Rio Grande do Sul

MEMÓRIA

Lúcida Tristeza: Este é Devanir José de Carvalho, assassinado pela ditadura

Nesses 56 anos do golpe militar no Brasil, confira série de entrevistas com familiares de mortos e desaparecidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Devanir foi baleado, preso e torturado até a morte em 7 de abril de 1971 - Montagem sobre foto de arquivo pessoal

O mês era julho. O ano, dois mil e doze. Fui convidado por Luciano, amigo de longa data, a participar de um projeto pela ONG Alice – Agência Livre pela Informação, Cidadania e Educação –, sediada em Porto Alegre. O fotógrafo argentino, radicado na Espanha, Gustavo Germano, com sua obra Ausências, percorreria o Brasil atrás de famílias de mortos e desaparecidos da ditadura militar, com fins de uma exposição fotográfica.

Gustavo é vítima da sanguinolenta ditadura argentina, que matou mais de 30 mil pessoas, incluindo o caçula de seus três irmãos. Como resposta, desenvolveu uma exposição na qual refazia fotos antigas, sem a presença do ente desaparecido, demarcando a ausência forçada em função de um movimento político, uma ditadura. (Veja mais aqui)

Sua ideia era viajar pelo Brasil para desenvolver um projeto similar ao argentino, chamado Ausências Brasil. Para tanto contava com apoio da própria ONG Alice, da Comissão Nacional da Verdade, e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

Juntamente a esta exposição, um vídeo com imagens dos bastidores da feitura das fotos seria exibido, uma espécie de making of que é parte integrante e acompanha a obra. E é aqui que eu entro na história. Me formei em Realização Audiovisual pela Unisinos, em 2010. Desde então, tenho me dedicado ao estudo e a prática na área do documentário e das artes visuais.

De pronto, aceitei o convite de Luciano. Com a condição de que, além do vídeo, fizesse também algumas entrevistas, elaborasse algum tipo de material de pesquisa, fosse para um documentário ou algum outro tipo de produção de conteúdo.

Durante a viagem, eu aproveitaria o mínimo tempo livre que teríamos para me aprofundar no assunto, conversando com alguns familiares de vítimas e gravando estes encontros. As conversas não teriam como foco o caráter histórico, dado em números, da ditadura brasileira. Buscariam, sim, acessar memórias afetivas relacionadas aos entes queridos que se foram. Dores, lembranças, vivências. Lapsos de um passado não tão distante, e seus respectivos reflexos nos dias atuais.

Eis aqui, então, divididos em quatro momentos, o primeiro, com trechos de conversas destes encontros com familiares de mortos e desaparecidos, permeadas por algumas fotos e breves percepções pessoais acerca do assunto. Agradeço imensamente a Gustavo Germano, Luciano Piccoli, Cristina Pozzobon e Rosina Duarte pela confiança perante tema tão delicado. E a Marcelo Ferreira pela oportunidade da publicação.



Devanir / Foto: Arquivo pessoal

Este é Devanir José de Carvalho, assassinado pelos militares aos 27 anos. Chegava em casa na rua Cruzeiro, no bairro Tremembé, em São Paulo, quando foi recebido por uma rajada de metralhadora. Levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), onde permaneceu por dois dias, foi torturado até a morte pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Em 2012, durante a execução do projeto Ausências, de Gustavo Germano, tive a oportunidade de conversar com Carlos Alberto José de Carvalho, filho de Devanir. Nos encontramos numa tarde de chuva fina em Porto Alegre.

Conte um pouco sobre sua infância e a convivência com seu pai.

Carlos: Minha trajetória com ele se resume aos meus primeiros sete anos de vida. Eu nasci em 64, quando o meu pai, militante comunista, militante também do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo, por conta do golpe de estado de 64, se muda pro Rio de Janeiro. E aí tive minha infância no subúrbio do Rio de Janeiro, Jacarepaguá. Convivência apenas com os vizinhos, com os filhos dos vizinhos, as crianças na rua. Praticamente eu não tive convivência com os outros parentes, avós, primos, tios, até os sete anos.

Só com a morte do meu pai é que eu fui ter uma convivência com os meus avós. Uma convivência que durou pouco também, porque no final de 71, nós, minha mãe, eu e meu irmão menor, nós fomos ao Chile, saímos do Brasil espontaneamente. Minha mãe ficou presa durante três meses. Quando ela foi colocada em liberdade vigiada, nós tivemos a oportunidade de sair do Brasil e ir pro Chile.

Até 73, quando houve o golpe de estado no Chile, e a gente teve que se mudar então pra Argentina. E da Argentina seguimos pro exílio em Portugal. Depois da Revolução dos Cravos, Portugal se tornou um país receptivo a nós, e aí passamos os últimos anos do exílio em Portugal, falando a língua pátria.

Quando veio a notícia da morte dele, que sensação lhe passou pela cabeça?

Carlos: É, nós não tivemos a notícia da morte dele imediatamente. A notícia chegou alguns dias depois da morte. Nós tínhamos a expectativa de que ele talvez tivesse preso, e que pudesse, enfim, mais tarde, a gente pudesse reencontrá-lo numa outra situação. E quando a notícia da morte veio, veio com muita força, é o seu mundo que se desfaz de repente. Toda a segurança que uma criança tem, ou que uma criança precisa e acha que tem nessa idade, ela se esvai. Então você... Enfim, o primeiro sentimento talvez seja de completa solidão.

E a ausência em si, como é essa sensação. Convives com ela?

Carlos: Sobre a ausência em si, eu acho que a perda do pai é a maior perda que um homem pode sentir na vida. Porque eu acho que a figura do pai é uma figura muito poderosa sobre o homem, sobre o menino. A ausência do pai, a perda do pai é provavelmente a maior perda, que muda. Você, a partir de então, toma consciência de tá por conta. Você agora é o homem da família. Eu sou o filho mais velho, então a perda do meu pai representou de alguma maneira uma tomada de consciência de que eu era, agora, o homem da casa.

E esse novo homem trouxe consigo quais virtudes de seu pai?

Carlos: Alguns valores, de retidão, de compromisso com a justiça, a justiça social, uma solidariedade com o povo. Enfim, acho que de alguma maneira foi decisivo pra moldar uma certa visão de mundo, pra eu me afirmar enquanto sujeito. Eu acho que é uma visão, enfim, sobre o mundo que precisa urgentemente de mudança, de transformação, de ser algo diferente do que é hoje. Então desde muito cedo reconheço a necessidade de mudança, a necessidade de transformação social.


Devanir e Carlos / Foto: Arquivo pessoal

Como era o Devanir? No dia a dia, no trato pessoal?

Carlos: Era um homem prático, um homem de ação. Ele era metalúrgico, era mecânico. As primeiras lembranças que eu tenho dele ainda são no Rio de Janeiro, montando e desmontando o carro que ele tinha. Lembro também das muitas reuniões que ele participava, muitas na casa em que a gente vivia, com outros militantes. Então eu guardo essa lembrança de uma pessoa comprometida com a transformação, com a ação prática.

Tens lembranças vivas de alguma história dessa época?

Carlos: Eu tenho pouca memória do período. Por exemplo na copa de 70, que é algo que as pessoas da minha geração tem memória disso, eu tenho uma memória muito residual. Eu sei que na minha casa, na copa de 70 havia uma reunião de militantes que discutiam muito não só política mas também futebol, mas sempre o futebol na perspectiva política.

Então na copa do mundo se devia apoiar, torcer pelo Brasil, que na época era governado pela ditadura, ou se politicamente era mais interessante que o Brasil perdesse a copa. Isso era assunto de debates, e de alguma maneira uma criança acompanhava isso com uma certa distância.

Sei que nessa ocasião se encontrava lá em casa o Capitão Lamarca e a companheira dele, a Iara Iavelberg, que enfim, estavam guardados na nossa casa nesse período. Então foi uma época de comemorações futebolísticas, mas também de grandes discussões políticas.

Como era o Capitão Lamarca, no dia a dia?

Carlos: O Lamarca gostava muito de criança, então eu tinha seis anos e meu irmão tinha dois nessa época. Tanto ele quanto a companheira dele nos tratavam muito bem, brincavam com a gente, aquelas coisas de adultos que gostam de criança. Na convivência de certa maneira forçada né, porque ele era o cara mais procurado pela repressão no Brasil inteiro. E a gente procurava de alguma maneira viver um cotidiano, digamos, normal. Aquelas coisas de família, uma família ampliada, com a macarronada de domingo, essas coisas. E ao mesmo tempo eles estavam ali, comendo macarrão, de repente se trancavam numa sala e ficavam lá discutindo os rumos da revolução. Mas aí as crianças ficavam de fora... (risos)

Carlos, como vítima direta do regime, que levou embora seu pai, o que lhe vem a mente quando é levantada a possibilidade de uma nova ditadura militar no Brasil?

Carlos: Uma ditadura militar novamente no Brasil seria reviver uma tragédia nacional. Essa democracia que a gente vive hoje, nas suas imperfeições todas, ela é o produto da luta de muita gente. O estado democrático atual ele não foi dado de graça, ele não foi concedido, ele é objeto de uma conquista de toda a sociedade brasileira. Acho que é dever de todos os brasileiros assegurar a continuidade do estado democrático. Nenhuma ditadura interessa ao povo.

Edição: Marcelo Ferreira