Rio Grande do Sul

Crônica

Nosso comportamento viral irá nos salvar

A boa notícia é que assim como um vírus, a humanidade é extremamente capaz de se reorganizar frente a um obstáculo

São Paulo |
"O ponto é olharmos ao redor e vermos do que as pessoas de fato precisam nesse novo normal" - Foto: Site Público.pt

Segunda-feira, dia 13 de abril, demorei a levantar da cama. Uma baita tristeza me pegou. Gosto de ficar sozinho em casa. Porém, a falta de perspectiva sobre quando o isolamento vai acabar me deixou mal. Levantei depois de olhar para o teto alguns minutos. Pelo resto da manhã, uma insistente vontade de chorar me perseguiu pelo apartamento.

A princípio achei que essa tristeza era pelo fato de eu morar em São Paulo e minha família estar no Sul. Permanecer em São Paulo nesse momento de isolamento não faz o menor sentido para mim. A distância de quem eu gosto. O custo do aluguel. As notícias sobre demissões em massas em diversos mercados. Tudo isso mais do que triste é angustiante.

No entanto, ontem entendi minha vontade de chorar. Na capa do site Folha de São Paulo, encontrei a notícia sobre um estudo de Harvard que apontava os horizontes para o fim do confinamento. Fui atrás do artigo original na Science Magazine. O artigo tem como ponto de partida o tempo necessário para o desenvolvimento de uma vacina eficaz e/ou de um anti-viral devidamente testado frente a capacidade das UTIs para atenderem os pacientes graves. Com a capacidade atual das UTIs, a covid-19 pode durar até 2022 desde que as medidas de afastamento sejam respeitadas para evitar uma sobrecarga no sistema de saúde.

Ao ler o artigo, ficou claro algo que eu resistia a aceitar: nada será como antes. O choro de segunda-feira era luto. Era dor pela perda das certezas que eu tinha até o distanciamento começar. Aceitar essa mudança inevitável foi libertador. Finalmente entendi que a minha dificuldade de ver perspectivas acontecia porque eu estava a procurar focos de luz a partir do parâmetro anterior à pandemia.

O fato é que o mundo em movimento de fevereiro não existe mais. O mundo repleto de aviões cruzando continentes e com milhões de pessoas nas ruas pulando carnaval NÃO EXISTE MAIS. E tudo bem. Quando olhamos para a história da humanidade, vemos momentos de grande movimento e momentos de retração. Na Idade Média, por exemplo, a população da Europa se retirou para o campo. Vivia em um modelo feudal onde o dono da terra emprestava terreno para os camponeses produzirem em troca de lealdade nas lutas contra os bárbaros. O dinheiro não era necessário. A Igreja considerava pecado a cobrança de juros. Esse cenário ocupou praticamente 1000 anos da história da humanidade.

No século XI, com o renascimento comercial, o mundo entrou em movimento e não parou mais até março de 2020. Primeiro ressurgiram as cidades. Depois, vieram as grandes navegações, a Revolução Industrial, o trem, o carro, o avião, a viagem ao espaço e a internet. A realidade com que estávamos acostumados até fevereiro era pautada pelo movimento. Por isso, sem dúvida, recalcular nossas perspectivas para um mundo com movimentos limitados é um exercício difícil.

Para seguir, precisamos viver o luto da organização social onde crescemos e amadurecemos nossos valores. A boa notícia é que assim como um vírus, a humanidade é extremamente capaz de se reorganizar frente a um obstáculo. Esse é o ponto que me dá esperança: mesmo que alguns ainda neguem os impactos da novo coronavírus, nossa geração vai estabelecer um novo normal. Dentro desse novo normal haverá economia e sobrevivência, porém com necessidades diferentes.

Talvez as pessoas não precisem mais de tantos sapatos, uma vez que saem menos de casa. Talvez elas precisem de bandas de internet mais velozes, por exemplo. Ou não precisem de academias, mas de sessões com personais trainers por vídeo conferência. Assim como talvez as pessoas não precisem tanto assim de maquiagem, mas precisem mais de quebra-cabeças e atividades manuais para fazerem com os filhos. Sem dúvida nenhuma, agências de propaganda não precisarão mais de grandes sedes. Porém a propaganda desses novos serviços e produtos será ainda fundamental.

Há um economista americano que admiro muito. Thorstein Veblen. Filho de imigrantes noruegueses, Veblen viveu entre 1857 e 1929 (meses antes de estourar a crise) e viu o boom da indústria americana após a Guerra da Secessão. Com esse desenvolvimento industrial, surgiram muitos novos-ricos. Essas pessoas esbanjavam em roupas, casas e tudo mais que dava aparência. Mark Twain descreveu o período como Era Dourada, onde havia muito luxo externo e grande degradação de valores.

Assim como Twain, Veblen era crítico à ostentação. Dizia que a humanidade avançaria de fato quando parasse de investir tanta energia produtiva no desenvolvimento de produtos supérfluos e investíssemos mais em ciência para um desenvolvimento sustentável. Veblen viveu os últimos anos de sua vida retirado em um sítio no Palo Alto, numa casa com os móveis que ele mesmo construiu. É bem provável, que hoje, o velho Veblen diria que estamos frente a uma oportunidade de ouro para reinventarmos a economia. O ponto é olharmos ao redor e vermos do que as pessoas de fato precisam nesse novo normal.

*Mauro Paz nasceu em Porto Alegre. Desde 2009, vive em São Paulo. É autor dos livros Por Razões Desconhecidas (IELRS), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo – CidadExpressa (Editora Patuá); e Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá) finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Mauro também é organizador da antologia Contos de Quarentena (Amazon, 2020), que reúne alguns principais contistas da literatura contemporânea brasileira.

Edição: Katia Marko