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Artigo | Keynesianos x monetaristas e a renda mínima de Suplicy

Discurso monetarista e neoliberal é incapaz de dar qualquer resposta tanto à crise sanitária quanto à econômica

Santa Maria | BdF RS |
Governos do mundo inteiro despejam dinheiro público e fazem intervenções estatais para enfrentar as crises da pandemia - Marcelo Horn/GERJ Fonte: Agência Senado

Em 1993 eu fazia mestrado em Economia Rural na Faculdade de Economia da UFRGS. Naquele ano, o então senador Eduardo Suplicy deu uma importante palestra no auditório da Faculdade, para toda a comunidade acadêmica. O tema: seu projeto de renda mínima, uma antiga militância sua.

A plateia se dividia quase exclusivamente entre keynesianos e monetaristas, que era mais ou menos uma representação das correntes dominantes na Faculdade e no país naquele momento. Os primeiros integravam uma série de abordagens desenvolvimentistas da época, e os segundos eram uma versão mais razoável e competente dos neoliberais de hoje: seguiam a Escola de Chicago e outros neoclássicos modernos, mas repudiavam Hayek e Von Misses, autores endeusados pelos "neoliberais de fim da história" de hoje em dia, pela radicalidade de mercado que pregavam.

Estes dois grupos protagonizavam por lá uma disputa aguda, sobretudo pelo controle da pós graduação em Economia. Mas diga-se, uma disputa democrática e saudável, nos moldes que se desenharam os debates intelectuais sobre políticas públicas no pós redemocratização. Algo muito diferente das posições monofásicas posteriores, hegemonizadas pelo neoliberalismo e que obstruem toda a opinião que fuja do mainstream fiscalista até hoje.

Suplicy se enquadrava no primeiro grupo, então os monetaristas vieram armados para combatê-lo. À frente da tropa um jovem e proeminente professor recém chegado do PhD, e que posteriormente lideraria uma virada monetarista no pós em Economia da UFRGS.

Após a palestra, já na primeira intervenção o professor tentou emparedar Suplicy, argumentando que a concessão de uma renda mínima tenderia a estimular o ócio dos trabalhadores, reduzindo a oferta de trabalho e perturbando o mercado de trabalho, o salário de equilíbrio e o nível ótimo de emprego. Era quase o mesmo argumento que usavam para se oporem à existência do salario mínimo, porque o SM imporia uma "tabela de preços" do salário que impediria a formação de uma remuneração de equilíbrio, reduzindo a eficiência do mercado de trabalho em alocar o emprego na economia. A tendência seria a ineficiência do trabalho, gerando perda geral de produtividade da economia.

Não cogitavam eles que a ideia de "mínimo", tanto para a renda quanto para o salário, era para garantir as condições "mínimas" de sobrevivência das pessoas, e mesmo o próprio direito de existir dos mais pobres. Esta questão moral não passava e não passa pela cabeça dos monetaristas/neoliberais, porque eles acreditam dogmaticamente que qualquer decisão via mercado é necessariamente boa, porque é supostamente a mais eficiente. Então, e isso vem desde Adam Smith, o mercado seria "bom" e "melhor", dois conceitos morais, mesmo sendo amoral.

Mas Suplicy não era bobo. Professor da FGV com PhD em Michigan, o senador deu uma resposta categórica, e para mim, um jovem estudante ainda inebriado pela força retórica da ciência econômica, também histórica. Ele enfileirou uma lista de reputados economistas recheada de citações, começando pelos clássicos até os atuais, à esquerda e à direita do espectro político, que defendiam algum tipo de renda mínima básica, e cotejou com dados empíricos de países que já aplicavam este tipo de política, que nos anos 1990 se disseminava sobretudo pela Europa na forma de pagamentos diretos à população, sem grandes impactos negativos sobre o desenvolvimento e a competitividade dos países.

Se eu bem me lembro, senti um pouco de vergonha alheia pelo tal professor, e se não me engano, ao final o ouvi quase pedir desculpas pela arrogância da manifestação, indo sentar um tanto constrangido. 

Conto isso não só porque a história dá voltas, tem ciclos, e quem é jovem há mais tempo como eu consegue percebê-los de dentro. Conto também porque a história tem seus credores. E devedores. 

Passou o tempo e o discurso monetarista neoliberal se tornou hegemônico não só nas faculdades de economia como também na mídia e nas políticas públicas, relegando o keynesianismo a guetos acadêmicos e ao quase esquecimento midiático. O tal professor se tornou um dos nomes mais fortes da opinião econômica do Rio Grande do Sul e ganhou palanque frequente no grupo de mídia RBS, o maior do sul do Brasil, quase como um conselheiro sobre assuntos de conjuntura e política econômica, ajudando a alastrar na opinião pública o discurso estéril da austeridade fiscal, das privatizações, das reformas econômicas e da desregulamentação dos mercados.

E o Suplicy, por seu turno, não conseguiu emplacar seu projeto de renda mínima nem nos governos do PT, seu próprio partido. Sim, porque o Bolsa Família não chega a ser um programa de renda mínima, senão um programa de "fome zero", que é bem a sua origem. 

Mas eis que a pandemia vem e recoloca as coisas noutro patamar: o discurso monetarista e neoliberal, mais uma vez, mostra-se o que há de mais anacrônico frente a crises, tornando-se incapaz de dar qualquer resposta tanto à crise sanitária quanto à econômica; governos do mundo inteiro despejam dinheiro público e fazem intervenções estatais para enfrentar as crises da pandemia; e a OCDE, aquela organização em que o Bolsonaro sonha em colocar o Brasil com o apoio do Trump, afirma que temos que aproveitar a pandemia da covid-19 para ampliar o Bolsa Família transformando-o num, imaginem, Programa de Renda Mínima. Algo que, hoje em dia, poucos economistas sérios contestariam.

Então, neste novo "espírito da era" que estamos vivendo em função da pandemia, com oportunidade de rever a importância das políticas públicas não só nos momentos de crise, mas também nos de calmaria e reconstrução, quando podemos usá-las para desenvolvermo-nos como país e como civilização, é importante lembrar quem são os credores da nossa história, aqueles que já batalhavam por isso muito antes de estarmos preparados para tanto, e quem são os devedores, aqueles que ajudaram a disseminar um discurso de repulsa ao Estado e de desconstrução das políticas públicas, tornando-nos presas fáceis de qualquer crise e atores inertes e passivos fora delas.

*Renato Souza, professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). 

Edição: Katia Marko