Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Combate às “fake news” deve começar no ensino fundamental, afirma Renata Mielli

A coordenadora do FNDC comenta o projeto prestes a ser votado às pressas no Senado e outros aspectos da comunicação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Renata destaca que projeto tem inúmeros problemas e que discutir de forma apressada não é a melhor maneira de produzir uma legislação eficaz - Arquivo pessoal

As notícias falsas enganam as pessoas, comprometem eleições, distorcem a ciência e até vendem curas milagrosas entre outros danos. Para a jornalista Renata Mielli, coordenadora do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), que reúne 69 entidades nacionais, as pessoas devem ser “vacinadas” contra as “fake news” já nos bancos escolares, com a prática de leituras críticas da mídia. Nesta terça (30), o Senado votará um projeto que combate as notícias falsas mas há temor de que o remédio seja pior do que o problema, abrindo um flanco legal para violação dos direitos dos usuários.

Aqui, Renata aborda essa polêmica e fala também de internet, rádios comunitárias, inclusão digital, monopólios de mídia e da entrega do Ministério das Comunicações para o genro de Sílvio Santos, entre outros assuntos.

Brasil de Fato RS - As fake news ameaçam a democracia, fraudam eleições, iludem as pessoas fazendo-as elegerem figuras incapacitadas para a função pública e assassinam reputações. Fake news ou notícias falsas sempre existiram, inclusive praticadas pela chamada grande imprensa, mas, agora, na era das redes, ganharam velocidade extraordinária e desinformam milhões de pessoas. Enquanto usuários das redes, como podemos reduzir seus estragos?

Renata Mielli - Não existe uma maneira única dos usuários se protegerem das chamadas fake news. É importante checar o conteúdo até quando se recebe a notícia através do Whatsapp da família. Checar em diferentes veículos. Mesmo um jornalista experiente pode, por distração, compartilhar desinformação. Deve-se também debater políticas de inclusão digital. Muitas vezes a pessoa recebe a desinformação no Whatsapp ou vê no Facebook e ela só tem um plano pré-pago de celular, não tem banda larga e tem menos possibilidade de fazer a checagem. Garantir mecanismos de universalização de acesso à internet é essencial para construir um ecossistema que permita o combate à desinformação.

BdFRS - Existe um projeto no Senado que promete combatê-las e tem votação agendada para esta terça, dia 30. Na visão do FNDC, porém, ele é ruim. Porque não serve?

Renata - A versão original do projeto, do senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE), e posteriormente o relatório do senador Angelo Coronel (PSD/BA), passaram por muitas versões. O substitutivo do senador Vieira avançou em vários aspectos. Mas, ao longo do debate, que se realizou de forma muito precária, alertou-se que o tema era muito complexo e que precisaria de mais diálogo para amadurecer. Quando o Congresso funciona de forma remota, sem as comissões, com matérias votadas diretamente no plenário de forma virtual, sem audiência e consulta pública, limita-se a discussão. As idas e vindas de versões do relator, com mais de 152 emendas, demonstram que discutir de forma açodada não é a melhor maneira de produzir uma legislação eficaz.

Algumas versões incluíram oito ou nove tipos penais diferentes, alguns ausentes do ordenamento jurídico brasileiro, com geração de penas que poderiam impactar a ação dos usuários. Isso foi excluído da última versão mas entraram outros problemas, envolvendo a identificação massiva dos usuários para terem uma conta na rede social. E isso vinculado ao número do celular ativo, o que poderia gerar cessão de dados pessoais para essas plataformas e implicando a fragilização da segurança do usuário. A versão apresentada na última quinta-feira, dia 25, às 16h40, ainda mantém problemas quanto à identificação do usuário, à rastreabilidade de conteúdos em mecanismos de serviços de mensageria privada, alguns dispositivos que podem empoderar as plataformas para fazer mais moderação de conteúdo e tendo efeitos negativos para os direitos fundamentais dos usuários.

BdFRS - Sabe-se que o tema fake news é complexo, a começar pela designação do que é, realmente, fake news. No entanto, o Senado quer votá-lo a toque de caixa, mesmo com imensa dificuldade para esgotar cada um de seus pontos. Qual a razão de tanta pressa?

Renata - Acho que o motivo é que, com a pandemia e a disseminação de desinformações, abriu-se uma janela de oportunidades para enfrentar o tema. A maioria das pessoas é favorável ao combate às fake news. Mas quando se entra no detalhamento da questão e começa a discutir os critérios e os mecanismos, você vê a complexidade. Outro fator é que os senadores e os deputados são alvo de campanhas de desinformação na internet. Por serem vítimas, querem resolver o seu problema. A gente tem tentado alertar que isso é ineficaz.


"A maioria das pessoas é favorável ao combate às fake news. Mas quando se entra no detalhamento da questão e começa a discutir os critérios e os mecanismos, você vê a complexidade" / Arquivo pessoal

BdFRS - Como notícias falsas sempre existiram e vão continuar existindo, a melhor maneira de travar sua disseminação seria aprender a reconhecê-las desde cedo, já no ensino básico. O FNDC tem uma proposta sobre isso?

Renata - É muito importante e até estruturante, desde o ensino fundamental, pensar nos conteúdos voltados à educação midiática, à leitura crítica da mídia… Assim vai se conseguir “vacinar” as pessoas contra o conteúdo desinformativo.

“A situação está ruim e não há ambiente político no Congresso para um avanço”

BdFRS - Aliás, o FNDC cuja história se mistura com a dos primeiros tempos da redemocratização, sempre defendeu que o Brasil nunca será um país verdadeiramente democrático enquanto não houver a democratização dos meios de comunicação. Hoje, como estamos nesse caminho?

Renata - Sempre defendemos que, para que se possa ter uma democracia de alta intensidade, é estratégica a democratização dos meios de comunicação, com criação de regras e mecanismos de ampliação da diversidade e da pluralidade de vozes. Avançamos muito pouco. Ainda temos um sistema de radiodifusão dos mais monopolistas do planeta. Há a prevalência de empresas que dominam a produção de notícias do norte a sul do país, com concentração não só de rádios e TVs mas também na propriedade cruzada com os mesmos empresários controlando jornais e revistas.

Não conseguimos regulamentar os artigos da Constituição que vedam o monopólio. Nem regulamentar o artigo que trata da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Apenas em 2008 conseguimos criar uma empresa brasileira de comunicação, inaugurando o espaço público de comunicação em nível nacional. Mas já em 2016, com o golpe, ela foi um dos primeiros alvos do governo Temer. De lá para cá houve uma descaracterização e, agora, estamos às vésperas de um processo de privatização da EBC. Não há forma republicana para distribuição das verbas publicitárias, não há políticas públicas no campo da comunicação. A situação vai muito mal e, infelizmente, não temos um ambiente político no Congresso para propor qualquer modificação que represente um avanço. Além de não estarmos bem estamos piorando...

“O novo decreto pode tornar ainda mais explícita a concessão de canais como moeda política”

BdFRS - Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações para entregá-lo a um deputado do Centrão, coincidentemente casado com a filha do empresário Sílvio Santos. Aliás, o SBT é, junto com a Record e desde a campanha de 2018, uma das emissoras mais afinadas com Bolsonaro. Durante a ditadura militar, Silvio Santos criou – ainda na TV Globo e dentro de seu programa dominical – um espaço de bajulação chamado “A Semana do Presidente”. Isto o ajudou a ganhar a concessão dos militares de um canal que viria a ser o SBT. A impressão que se tem é que, nesse campo, o país não parece sair do mesmo lugar...

Renata - É um retrocesso gravíssimo. Não houve nenhum debate e o ministério foi recriado apenas para acomodar um grupo político que é estratégico para a atuação do governo dentro do Congresso. E piorou porque o governo levou para dentro do ministério a Secretaria de Comunicação da Presidência, antes separada, e que trata da distribuição das verbas publicitárias. Voltamos a ter um radiodifusor como ministro porque Fábio Farias é concessionário de serviços de rádio e televisão, além de genro do Sílvio Santos. É uma demonstração cabal de conflito de interesses. Virou um balcão de negócios. Um decreto assinado na semana passada pelo presidente e o ministro beneficia os radiodifusores atuais e cria um ambiente para tornar ainda mais explícita a concessão de canais de rádio e TV como moeda política.

BdFRS - Nos últimos anos, duas eleições, a de Trump, nos EUA, e de Bolsonaro, no Brasil, tiveram ajuda talvez decisiva das notícias falsas. Agora, quando nos aproximamos das eleições municipais, existe expectativa de algum progresso por aqui?

Renata - Não acho que vamos ter uma melhoria. As eleições municipais têm uma dinâmica diferente. Nas grandes cidades talvez tenhamos um impacto desses conteúdos. Mas as pessoas vão se tornando mais perspicazes, desconfiam, vão sabendo identificar o que é e o que não é falso. Outro problema que vejo são as crenças. O país está radicalizado, com uma base social que internalizou valores de uma direita ultraliberal, setores com mensagens até fascistas e nesse público não importa se o conteúdo é verdade ou loucura. O que importa é se vai validar a sua posição. Isto é muito perigoso e poderá ter impacto nas eleições municipais.

“Temos um cenário um pouco melhor do que na pré internet mas surgiram novos monopólios”

BdFRS - As grandes corporações de mídia sempre interditaram o debate sobre a democratização da comunicação, definindo-o como ameaça à “liberdade de expressão”. Então, ao surgir, a internet foi percebida pelos setores democrático-populares quase como uma emancipação, a ruptura do oligopólio e a libertação do pensamento único em vigor no país. De lá para cá, o que mudou nessa visão?

Renata - O surgimento da internet teve um impacto muito positivo para a liberdade de expressão no Brasil. Comunidades locais, tradicionais, movimentos sociais, de mulheres, de trabalhadores, movimento negro, LGBTs passaram a ter um espaço de expressão. Invisibilizados pelos meios de comunicação, passaram a existir. Nos primeiros anos, houve avaliações de que a agenda da democratização da comunicação estava até resolvida. Ocorre que, na internet, surgiram novos monopólios privados que passaram a ser os novos intermediários do que circula de informação.

As pessoas deixaram de navegar naquele “www”, aquele mundo de possibilidades, e estão cada vez mais confinadas no interior dessas redes privadas. O fluxo e a dinâmica das informações que circula nessas redes são opacos. Não se sabe o que cada usuário recebe na sua timeline. Com essas grandes plataformas surgiram novos modelos de intermediação na comunicação. Aquela história de que os intermediários tinham morrido e que agora todos falavam para todos com total liberdade e em condições de igualdade não se confirmou.


"É indiscutível que temos um cenário um pouco melhor do que tínhamos pré internet e um novo desafio de como regular esse ecossistema de comunicação digital" / Lidyane Ponciano

Apesar disso, é indiscutível que temos um cenário um pouco melhor do que tínhamos pré internet e um novo desafio de como regular esse ecossistema de comunicação digital. Compreende a regulação dessas plataformas, a garantia da produção e distribuição de conteúdo nacional nas plataformas de streaming, hoje majoritariamente norte-americano. É uma nova luta política para que o poder econômico não dite as regras do que se assiste e discute...

“Os movimentos sociais devem se aproximar das rádios comunitárias para impulsionar suas lutas”

BdFRS - As rádios comunitárias poderiam ser um instrumento de democratização da informação. No entanto, elas têm grandes problemas e grandes adversários no seu caminho. Como este tema é tratado pelo FNDC?

Renata - Elas têm um papel importante e, em muitas comunidades, só existe a rádio comunitária para divulgar as notícias, para prestar serviço. Mas sofrem tantas restrições que acabam inviabilizando seu funcionamento. São restrições econômicas até para buscar recursos na própria comunidade e técnicas, com limitações absurdas para o alcance, de potência. Temos, ainda, uma baixa compreensão dos movimentos sociais da importância dessas rádios e TVs comunitárias. Elas são o espaço dos movimentos que deveriam estar próximos desses veículos para impulsionar essa comunicação e as lutas desses mesmos movimentos. Como resultado dessa falta de compreensão, as rádios, algumas delas, acabam sendo capturadas por setores ligados a igrejas ou a prefeitos e vereadores que acabam fazendo uso ilegítimo dessas concessões comunitárias.

É fundamental as organizações populares fortalecerem esses instrumentos de comunicação. A Abraço (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias) integra a executiva do FNDC e há muito a fazer nessa agenda. Tudo sem falar no problema mais grave: mesmo nos governos populares-democráticos, as rádios comunitárias foram vistas como caso de polícia. Há falta de isonomia no tratamento dado às rádios comerciais – flexibilizações, vistas grossas a irregularidades – e aquele dado às comunitárias, com a Polícia Federal tratando os comunicadores populares como criminosos e apreendendo equipamentos.

“Precisamos elevar o tom da luta política pautando temas de soberania, desenvolvimento e direitos”

BdFRS - O país vive hoje a experiência mais próxima que já tivemos desde 1985 de um governo autoritário. Ouve-se insinuações ou ameaças claras de golpe militar. Nossa democracia hoje, e não só em termos de comunicação, está encolhendo? Se sim, o que nos cabe fazer?

Renata - É triste perceber que toda construção política, econômica, social e cultural que se buscou fazer a partir da Constituinte, tentando virar a página da ditadura, se desmanchou como um castelo de areia. Desde os anos neoliberais do FHC, a Constituição foi sendo minada pelo Congresso de forma paulatina. Não foram feitas as reformas política, tributária, dos meios de comunicação. Muitas políticas importantes dos governos Lula e Dilma não se transformaram em políticas de estado. Eram medidas administrativas. Deixamos de enfrentar questões essenciais.

O que fazer? Resistir. Resgatar bandeiras cruciais como o papel do Estado na oferta de serviços para a população—que são direitos e não podem ser tratados como oferta e demanda do mercado – o papel do SUS no combate à pandemia, a questão da educação, o fortalecimento do nosso parque de ciência e tecnologia, a valorização da universidade. Precisamos elevar o tom da luta política, colocando na pauta propostas estruturantes no campo da soberania, do desenvolvimento, da economia mas também no campo dos direitos. Parar de olhar para agendas específicas e olhar para o conjunto de agendas políticas estruturantes para a sociedade. Colocar de lado uma parte das nossas diferenças e buscar construir uma ampla unidade em torno dessas bandeiras e principalmente em defesa da democracia para enfrentar o autoritarismo que representa o governo Bolsonaro.

Edição: Marcelo Ferreira