BLACK LIVES MATTER

Há um mês, reação ao assassinato de George Floyd iniciava levante antirracista global

Protestos contra violência policial tomaram as ruas em dezenas de países; Morte impulsionou mudanças nos EUA

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"George Floyd abriu caminhos”: o grito negro por justiça que inflamou os EUA e ecoa pelo mundo há um mês - Foto: Stephan Maturen/Getty Images/AFP

“Eu não consigo respirar. Por favor, eu não consigo respirar”. Há exatamente um mês, as últimas palavras de George Floyd, registradas por vídeos que gravaram as súplicas e o exato momento em que o homem negro de 46 anos foi asfixiado até a morte pelo policial Derek Chauvin, em Minnesota, nos Estados Unidos, começavam a repercutir em nível internacional. 

A brutal abordagem daquele 25 de maio durou 8 min 46s, tempo em que o policial passou ajoelhado sobre o pescoço de Floyd, e foi imediatamente repudiada por manifestações populares marcadas por ações diretas em Minneapolis, município onde aconteceu o crime. Delegacias e lojas foram incendiadas como forma de protesto. 

Os protestos nos mostram que há uma consciência negra e radical que está acordando em todo o país.  A revolta está no ar, as pessoas não têm mais medo. Elas estão contra-atacando

No dia seguinte, a indignação inflamou dezenas de cidades nos Estados Unidos, que também registraram danos ao patrimônio, fechamento de comércios e restaurantes, assim como conflitos entre os ativistas e a polícia. Para tentar conter as manifestações que ocorreram por dez dias consecutivos, o toque de recolher foi declarado em mais de 40 cidades e Trump chegou a ameaçar os ativistas com o uso das Forças Armadas

Em pouco tempo, os atos se espalharam por diversos países, dando início a uma revolta antirracista global que denunciou a violência policial e o racismo estrutural das forças de segurança. Um mês depois, e mesmo em meio à pandemia do novo coronavírus, o antirracismo segue como pauta contínua de manifestações de rua e da imprensa no geral. 


Imagens dos protestos de Minneapolis repercutiram pelo mundo todo / Foto: Stephan Maturen/Getty Images/AFP

Em entrevista ao Brasil de Fato, Nino Brown, ativista da coalizão Answer, sigla para Act Now to Stop War and End Racism (Agir agora para parar a guerra e acabar com racismo, em português), afirmou que desde o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968, não houve revoltas tão massivas e intensas nos Estados Unidos como as que tomaram as ruas após a morte de Floyd.
 
“Os protestos nos mostram que há uma consciência negra e radical que está acordando em todo o país.  A revolta está no ar, as pessoas não têm mais medo. Elas estão contra-atacando”, declarou Brown. 

O ativista do movimento negro não tem dúvida que o levante antirracista entrará para história e protestos contra a violência policial e estatal continuarão acontecendo. 

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Minneapolis é aqui

No mesmo dia em que Floyd foi assassinado na outra ponta do continente, o movimento negro brasileiro realizava um ato nacional online em memória de João Pedro Mattos Pinto, morto durante ação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, no dia 18 de maio.

Aos 14 anos, o menino João Pedro foi atingido na barriga enquanto brincava no quintal de casa. Com a chegada da notícia da morte de Floyd, a revolta se acentuou ainda mais entre movimentos sociais brasileiros.

No domingo seguinte, em 31 de maio, o primeiro ato Vidas Negras Importam era registrado no país, em frente ao Palácio da Guanabara, no Rio de Janeiro. Com protagonismo de moradores da periferia, o ato pressionou para que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibisse operações em favelas cariocas durante a pandemia.

Em memória de Floyd, João Pedro e tantas outras vítimas da violência policial no Brasil, manifestações foram registradas em mais de 20 cidades. Em São Paulo, por exemplo, aconteceram dois atos Vida Negras Importam, no Largo da Batata e na Av. Paulista.  

Simone Nascimento, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU) conta que muitas intervenções lembraram os quase 9 minutos em que Floyd foi asfixiado. As similaridades entre os dois países em termos de violência são inegáveis e, aqui, os casos são ainda mais frequentes. 

Em 2019, por exemplo, de acordo com informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) as polícias brasileiras mataram pelo menos 5.804 pessoas. Dessas, 4.353 eram negras. 

Nascimento destaca que os atos em todo país contaram com a presença de muitos jovens negros que repudiam a violência policial. Segundo ela, as mobilizações antirracistas conquistaram uma unidade entre todos os que estão ocupando as ruas em defesa dos direitos neste momento de crise política e socioeconômica. 

:: “I can’t breathe”: o grito negro por justiça que queima nos EUA e ecoa pelo mundo ::

“As pautas por democracia passaram a ter centralidade na questão antirracista. Fazendo com que as torcidas organizadas, por exemplo, levassem faixas com os dizeres 'vidas negras importam'. A junção de movimentos sociais na centralidade da luta antirracista e antifascista foi uma coisa muito potente. A pauta antirracista está no centro do debate internacional. É muito interessante ver e viver isso”, afirma a ativista. 

A forma com que o Brasil e os Estados Unidos lidam com as consequências da covid-19, que atingem as populações mais vulneráveis do país, também é criticada pela integrante da Marcha das Mulheres Negras. 

“Ambos [os países] têm presidentes brancos de extrema direita, autoritários, que tem instrumentalizado a pandemia para aprofundar um projeto de desigualdade que tem como base a violência racial. Não à toa estão em primeiro no número de casos da pandemia, mas já estavam em primeiros no encarceramento, na violência policial e na pobreza”. 

A junção de movimentos sociais na centralidade da luta antirracista e antifascista foi uma coisa muito potente. A pauta antirracista está no centro do debate internacional. É muito interessante ver e viver isso

Assim como em Minneapolis, a reação imediata a mais um caso de violência policial também aconteceu em São Paulo. Há dez dias, moradores da Vila Clara, zona sul de São Paulo, saíram às ruas para protestar contra o assassinato de Guilherme Silva Guedes, de 15 anos. De acordo com familiares, a PM é responsável pela morte. 

Ao menos cinco ônibus foram incendiados pela população. O policial Adriano Fernandes de Campos, suspeito de envolvimento no caso que segue em investigação, foi preso. Ele aparece nas imagens registradas momentos antes do desaparecimento do menino.

Pelo mundo

Os atos antirracistas em resposta ao assassinato de George Floyd aconteceram na França, Espanha, Itália, Alemanha, Holanda, Canadá, Buenos Aires, África do Sul, Turquia e Quênia, México, entre outros países. 

Morando desde 2014 em Sydney, na Austrália, a fotógrafa brasileira Anny Andrade enfrentou todos os receios de participar de uma manifestação sendo imigrante, mas, mesmo sem saber qual seria a reação da polícia local, fotografou os protestos que aconteceram na cidade. 

Na opinião da jovem de 25 anos, a importância de ir para as ruas lutar pelas vidas negras não é algo a ser discutido. “A maioria das pessoas no protesto eram brancas - todos estavam ali em suporte. Pela primeira vez na vida, espaços se abriam e pessoas me deixavam passar quando me viam. Policiais fecharam vias principais e organizaram uma trajetória completa para que todo mundo fosse o caminho inteiro seguro. O clima do protesto era de luto”, relata.

“Não fui à rua só por mim, mas por todos que vieram antes e que virão depois de mim. Fui e registrei aquele dia para outras pessoas possam aprender com a história e para que ela não mais se repita”, acrescenta a fotógrafa.

Segundo ela, na Austrália a violência também carrega preconceitos contra povos tradicionais. “Nem sempre me senti segura aqui por conta da cor da minha pele. Por duas vezes tive que correr pra não apanhar. Além disso, aqui aborígenes também morrem por brutalidade policial. Ou seja, quando você olha a situação de uma forma mais ampla, você percebe que o racismo mata em todos os cantos desse mundo.”

Não fui à rua só por mim, mas por todos que vieram antes e que virão depois de mim. Fui e registrei aquele dia para outras pessoas possam aprender com a história e para que ela não mais se repita

Direto da Inglaterra, onde protestos antirracistas aconteceram em diversas cidades como Bistrol, Manchester e Liverpool, Ingrid Babb, que leciona aulas para o ensino médio, comenta como o estopim reverberou na capital Londres.

Filha de pais de Trindade e Tobago e Barbados, países localizados na América Central, a professora detalha que os atos foram multirraciais e contaram com a participação de milhares de pessoas.

“Foi uma diversidades de cores e raças. Japoneses, negros, brancos. As pessoas tinham muito cartazes dizendo que vidas negras importam em todos os lugares do mundo. Foi lindo”, conta Babb.

Enquanto uma mulher negra, Babb reforça a importância da luta antirracista. “Eu realmente entendo o que significa o conceito da frase 'Black Lives Matter'. Não significa que as outras vidas não importam, mas que precisamos de ajuda porque estamos morrendo desproporcionalmente. Eu acho que George morrer daquele jeito foi o estopim para algo profundo”.


Protesto em Londres, no Reino Unido / Foto: Daniel Leal Olivas/AFP

Morando atualmente em Londres, ela relembra que há um histórico antirracista no país, Crescendo em Bristol, presenciou a onda de protestos antirracistas nas décadas de 80 e 90. Na cidade, recentemente, uma estátua de um escravagista foi derrubada durante um protesto contra o racismo. 

Babb cita ainda os chamados “distúrbios raciais” de Nothing Hill, em 1958, quando ingleses brancos e uma maioria imigrantes formada por negros caribenhos e jamaicanos, entraram em confronto direto devido ao preconceito racial. 

“Fizeram por tanto tempo que agora fazem nas ruas, abertamente. Eu tenho três filhos e uma filha. Meus meninos pegaram minhas bicicletas e foram acusados de roubá-la. Tive que ir pegar meus filhos e minhas bicicletas na delegacia. Eu penso que a estrutura das instituições funcionam perpetuando uma lógica racista. Estão tão acostumados com isso que não percebem”.

Investigações

Após a morte de George Floyd, Derek Chauvin e os outros três policiais que participaram da abordagem policial abusiva foram demitidos. Entretanto, a acusação e a abertura de um inquérito só veio após a pressão popular das ruas.

O ex-oficial que pressionou o joelho contra o pescoço da vítima foi acusado por homicídio de segundo grau, o equivalente ao homicídio doloso, quando há a intenção de matar. Ele aguarda julgamento em uma prisão de segurança máxima, com uma fiança estabelecida pela Justiça de US$ 1,25 milhão.

Os outros três ex-policiais envolvidos, Thomas Lane, Tou Thao e J. Alexander Kueng, foram indiciados como cúmplices do crime. Inertes, eles acompanharam o momento em que Chauvin sufocava Floyd e nada fizeram para impedir o ato.

Lane é o único envolvido que aguarda julgamento em liberdade após pagar uma fiança no valor de US$ 750 mil, o equivalente a R$ 3,7 milhões, no último dia 10 de junho.

Para pagar o alto valor, familiares de Lane fizeram uma página online de arrecadação financeira, que foi retirada do ar assim que ele foi libertado. Com fotos de Lane em serviço, o texto do site afirmava que o agente fez "tudo o que pôde para salvar a vida de George Floyd". 

::“Não deixaremos que escapem”, diz ativista sobre agentes cúmplices da morte de Floyd ::  

No entanto, as imagens que circularam amplamente nas redes sociais mostram Lane e Kueng ajudando Chauvin a manter Floyd prensado ao chão, mesmo estando completamente em posição de rendição.

Os policiais ignoraram os avisos de Floyd, que disse constantemente que não conseguia respirar, assim como não atenderam os pedidos de testemunhas que gravavam a abordagem. 

George Floyd abriu caminhos. Infelizmente ele teve que perder a vida de uma forma inexplicavelmente brutal para que o mundo ouvisse o que a gente vem falando há séculos: a gente merece viver e não apenas sobreviver. Se você é preto, você já nasce com um alvo nas costas

Fim da polícia?

A repercussão do assassinato trouxe à tona discussões sobre alterações estruturais na polícia de Minneapolis. A maioria dos integrantes do Conselho da Cidade, localizada no estado de Minnesota, defendeu acabar com o departamento de polícia local. 

Dos 13 conselheiros do órgão legislativo equivalente à Câmara Municipal no Brasil, nove defenderam “um novo modelo de segurança pública” para a cidade. Ainda não está claro como as mudanças serão feitas.

As reivindicações pelo desmantelamento da polícia estadunidense, bandeira carregada há décadas por ativistas negros e outros movimentos sociais, se fortaleceu após o levante antirracista internacional.

Mais do que transformações na atuação e nas abordagens policiais, os grupos têm defendido o desfinanciamento dos aparatos policiais nas cidades. Eles alegam que, principalmente em meio à pandemia da covid-19, o orçamento destinado às corporações poderia ser voltado para a população.

De forma vaga e sem falar sobre racismo, Donald Trump anunciou uma “reforma” da polícia americana no último dia 16. As novas medidas e orientações incluem a destinação de recursos por meio do Ministério de Justiça para treinamentos que "desinstalem a violência" na corporação. 

O republicano não se manifestou sobre como a nova ordem seria executada e se limitou a dizer que irá trabalhar junto ao Congresso para propostas de alterações das forças policiais de uma forma mais sólida. 

De acordo com o jornal The Washington Post, o senador republicano Tim Scott, o único político negro do partido de Trump na Casa Legislativa, será o responsável por desenvolver o texto final sobre as medidas. 


Manifestantes deitaram-se no chão, em Columbus (Ohio/Estados Unidos), para protestar contra o assassinato de George Floyd / Foto: Seth Herald/AFP

Trump citou que as alterações irão incentivar o uso de novas armas não letais para diminuir o número de vítimas fatais. O presidente disse ainda que a imobilização com o joelho, prática que levou a morte de George Floyd, está proibida. Com a ressalva de situações em que “o agente esteja em risco de vida”. 

Na opinião de Njimie Dzurinko, ativista do movimento negro e integrante do coletivo Put People First, a “reforma” anunciada por Trump não apresenta as alterações necessárias para mudar a polícia de fato. 

“[A reforma] É muito leve, não vai longe o suficiente. Ele claramente sente pressão para fazer algo antes da eleição”, critica. 

Dzurinko avalia que Trump quer aumentar sua porcentagem de votos entre a comunidade negra e latina, e por isso, agora apresenta alterações pontuais.

"Ele rejeitou os pedidos de desfinanciamento da polícia. Todos os apelos para desfinanciar e desmantelar a polícia devem acompanhar uma transformação maior da sociedade, pois a função da polícia é controlar os trabalhadores e os problemas criados pela exploração do sistema capitalista".

Precisamos revidar. Precisamos nos fortalecer. Nesse momento no mundo, vivemos o risco de tempos ainda mais duros no pós pandemia

“George Floyd abriu caminhos”

Simone Nascimento, do MNU, acredita que os protestos multirraciais, seja nos Estados Unidos, no Brasil ou em outros países, carregam também uma mensagem antissistêmica.

Para ela, o estopim contra a violência policial expôs “um sistema que nasceu desumanizando os seres humanos, desumanizando negros a partir da escravização que gerou o acúmulo necessário para a engrenagem capitalista, e que jamais colocaria vidas em primeiro lugar”. 

“Precisamos revidar. Precisamos nos fortalecer. Nesse momento no mundo, vivemos o risco de tempos ainda mais duros no pós pandemia”, diz a ativista.  

Já a fotógrafa Anny Andrade avalia que há um novo contexto da pauta antirracista após o brutal assassinato. 

George Floyd abriu caminhos. Infelizmente ele teve que perder a vida de uma forma inexplicavelmente brutal para que o mundo ouvisse o que a gente vem falando há séculos: a gente merece viver e não apenas sobreviver. Se você é preto, você já nasce com um alvo nas costas."


Morando em Sydney, na Austrália, a fotógrafa Anny Andrade participou de atos em memória de Floyd / Foto: Anny Andrade

A londrina Ingrid Babb concorda que o levante deixou uma marca. Na opinião da professora, não só os consecutivos protestos mas toda atuação do movimento Black Lives Matter, que há anos denuncia a violência contra a população negra, faz com que a sociedade revisite a história. 

“Eu tenho filhos de 20 e poucos anos e essa juventude não aguenta mais. Essa geração não vai mais tolerar isso [racismo]. Eles conhecem Malcom X, Martin Luther King e Angela Davis, que continua atuando e dando aulas em universidades. Eles [os jovens] conhecem a história e não querem que ela continue a acontecer dessa forma.”


Protesto em frente a Embaixada dos EUA na Cidade do México: mobilizações crescem em todo o mundo contra o racismo e para pedir Justiça pelo assassinato de George Floyd por policiais estadunidenses / Pedro Pardo/AFP

Edição: Leandro Melito