Pernambuco

Reflexão

Crônica | Sem você, blue!

E talvez seja esse o bilhete que eu nunca recebi

Brasil de Fato | Recife (PE) |
E eu juro que da janela com que olho fixamente as árvores sombreadas no quadro pintado pela sua partida, eu vi uma folha cair - Reprodução

Eu lembro da primeira vez que iria lhe receber aqui. Eu olhava por essa mesma janela que olho agora. Talvez houvesse mais árvores naquele tempo e eu consigo lembrar delas com mais cor. Talvez porque era dia. Ou era a terra brilhando com a iminência da sua chegada – (Hoje, a janela guarda árvores que não reconheço. A janela parece, aos poucos, transformar-se em um quadro e as cores são frias) – Lembro da campainha. E da borbulha de possibilidades em meu estômago. Talvez fosse hoje que você aceitasse ficar comigo. Talvez eu pudesse, em breve, lhe contar dos planos que tinha feito. Mesmo daqueles mais loucos. Talvez você gostasse de todos os meus planos. Gostasse, principalmente, dos mais loucos. 

Quando você chegou, e era perceptível que havia chegado, as árvores dançavam sincronizadas. Havia o céu azul claro, com as nuvens cirrus no alto das quais você gostava. As possibilidades por dentro dançavam e se livravam das ferrugens de águas passadas. E um ritmo de rima no ar. De festa começada – (Hoje, as festas estão caladas. Não há claridade no azul do céu, nem mesmo por trás das nuvens pesadas) – Naquele tempo, e eu lembro de pensar eu sei que a felicidade é agora, mas naquele tempo a felicidade ainda tinha gosto de chance. 

Você me contava dos seus planos, mesmo que os mais loucos. E nós ríamos com a chance de sermos, ambas, loucas porque não havia nada demais em sê-las. E nos apavorava a normopatia e os planos dos outros, fechados em salas e respirando o ar condicionado. E nós ríamos – e ríamos (Hoje, eu me lembro, que ontem mesmo você já não ria quando eu contava meus devaneios. Talvez porque você já sabia que hoje seria hoje e não haveria nada de engraçado nisso). Talvez ali eu devesse ter me antenado. Mas eu lembro que eu pensava – (e seu pudesse pensar hoje diferente disso, eu pensaria) – se ela me deixar eu sobrevivo. Aliás, eu já havia sobrevivido a outras partidas. Mas eu não contava que as partidas anteriores já tinham cheiro de coisa guardada.
 
Eram partidas de dever-ir porque não há de se guardar pessoas em lugares de mofados. Eram partidas de despedidas e de sensação de sim fizemos o máximo que pudemos fazer, agora o que nos resta é deixarmo-nos. 

Eu não entendia, ali, naquela época distante, de ontem e dos dias anteriores a eles, que aquelas sobrevivências foram antes da tua acontecência pra mim. Minha sobrevivência era a condição necessária para que você me acontecesse. Mas agora que você já aconteceu, você não iria me acontecer de novo. E não dá para escapar do pensamento de que talvez se eu já tivesse desistido lá atrás eu não precisasse ter que sobreviver de novo. Mas você me aconteceu e pronto. E não é como se eu estivesse preparada. Ou como se meu processo de sobrevivência tivesse chegado ao fim e agora tudo bem já estou pronta. Não. Mas foi você acontecer que eu pensei não importa o quanto mais haja de tempo, eu sobreviveria e no fim olharia pela janela as árvores, as cores quentes, as nuvens cirrus e pensaria: como é bom continuar a acontecer – (Hoje, essa janela que mais parece quadro, a mesma a testemunhar a tua acontecência, aparenta não querer ouvir o segredo que a sua partida deixou no ar). 

Era mais fácil quando você me acontecia todos os dias. Alguns dias mais do que outros. Mas sempre algum acontecer, mesmo que pouco. Quando você me acontecia – (e essa quando termina hoje) – Mas quando você me aconteceu foi em gerúndio – (Talvez a parte curiosa seja que enquanto você foi me acontecendo eu desancotecia pra você e por isso chegamos aqui e passamos do dia de ontem pra hoje) – Nem sempre era sereno. Mas normalmente sim. E quando fugíamos do normal, depois ríamos e pensávamos vamos ao parque para que nosso amor não sufoque pelo condicionamento do ar – (não nego que hoje eu escrevo sobre nós com os olhos generosos de quem é mais sábio) – Eu sei, nem sempre era sereno. Mas havia sempre, mesmo que no fundo das palavras lançadas que iam do você esqueceu de desligar a cafeteira até não adianta falar o que eu penso você não sabe me ouvir, havia sempre esse sabor de possibilidade. E era ele quem aquecia por dentro quando a frieza queimava.

De qualquer forma, hoje, as cores são frias. Nas janelas e a única quentura vem da xícara de café em cima da mesa onde não havia nenhuma resposta. E, ao olhar a sala vazia – cheia de sofá, TV etc. – eu invejei Caio e pensei que sorte teria se houvesse ao menos um bilhete explicando por que você me deixaria. E se houvesse ao menos a chance de que entrasse pela janela um resto de vermelho dourado do pôr-do-sol. Ou a chance de ter uma mãe do sul pra me ligar e perguntar que tempo fazia e o resto das coisas que ela perguntaria. Talvez assim o seu desacontecimento não fosse tão ruim. E em vez do tempo dissolver o silêncio, dissolvesse as letras dos ditos e suas palavras fossem tão doces e sinceras que eu pensasse dói, mas se eu a encontrar amanhã vou abraçá-la porque ninguém nunca me falou palavras tão bonitristes assim.

Mas não havia bilhete em cima da mesa com o café quente. Talvez o vapor trouxesse palavras suas escritas nos vidros da casa e por isso me danei a perseguir meus espelhos, mas não havia nada. Ainda que eu encare e aperte meus olhos e olhe fixamente para o vidro e mesmo assim, nada – (Ontem, ao olhar para os espelhos, havia tantas formas nele e se eu os mirasse, mesmo que de relance, podia assistir suas mãos desenhando em sua boca seu batom vermelho ou suas mãos desenhando seus cachos sem reparar em um ou dois fios de cabelo que caiam, os quais eu encontrava depois pela casa enquanto pensava coitado desses fios de cabelo que não podem mais sentir suas mãos neles).

Hoje eu sou esses fios e sinto um pouco de raiva da tecnologia e de como agora eu não posso sequer me sentar ao lado do telefone para esperar sua não-ligação e dormir com as pernas doloridas de tanto tempo cruzadas no sofá vazio em minha sala sem pôr-do-sol e reflexos. Logo hoje que não há chance deu sair dessa sala sem cor porque um vírus fechou todos os bares e restaurantes e não há nem lugar onde eu possa dizer preciso de uma cerveja e um quartinho da cachaça que tem. Logo hoje que não há praia, nem lugar nenhum onde eu possa colocar minha cabeça pra diluir meus fantasmas. Justo hoje em que não há álcool 70 pra limpar as janelas e queimar por dentro e conseguir dissolver sua presença opaca, seu silêncio de hastes. Só esse café incapaz de escrever sua despedida em espelhos. Esse café que eu tomo tentando digerir o não-dito.

E há – sim, óbvio que há – e não me recuso a dizer que há, nem a ver que há ou mesmo a imaginar existir a chance de que, em qualquer lugar, você esteja chegando com essa sua acontecência capaz de fazer a Terra girar. Mas aqui é lugar do seu desacontecimento. E eu juro que da janela com que olho fixamente as árvores sombreadas no quadro pintado pela sua partida, eu vi uma folha cair. E talvez seja esse o bilhete que eu nunca recebi.

* Crônica inspirada no conto "Sem Ana, blue", de Caio F. de Abreu

Edição: Marcos Barbosa