Pernambuco

Coluna

O capitalismo e a violência contra os corpos-territórios das meninas e mulheres

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"Utilizar a religião como forma de controle não esconde a real intenção de quem quer controlar os corpos e os territórios colonizados" - Jonatas Campos
É a corporificação da pedagogia da crueldade, de imposição do medo e do terror

Ao estudarmos sobre como se deu a transição do feudalismo para o capitalismo, encontramos na ciência política liberal a conceitualização da acumulação primitiva. De acordo com os estudiosos tradicionais, essa acumulação primitiva ocorreu de forma pacífica, com a acumulação de riqueza (e economia) daqueles mercadores/comerciantes que não gastavam com luxos, em antagonismo aos outros que realizavam festas e ostentavam os privilégios que possuíam.

A teoria marxista, ao criticar essa conceitualização, defende que a “acumulação primitiva” não ocorreu em razão da simples racionalização de gastos, mas sim através do processo de escravização e colonização dos territórios africanos e indígenas e de expropriação dos trabalhadores. Todas essas três ações (colonização, escravização e expropriação) resultaram na possibilidade de acumulação e da apropriação, pelos capitalistas, dos meios de produção de riqueza.

De acordo com a teoria, o violento processo de colonização permitiu o domínio dos territórios e a extração dos recursos naturais. A escravização se deu com a exploração da mão-de-obra escravizada e, por isso, a utilização da força de trabalho sem que houvesse a retribuição financeira correspondente. Já a expropriação dos trabalhadores (camponeses, bordadeiras, costureiras) ocorreu com a retirada da propriedade necessária ao exercício da atividade que exerciam e com a expulsão daquelas e daqueles que conseguiam usar a terra para plantar e realizar atividades que garantiam a sua própria subsistência.

Atualmente, defende-se que a chamada “acumulação primitiva” não é apenas história. Isto é, os meios de violência perpetuam-se até os dias atuais, através de um processo de colonização, exploração e expropriação que dura, aperfeiçoa-se e renova-se ao longo da existência do capitalismo, com a intenção de garantir a acumulação de riqueza de alguns em contraponto à miséria, pobreza e opressão da maioria. Nos momentos de crise do capitalismo, essas formas violentas de controle emergem com ainda mais brutalidade.

Ao tratar sobre o tema de expropriação, Rita Segato chama atenção para a “pedagogia de crueldade”, na qual a matança e o estupro de mulheres funcionam como meio mais eficaz para destruir a resistência das comunidades e garantir o controle através do medo e do terror. Os corpos das mulheres são, assim, corpos-territórios a serem colonizados, escravizados e expropriados, através do controle da sexualidade e da maternidade, bem como da retirada do direito à autonomia do próprio corpo. Obviamente, essas formas de violência são definidas pelos marcadores sociais de raça e de classe.

Ao compreendermos o conceito de acumulação primitiva, unindo-a à perspectiva de que sua existência é preservada atualmente, percebemos que no Brasil, o atual cenário de precarização do trabalho através das reformas trabalhista e previdenciária, da tomada sangrenta das terras indígenas e quilombolas e do aumento da força do discurso conservador de controle da sexualidade e da maternidade são, na verdade, meios para que o capitalismo, a fim de recuperar-se da sua crise, renove e mantenha as suas formas violentas e sangrentas de expropriação, colonização e escravização.

No último dia 16 de agosto, Recife foi palco da materialização dessa violência. Em frente a um hospital, na maternidade da Encruzilhada, dezenas de pessoas se reuniram para tentar impedir a interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos de idade. O grupo exigia que a equipe médica não realizasse o procedimento para impedir que a criança gestasse e concebesse um bebê resultado de quatro anos de estupro que sofreu do seu próprio tio. A interrupção de gravidez foi autorizada pela justiça do Espírito Santo, que reconheceu tratar-se de caso de aborto permitida pelo Código Penal em seu artigo 128, pois a gravidez, além de colocar a vida da criança em risco, também foi resultado do estupro.

Na situação, vários quesitos chamam atenção: o fato dos médicos do Espirito Santo terem se recusado a cumprir a sentença e realizar o procedimento; a divulgação do nome da criança, bem como do hospital no qual seria realizado o procedimento; a perseguição contra a equipe médica responsável por realizar a interrupção da gravidez; a forma como deputados e candidatos a vereadores fizeram uso do caso com intenção eleitoreira; e a ação organizada, ágil e comprometida que as feministas recifenses, especialmente do coletivo Fórum de Mulheres, digiram-se ao local para garantir a integridade física da equipe médica e impedir a exposição da criança de 10 anos de idade aos xingamentos perversos de “assassina” que faziam contra ela e sua avó.

O que se destaca aqui, no entanto, é a pavorosa narrativa defendida por aquelas e aqueles contrários à interrupção da gravidez. Ao defenderem o feto, rejeitam completamente a absurda trajetória de violência e estupro cometida contra o corpo da menina. Ao tentarem impedir o aborto, recusam-se a reconhecer a autonomia da menina sob o seu próprio corpo.

Ao chamarem a equipe médica de assassina, fecham os olhos para o fato de que os verdadeiros assassinos do caso são aqueles que mataram a infância da criança e a sujeitaram ao constrangimento de ter que pedir permissão para não gestar um bebê que poderia lhe levar à morte. De não gestar um feto resultado da violação do seu corpo.

E, importante dizer, não por mero fanatismo religioso. Utilizar a religião como forma de controle não esconde a real intenção de quem quer controlar os corpos e os territórios colonizados. Fazem isso, também, ao tentar catequizar povos tradicionais e convertê-los ao cristianismo. No caso em questão, as preces em nome de um deus que, para os olhos daqueles, permitiu o estupro da criança e exige o nascimento do feto, são uma cortina de fumaça. Assusta, mas existe não como um fim em si mesmo.

Representam, na realidade, o ciclo de controle e sujeição das mulheres e de expropriação dos seus direitos, da sua autonomia e do seu corpo. É a corporificação da pedagogia da crueldade, de imposição do medo e do terror para controlar e tentar destruir as formas de resistência de quem, teimosamente, opõe-se ao horror.

Esvaziados de humanidade, tentam destruir nossa confiança. Mas são tolos em acreditar que conseguirão. A ação imediata e proveitosa das mulheres em Recife é prova de que podemos até estar cansadas, mas continuamos tão ou mais comprometidas em tecer nossas redes de ação e proteção. Em lutar contra o avanço do capitalismo. Em impedir e denunciar as queimadas da Amazônia. Em acolher e reforçar a voz de Mirtes, mãe de Miguel. Em fortalecer a batalha por nossos direitos trabalhistas e pela autonomia dos povos latino-americanos. Em defender e proteger nossos territórios, nossos corpos-território. E a repetir, gritar, até com nossas vozes roucas: A vida das meninas e das mulheres importa.

Edição: Vanessa Gonzaga