputado Isaltino Nascimento (PSB) resolveu fazer uma homenagem ao Devotos e teve a ideia de a gente tocar na Câmara para além da homenagem e foi aberto ao público. Foi surreal e muito gratificante, por que tem um separatismo muito grande, mas ali também é um lugar para a gente ocupar. 

BdF: Na comunicação, na forma de expressão musical, qual o equilíbrio entre anunciar e denunciar?
Canibal: Na mídia é praticamente impossível isso. Ter o discernimento do que é verdade ou mentira é necessário. O que eu vejo e que eu aprovo é você mostrar as duas verdades que acontecem, dentro da periferia, por exemplo, mostrar as coisas boas e ruins que estão acontecendo. Essa mídia que tem hoje é muito fake, se ganhou uma eleição mentido, isso é muito perigoso. 
 

Edição: Monyse Ravenna