Pernambuco

Entrevista

Em meio à pandemia, faltam alimentos e ação do Estado para os povos indígenas

Dinaman Tuxá explica como a realidade dos povos indígenas foi alterada com a pandemia com a ausência de suporte da FUNAI

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Dinaman Tuxá, militante social indígena, advogado e coordenador executivo da APOINME pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) - Greenpeace

Se, dentro das cidades, o combate ao coronavírus tem sido encarado pelos governos municipais e estaduais com diversas ações, a realidade das comunidades indígenas no Brasil é outra. Dinaman Tuxá, militante social indígena, advogado e coordenador executivo da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), explica como a ausência de políticas impacta as comunidades e como as iniciativas encampadas pelos movimentos indigenistas estão ajudando a combater a covid-19 nos territórios indígenas. Confira a entrevista:

Como o coronavírus têm chegado nas comunidades? Como está a situação na Aldeia Tuxá?
A realidade das comunidades indígenas do nordeste é de comunidades que tem um problema, que é a aproximação dos centros urbanos. Isso acaba gerando vulnerabilidade nas comunidades, não só na minha, mas outras mais que têm essa aproximação. Mesmo assim, nós tentamos algumas medidas, uma delas foi a criação de barreiras para impedir a entrada de pessoas estranhas nesse contexto comunitário e também o fluxo de indígenas que acabam indo buscar ajuda, atendimento, auxílio, como o emergencial, para amenizar o impacto causado pelo coronavírus. Aqui, especificamente na minha comunidade, nós tivemos casos suspeitos, que foram descartados e, mesmo assim, nós continuamos com o trabalho de conscientização, de higienização dos espaços que nós temos que são de uso coletivo e estamos buscando ajuda para que garantam nossa soberania alimentar, porque as terras não foram demarcadas e isso causa um outro problema social, que é a vulnerabilidade que se perpetua há anos pela ausência do Estado para concluir o processo de demarcação e a minha comunidade, especificamente, acaba se tornando mais vulnerável a esse tipo de situação nesse contexto de pandemia, porque isso impede a nossa autonomia. Nós precisamos que o Estado atue de forma mais presente e é o que nós estamos sentindo nesse momento, que nunca esteve presente e ainda mais agora no contexto da pandemia.

Como a comunidade indígena analisa o aparelhamento evangélico dentro da FUNAI? Como o desmonte da FUNAI impacta na falta de estrutura, especialmente nesse momento?
A FUNAI passa por um processo de desmantelamento. Desmonte é muito pouco pra dizer pelo que a FUNAI passou, ela passa por um desmantelamento porque ele se configura não só no enfraquecimento de uma política indigenista, como o cabide de empregos a serviço do grande latifúndio e agora, também, o interesse da bancada evangélica no Congresso Nacional que tem no seu DNA o intuito de querer catequizar através das missões em locais isolados. Não é a toa que eles conseguiram, e agora foi revogado pela justiça, a nomeação de um evangélico [Ricardo Lopes Dias] que faz parte de uma organização que tem o intuito de colonizar e catequizar os indígenas isolados que inclusive chegaram a comprar helicópteros para acessar essas áreas mais isoladas da Amazônia Brasileira.

A FUNAI passa por um momento bastante frágil, politicamente e economicamente falando. Hoje, nós temos um quadro funcional bastante reduzido, a FUNAI hoje conta com poucos servidores e aqueles que foram contratados, que são os cargos de confiança, eles estão entrando sem qualquer caráter técnico, que não tem conhecimento da política indigenista, que requer minimamente pessoas que tenham algum conhecimento para lidar com essa situação porque são povos e situações que tem especificidades. Colocar um militar, um delegado da Polícia Federal para gerenciar e administrar um órgão indigenista é querer implementar uma ideologia que contradiz com os povos indígenas, que é o que está acontecendo, porque hoje o presidente da FUNAI é um delegado, ele desconhece a realidade dos povos indígenas e foi nomeado justamente por atuar contra o direito desses povos, porque ele fez parte da CPI que tentou criminalizar servidores e organizações indígenas e indigenistas que pleiteiam a demarcação das terras.

Ele assina a Instrução Normativa 09 em parceria com o Nabhan Garcia, que é o secretário que discute a questão fundiária do país junto com o agronegócio e fica evidente que há uma parceria, que é algo descabido entre o presidente da FUNAI e o agronegócio para flexibilizar e premiar invasores de terras indígenas e permitir o comércio de áreas que estão em vias de demarcação para o poder privado ou qualquer outro que tenha interesse em adquirir as terras. É tamanho absurdo que nós que lutamos contra essa pauta da necropolítica deste governo contra a população indígena estamos sem acreditar, porque a instituição que tem o dever de proteger e promover o direito indígena se alia a bancada que vem historicamente atuando contra esses povos, que é autora de genocídios no passado e na atualidade e nós nos deparamos que essa instituição além de estar infestada de pessoas que não tem caráter técnico, são pessoas anti indígenas que estão apoiando esse tipo de prática de violência contra os povos indígenas. Estamos buscando através de órgão internacionais, da Suprema Corte, para tentar interferir minimamente nessas ações do Executivo que está promovendo e aumentando a violência contra os povos indígenas, principalmente dentro da nossa instituição, que é a FUNAI.

O Projeto de lei 1142/20 que iria propor medidas de enfrentamento à covid-19 para os povos indígenas estava tramitando e foi esvaziado pela bancada ruralista por esse conflito de interesses. Como esse projeto que agora se restringe a comunidades aldeadas poderia ajudar os povos indígenas?
Esse PL, quando foi pensado, houve um diálogo entre a proponente, a deputada Rosa Neide (PT/MT) e como relatora a  Joenia Wapichana (REDE/RR), que é indígena e faz parte do Congresso e vem discutindo com o movimento indígena e apontando caminhos com diálogo de forma democrática com os agentes beneficiados pelo PL 1142. Esse PL vinha para minimizar os impactos ocasionados pelo coronavírus e direcionar ações não só para os povos indígenas, mas comunidades quilombolas e tradicionais que nesse momento são os segmentos mais vulneráveis ao coronavírus e onde ele está se expandindo de forma muito rápida, porque o contexto comunitário favorece isso.

Houve o desmonte dessa proposta porque eles tentam não reconhecer os indígenas que estão em perímetro urbano, que precisaram sair das suas comunidades para fugir de ameaça das invasões promovidas pelo Estado, pela ausência do Estado que causou a evasão desses indígenas e promoveu a retirada forçosa dos territórios tradicionais. Esse PL ele vem para tentar suprir um plano emergencial que deveria ser realizado pelo Governo Federal e outras instituições. O coronavírus está aí desde janeiro e nós não temos um plano emergencial, de contingenciamento, nem contra essas ações do Governo Federal. Então pensando nisso, foi tentado dialogar com o Congresso para obrigar o Estado a criar um plano para combater a fome, a miséria e o coronavírus nessas áreas.

Os congressistas que têm caráter duvidoso, que vêm de outros mandatos legislando em causa própria e das grandes corporações e latifundiários, principalmente da bancada evangélica, que dentro do texto do PL incluía alguns "jabutis", que é autorizar e permitir a presença de missionários na terra indígena em contexto de pandemia, sendo que essas áreas isoladas são protegidas pela Constituição, não podem ter interferência do Estado a não ser em situação de calamidade. Esse texto flexibiliza isso e retira pessoas que têm vulnerabilidade no contexto urbano e tem que saber o histórico, porque ela está naquele contexto. O Estado, mais uma vez, nega aos indígenas o direito de serem assistidos por uma política específica, e nem é o Estado, mas os congressistas que tentam legislar retirando os indígenas, ribeirinhos, que não estão dentro do seus territórios a a acessar uma política específica, ocasionando mais um dano, que necessita de reparação histórica, mas isso não vai ser feito, porque as pessoas no Congresso legislam para si e contra as populações indígenas e os povos tradicionais e quilombolas.

Com a ausência do Estado e da FUNAI, o que as comunidades vêm tendo de iniciativa e quais ações estão fazendo para diminuir os impactos do coronavírus?
Nós temos a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), além da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da organizações regionais e a primeira iniciativa foi fazer as barreiras sanitárias como medidas de proteção, já que nós percebemos que o Estado não ia cumprir essas funções. Então, nós temos que nos proteger de alguma forma e as barreiras deram certo mesmo com casos confirmados dentro das terras indígenas, porque nós conseguimos retardar a entrada dessa doença e estamos conseguindo monitorar por conta própria e com os profissionais de saúde que atuam nas terras indígenas, mas há um monitoramento sendo realizado pelas lideranças, pela comunidade e pelas organizações regionais que estão sempre em contato conosco.

Iniciativas como as barreiras sanitárias precisam ser fomentadas, então nós estamos fazendo uma vaquinha online e estamos angariando recursos para adquirir insumos para que essas barreiras permaneçam, como também recurso para álcool em gel, material de higiene, confecção de máscaras. Para Pernambuco, a APOINME conseguiu 5 mil máscaras para distribuir entre as comunidades e foram iniciativas para tentar suprir a ausência do estado, mas tem uma questão que é muito central, que é a questão do alimento. Nós precisamos articular com outras redes solidárias, a exemplo do MST, que tem um sistema de produção sólido. Estamos buscando parcerias com outras organizações que possam nos dar as mãos para que a gente possa amenizar os impactos causados pelo coronavírus. Tem iniciativas mais específicas como as barreiras e as máscaras, mas precisamos desse apoio nesse momento tão ruim para todo mundo.

Precisamos dar as mãos, porque ninguém solta a mão de ninguém e na oportunidade de um ajudar o outro é importante fazer essas relações e se ajudar de alguma forma, porque a falta de alimento hoje, apesar do isolamento das barreiras, é o que mais está faltando. É o que as pessoas estão indo buscar por não ter o território demarcado, por justamente, o Estado não se fazer presente e aí nós não temos autonomia ainda, porque não temos terra demarcada para produzir e nos sustentar sem precisar sair das nossas áreas. São medidas que já foram tomadas e algumas estamos correndo atrás para garantir o alimento para as nossas comunidades, porque está fazendo falta e muitos indígenas estão passando por necessidade.

Edição: Marcos Barbosa