Rio de Janeiro

REFLEXÕES

Artigo | O princípio da autodestruição e o combate à covid-19, por Leonardo Boff

Cresce mais a percepção geral de que a situação da humanidade não é sustentável

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
O humano em nós faz com que juntos nos cuidemos, juntos nos pomos em cooperação, juntos choremos - Narinder Nanu / AFP

Depois que se lançaram duas bombas atômicas primárias sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, a humanidade criou para si um pesadelo do qual não consegue mais se libertar. Ao contrário, ele se transformou numa realidade ameaçadora de nossa vida sobre este planeta e a destruição de grande parte do sistema-vida.

Criaram-se armas nucleares muito mais destrutivas, químicas e biológicas que podem destruir nossa civilização e afetar profundamente a Terra viva. Pior ainda, projetamos a inteligência artificial autônoma. Com seu algoritmo que combina bilhões de informações, recolhidas de todos os países, pode tomar decisões sem que nós saibamos. Pode, eventualmente, numa combinação enlouquecida, como já assinalamos anteriormente, penetrar nos arsenais das armas nucleares ou de igual ou maior potência letal e deslanchar uma guerra total de destruição de tudo o que existe, inclusive de si mesma. É o princípio da autodestruição. Vale dizer, está nas mãos do ser humano pôr fim à vida visível que conhecemos - ela é só 5% as 95% são vidas microscópicas invisíveis. Assenhoreamo-nos da morte. E ela pode ocorrer a qualquer momento.

Já se criou uma expressão para nomear esta fase nova da história humana, uma verdadeira era geológica: o antropoceno, vale dizer, o ser humano como a grande ameaça ao sistema-vida e ao sistema-Terra. O ser humano é o grande satã da Terra, aquele que pode dizimar, como um anticristo a si mesmo e aos outros, seus semelhantes, além de liquidar com as bases que sustentam a vida.

A intensidade do processo letal é de tal ordem que já se fala da era do necroceno. Quer dizer, a era da produção em massa da morte. Já estamos dentro da sexta extinção em massa. Agora é acelerada de forma irrefreável, dada a vontade de dominação da natureza e de seus mecanismos, da agressão direta à vida e à Gaia, a Terra viva, em função de um crescimento ilimitado, de uma acumulação absurda bens materiais a ponto de criar a “Sobrecarga da Terra”. 

Em outras palavras, chegamos a um ponto em que a Terra não consegue repor os bens e serviços naturais que lhe foram roubados e começa a mostrar um avançado processo de degeneração através dos tsunamis, tufões, degelo das calotas polares e do parmafrost, as secas prolongadas, as nevascas aterradoras e o surgimento de bactérias e vírus de difícil controle. Alguns deles como a covid-19 podem levar à morte milhões de pessoas. 

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Tais eventos são reações e até represálias da Terra face à guerra que conduzimos contra ela em todas as suas frentes. Essa morte em massa ocorre na natureza, com milhares de espécies vivas que desaparecem definitivamente por ano e também nas sociedades humanas com milhões que padecem fome, sede e toda sorte de doenças mortais.

Cresce mais e mais a percepção geral de que a situação da humanidade não é sustentável. A continuar nessa lógica perversa, vai construindo um caminho na direção de nossa própria sepultura.  

Demos um exemplo: no Brasil vivemos sob a ditadura da economia ultra neoliberal com uma política de extrema-direita, violenta e cruel para a grande maioria pobre. Perplexos, assistimos as maldades que foram feitas, anulando direitos dos trabalhadores e internacionalizando  riquezas nacionais que sustentam nossa soberania como povo. 

Os que deram o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016  aceitam a recolonização do país, feito vassalo da potência dominante, os EUA, condenado a ser apenas um exportador de commodities e um aliado menor e subalterno do projeto imperial.

O que se está fazendo na Europa contra os refugiados, rejeitando sua presença na Itália e na Inglaterra e, pior ainda, na Hungria e na catolicíssima Polônia, alcança níveis de desumanidade de grande crueldade. As medidas do presidente norte-americano Trump arrancando os filhos de seus pais imigrantes e colocando-os em jaulas, denota barbárie e ausência de qualquer senso humanitário.
Já se disse, “nenhum ser humano é uma ilha… por isso não perguntem por quem os sinos dobram. Eles dobram por cada um, por cada uma, por toda a humanidade”.

Se grandes são as trevas que se abatem sobre nossos espíritos, maiores ainda são as nossas ânsias por luz. Não deixemos que essa demência acima referida detenha a última palavra. A palavra maior e última que clama em nós e nos une a toda à humanidade é por solidariedade e por compaixão pelas vítimas, é por paz e sensatez nas relações entre os povos.

As tragédias dão-nos a dimensão da inumanidade de que somos capazes. Mas também deixam vir à tona o verdadeiramente humano que habita em nós, para além das diferenças de etnia, de ideologia e de religião. Esse humano em nós faz com que juntos nos cuidemos, juntos nos pomos em cooperação, juntos choremos, juntos nos enxuguemos as lágrimas, juntos oremos, juntos busquemos a justiça social mundial, juntos construamos a paz e juntos renunciemos à vingança e todo tipo de violência e guerra.

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 A sabedoria dos povos e a voz de nosso coração nos testemunham: não é um Estado que se fez terrorista como os Estados Unidos sob o presidente norte-americano Bush que irá vencer terrorismo. Nem é ódio aos imigrantes latinos difundido por Trump que trará a paz. É o diálogo incansável, a negociação aberta e o acordo justo que tiram as bases de qualquer terrorismo e fundam a paz.

As tragédias que nos atingiram no mais fundo de nossos corações, particularmente a pandemia viral que afetou todo o planeta, nos convidam a repensarmos os fundamentos da convivência humana na nova fase planetária, e como  cuidar da “Casa Comum”, a Terra como o pede o Papa Francisco em sua encíclica sobre a ecologia integral, “sobre o cuidado da Casa Comum”(2015).

O tempo é urgente. Desta vez não haverá um plano B, capaz de salvar-nos. Temos que nos salvar todos, pois formamos uma comunidade de destino Terra-Humanidade.

Para isso precisamos abolir a palavra inimigo. É o medo que cria o inimigo. Exorcizamos o medo quando fazemos do distante um próximo e do próximo, um irmão e uma irmã. Afastamos o medo e o inimigo quando começamos a dialogar, a nos conhecer, a nos aceitar, a nos respeitar, a nos amar, enfim, numa palavra, a nos cuidar; cuidar de nossas formas de convívio na paz, na solidariedade e na justiça; cuidar de nosso meio ambiente para que seja um ambiente inteiro, sem destruir os habitats dos vírus que nos vêm dos animais ou dos arborovírus que se situam nas florestas, ambiente este no qual seja possível  o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser; cuidar de nossa querida e generosa Mãe Terra.     

Se nos cuidamos como  irmãos e a irmãs, desaparecem as causas do medo. Ninguém precisa ameaçar ninguém. Podemos caminhar à noite por nossas ruas sem medo de sermos assaltados e roubados.

Esse cuidado será somente efetivo se vier acolitado pela justiça necessária, pelo atendimento às necessidades básicas dos mais vulneráveis, se o Estado se fizer presente com saúde, a importância que o SUS mostrou face à covid-19, com escolas, com segurança e com espaços de convivência, de cultura  e lazer. 

Só assim gozaremos de uma paz possível de ser alcançada quando houver um mínimo de boa vontade geral e um sentido de solidariedade e de benquerença nas relações humanas. Esse é o desejo inarredável da maioria dos humanos. É essa lição que a intrusão da covid-19 nos está dando e que temos que incorporá-la nos nossos hábitos pós-coronavírus.
 

Edição: Jaqueline Deister