Rio Grande do Sul

Coronavírus

Nova pesquisa revela epidemia de desinformação no YouTube

Além do YouTube ser a segunda maior rede social do mundo, tem 120 milhões de usuários no Brasil

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Sede do Youtube na Califórnia, Estados Unidos - Josh Edelson / AFP

Símbolos representam a “marca da besta” nos pronunciamentos do governo da China na TV. O sinal também aparece em cenas do Big Brother Brasil e a Rede Globo, que exibe o programa, e está envolvida na manipulação climática. A Organização Mundial da Saúde esconde a cura da covid-19 que seria uma arma biológica desenvolvida pelos chineses. Aliás, o presidente Xi Jinping associou-se ao governador de São Paulo, João Dória, e ao secretário geral da OMS, Terdros Ghebreyesus, em uma conspiração global comunista para destruir o modo de vida ocidental.

Tudo isso que você está lendo vem sendo propagado agora para milhões de brasileiros em vídeos do YouTube. E muitos deles tem no canal a sua principal fonte de informação. É o que revela o estudo “Ciência Contaminada - Analisando o Contágio de Desinformação sobre Coronavírus Via YouTube”, dos pesquisadores Caio Vieira Machado, Daniel Dourado, João Guilherme dos Santos e Nina Santos, vinculados ao Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa).

120 milhões de usuários

Percebe-se que, além dos cuidados pessoais, médicos e hospitalares, o enfrentamento à covid-19 também deve acontecer no front da informação, na batalha contra as notícias falsas. “Esta precisa ser uma frente no combate à pandemia”, avisa João Guilherme dos Santos, um dos autores do levantamento.

Eles escolheram o YouTube porque, além de ser a segunda maior rede social do mundo, tem 120 milhões de usuários no Brasil, detendo 15% de participação (share) dos vídeos assistidos, perdendo apenas para a TV Globo, que possui 18%. Notam que a desinformação migrou para o canal sobretudo após o ano eleitoral de 2018 quando o Facebook removeu centenas de páginas de conteúdo falso. Santos agrega que, também em 2018, diversos estudos sobre o WhatsApp destacaram a grande quantidade de links para vídeos do YouTube, ampliando seu alcance. 

Mais de 11 mil vídeos

Entre 1º de fevereiro e 17 de março, 11.546 vídeos com o assunto coronavírus foram analisados. Identificou-se a origem, o alcance em visualizações e o engajamento, no caso, por exemplo, as curtidas de cada peça. Juntos, os vídeos somaram 486 milhões de visualizações e 16,7 milhões de curtidas. Examinou-se o conteúdo verbal de 1.146 horas de gravação, 145.993 comentários e 10.434 descrições. É apenas a primeira fase do projeto “Democracia Infectada”, tocado pelos quatro pesquisadores.

Santos lembra que, com o isolamento social, o consumo de vídeos online no Brasil cresceu 8,1 para 19 horas semanais. Adverte sobre o perigo de espalhar conteúdo enganoso num meio com alta penetração na população mais pobre, mais distante de informações confiáveis.

A conspiração do porco-espinho

O estudo encontrou “forte rejeição” e “distorções” aos conteúdos científicos em muitas redes. Uma narrativa, por exemplo, culpa a China, acusando-a de ter criado o coronavírus, algo sem respaldo em qualquer investigação. Outra, vinculada à religião, tenta enquadrar a pandemia na simbologia bíblica.

O caudal da desinformação chega a disparates como a associação do pangolim – animal suspeito de transmitir o vírus aos humanos – com o porco-espinho Sonic, personagem que migrou dos games japoneses para o cinema. Como existe alguma semelhança entre os dois bichos, Sonic passou a fazer parte de uma trama conspiratória mundial...

Disseminam-se recomendações em conflito com as orientações médicas ou, ainda, garante-se que os danos da covid-19 são iguais aos da gripe comum. Pregadores respaldam teorias conspiratórias e, sem qualquer qualificação, questionam conclusões de peritos no tema. Outros canais se valem da epidemia para auferir lucros. São aqueles que, novamente sem comprovação, vendem uma suposta proteção contra a doença.

Os chips de controle da Globo

“É preciso lembrar a diferença entre cinismo e ceticismo”, salienta Santos. Nota que o ceticismo é saudável, uma postura de dúvida e exigência de comprovações. Já o cinismo, ao contrário, é postura de certeza com relação a ausência de legitimidade das autoridades e suas intenções. Com base no cinismo, “organizações científicas são atacadas e consideradas ilegítimas por não estarem alinhadas a um projeto político específico”, ressalta.

Entre os canais esquadrinhados, a pesquisa destaca alguns, como o do canal Desperte-Thiago Lima. Com um milhão de assinantes – quatro vezes mais do que o canal do Ministério da Saúde – “mistura temáticas conspiratórias religiosas, misticistas e de cunho geopolítico”. Nessa salada acusa a Rede Globo de pretender implantar chips de controle na população, detecta a “marca da besta” no Big Brother Brasil e implica a emissora na manipulação climática.


O pesquisador João Guilherme dos Santos diz que o enfrentamento à covid-19 também deve se dar no front da informação / Guilherme Santos/Sul21

Guerra contra o ocidente

Outro canal, o Questione-se, com 600 mil seguidores, sugere que o presidente russo Vladimir Putin e o chinês Xi Jinping planejam uma guerra contra o ocidente. Jinping também estaria unido aos governadores para dar um golpe em Jair Bolsonaro, enquanto a OMS esconderia a cura da covid-19. A meta seria “a destruição do Brasil”. Bolsonaro e Donald Trump são exibidos como paladinos do Ocidente que desafiam a Nova Ordem Global.

O segmento da religião acumula mais de 11 milhões de visualizações, um milhão de curtidas e 67 mil comentários. Embora seja compreensível a leitura religiosa do fenômeno, “há casos em que o discurso religioso empregado nos vídeos serve para desqualificar elementos da ciência ligados à pandemia”, registra o estudo.

A Bíblia quer o contágio

No caso do pastor Silas Malafaia, relatórios da OMS são usados para minimizar o impacto da doença. Em vez de recomendar o isolamento, como preconiza a organização, Malafaia chama de “histeria” a preocupação mundial com a covid-19. Defende que Bolsonaro é “vítima de notícias enviesadas pelo fato de combater a ‘mamata’ de uma imprensa ‘esquerdopata’”. Propondo-se a explicar a existência de doenças a partir da Bíblia, defende que “o contágio de todos é um princípio estabelecido pelo próprio texto religioso”.

Existem também os canais de médicos ou de pessoas que se apresentam como médicos. Seus vídeos foram vistos por 35 milhões de pessoas. Poderia ser algo bom, mas não é bem assim. Médicos reais ou supostos viram no coronavírus uma oportunidade de negócios. Trinta por cento dos vídeos com mais de 100 mil visualizações envolvem venda de produtos que, em tese, ajudariam a evitar a covid-19.

“A gente tem esse calorzinho bom”

Na rede de vídeos que reúne os canais jornalísticos, 95% das notícias tinham origem nos próprios meios de informação e traziam as informações científicas correntes. No entanto, 4,8% “promoviam algum tipo de desinformação”. Na amostragem dos vídeos de maior impacto, com mais de 100 mil visualizações, três deles continham “informações falsas ou imprecisas”. Foram vídeos do comentarista Alexandre Garcia. 

“A ciência tá mostrando que o vírus não resiste a calor. No hemisfério Norte, daqui a pouco chega calor e aqui no hemisfério Sul, num país tropical, felizmente a gente tem esse calorzinho bom”, disse Garcia. Porém, tal fato não possui comprovação científica.

Garcia também sugere que os chineses estariam comemorando a pandemia e vincula o crescimento econômico chinês a uma sequência de epidemias. Mais uma afirmação sem confirmação. 

“Atacar o financiamento”

Na sua conclusão, a pesquisa indica que “a marca comum das campanhas de desinformação analisadas foi a minimização da gravidade da pandemia”. Acentua que a desinformação traz “efeitos nefastos, interferindo diretamente com políticas de saúde pública, a exemplo da crescente rejeição às vacinas, que causa a volta de doenças tidas como erradicadas”. Tudo se torna mais grave no caso da covid-19, contra a qual não existe vacina ou remédio, sobrando apenas o isolamento social que é minado pelas notícias falsas.

Mas o que seria possível fazer para mudar esse quadro? Para Santos, é preciso combater o incentivo à produção de informações falsas, as dinâmicas de circulação/concentração de acessos e a relação dos usuários com os vídeos. “É preciso atacar o financiamento aos produtores das informações”, enfatiza.

 

Edição: Katia Marko