Rio Grande do Sul

Entrevista

“Vamos abrir um novo ciclo político em Porto Alegre”, afirma Miguel Rossetto

Rossetto fala sobre bipolarização, como a direita se esconde no debate ideológico e como fazer campanha na pandemia

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Aos 60 anos, completados em maio, Miguel Soldatelli Rossetto enfrenta mais um desafio - Ubirajara Machado

Ministro várias vezes nos governos Lula e Dilma, ex-vice-governador do Rio Grande e ex-deputado federal, o metalúrgico, sindicalista e sociólogo Miguel Soldatelli Rossetto não pára desde que ajudou a fundar o PT e a CUT. Agora, aos 60 anos completados em maio, enfrenta mais um desafio, este na condição de candidato a vice-prefeito de Porto Alegre na chapa encabeçada por Manuela D`Ávila, resultado da parceria entre PCdoB e PT.

Apesar do frentão das esquerdas ter ficado só na intenção, afirma que a união acontecerá no segundo turno, independentemente de quem chegar lá. Nesta conversa, ele fala sobre bipolarização, diz que a direita se esconde atrás do debate ideológico, lamenta a gestão Marchezan Jr. que considera “um fiasco total” e conta como se faz campanha em meio à pandemia.

Confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato RS - Em 2016, o PT teve o seu pior momento no século. Tinha 630 prefeituras e ficou apenas com 256. O que se espera para 2020?

Miguel Rossetto - 2016 foi o ano do golpe. Uma campanha difamatória que durou 10 anos teve seu ápice em plena eleição para prefeito. Milhares de horas de cobertura jornalística enviesada e agressiva, uma farsa judicial com decisões sob medida para causar impacto eleitoral e um golpe parlamentar que afastou uma presidenta sem crime. Seria difícil imaginar que qualquer partido no mundo sobrevivesse a este massacre. O PT foi a segunda legenda mais votada em POA, apenas atrás do PMDB que detinha a máquina pública e dois anos depois fez a maior bancada na Assembleia e na Câmara.

A direita não conseguiu nos destruir. Este ano, o campo popular tem a possibilidade de recuperar a iniciativa política. A alternativa que elegeram para a prefeitura é um fiasco total. Reduziu o numero de matrículas, em uma cidade com 12 mil crianças sem escolas, fechou postos de saúde em uma crise sanitária gravíssima, elevou a tarifa de ônibus ao dobro da inflação e tornou Porto Alegre a cidade de maior tarifa do país. Seus próprios aliados propõem o seu impeachment. A cidade clama por mudança. Esta mudança só a esquerda pode oferecer, por isto Manuela lidera, hoje, as pesquisas.

BdFRS - Naquele ano de 2016, em Porto Alegre, a esquerda foi dividida para a disputa da prefeitura e não chegou ao segundo turno. Em 2020, novamente a esquerda vai dividida. Por que não foi possível construir uma união?

Rossetto - Buscamos muito construir uma frente de toda a esquerda e nosso primeiro gesto foi abrir mão da cabeça de chapa numa cidade onde temos ampla tradição e implantação social. Não foi possível. Isto não significa que esta unidade não seja possível de se construir durante a disputa. O importante é não fazer o jogo da direita e manter o foco nas mudanças que queremos para a cidade. Tenho certeza que estaremos todos juntos no segundo turno e venceremos a direita na cidade.

A unidade do campo popular não é só um dever político como um dever moral

BdFRS - Não só em 2016 mas também em 2018, aqui na corrida pelo governo estadual, a esquerda não chegou ao segundo turno, que acabou disputado por dois candidatos do campo da direita, uma novidade absoluta desde a redemocratização do país. O que aconteceu com Porto Alegre e com o estado, ambos tradicionais bastiões do PT no país?

Rossetto - São ciclos históricos que temos que ter a paciência de entender e a resiliência de enfrentar. Todos acompanharam a fraude eleitoral de 2018. Prisão de Lula, delação fajuta de Palocci, etc. Agora todas estas violações começam a refluir com a autocrítica do (ministro Edson) Fachin sobre a cassação de Lula, a anulação da delação de Palocci. Mas mais importante que isto, é o aprendizado concreto de povo. Leite não cumpriu sequer a promessa de pagar o funcionalismo em dia e só trata de vender estatais enquanto o ensino agoniza e a saúde desaba. Em Porto Alegre temos o pior governo da história. Tenho certeza que abriremos outro ciclo progressista na cidade e no estado.


Em Porto Alegre, o PT se uniu ao PCdoB para a disputa de 2020 / Ubirajara Machado

BdFRS - Em Porto Alegre, o PT se uniu ao PCdoB para a disputa de 2020, mas o PSol e o PDT terão candidaturas próprias. Quem chegar ao segundo turno terá um efetivo apoio dos demais partidos de esquerda?

Rossetto - Não tenho nenhuma dúvida. Num momento político como o que vivemos, de ameaça concreta do fascismo, a unidade do campo popular não é só um dever político como um dever moral. Já aprendemos muito com a história para repetir erros de sectarismos, vaidade ou estreiteza. Vamos estar juntos. Não tenha dúvidas.

BdFRS - Em que medida a proibição das coligações proporcionais, novidade de 2020, para vereadores impactará a campanha?

Rossetto - Ainda está por se verificar. Em Porto Alegre, isto tem se manifestado em uma pulverização das candidaturas da direita. Nossa cidade tem sido governada há 16 anos pelo mesmo bloco político. Fortunati foi vice de Fogaça, Melo, vice de Fortunati e tanto o PSDB quanto o PP de Marchezan participaram até o fim do governo de Fortunati. Hoje se apresentam divididos. É possível que a pressão das legendas tenha influência nisto. Outra coisa que muda é a distribuição das cadeiras, com a nova regra, a esquerda teria uma participação maior na Câmara de Vereadores se aplicadas as atuais regras à eleição passada. Nesse cenário, o PT seguramente vai ampliar o número de vereadores, aumentando dos quatro atuais e o PCdoB vai voltar a ter representação na Câmara.

Não é possível falar de raça e gênero sem falar de desigualdade de renda

BdFRS - Os quatro mandatos presidenciais do PT foram importantes, mas, ao mesmo tempo, afastaram muitas lideranças do contato direto com as comunidades onde o partido nasceu e se firmou. Ainda é possível recuperar os laços perdidos?

Rossetto - Sem dúvida nenhuma este é um problema importante. A responsabilidade de assumir pela primeira vez um governo federal cobra seu preço. O Rio Grande do Sul, por ter um experiência administrativa maior, teve que contribuir com centenas de quadros políticos nas mais diversas áreas para esta experiência. Este deslocamento não é de fácil reposição. São quadros que são produtos de um processo histórico. O PT de Porto Alegre e do RS sofreu com isto, mas também abriu espaço para formação de novas lideranças. Se os compromissos populares do partido tiverem conexão com sua base histórica continuaremos a construir este vinculo. É disto que se trata neste momento.

BdFRS - As chamadas pautas identitárias, que tratam do racismo, da misoginia, da homofobia etc. são importantes, mas não se está esquecendo a questão crucial da brutal desigualdade de renda da sociedade brasileira?

Rossetto - Não consigo ter acordo com a premissa da pergunta. O Brasil é produto da escravidão e do patriarcado tanto quanto do capitalismo predatório. Não é possível falar de raça sem falar de desigualdade de renda, não é possível falar de gênero, sem falar de desigualdade de renda. É por isto que um trabalhador negro ganha menos que um branco na mesma função e que uma trabalhadora negra ganha ainda menos. A verdade é que a classe no Brasil tem cor. A igualdade que queremos é uma igualdade para todos e não há contradição na luta entre classe, raça e gênero, ao contrário, é este espectro que conforma a imensa maioria do povo brasileiro. Nosso desafio é forjar esta unidade.  

A privatização de hospitais públicos é uma sandice completa desta equipe econômica

BdFRS - Como será a campanha eleitoral sob a  sombra da pandemia? Como se falará ao eleitor?

Rossetto - Não há dúvidas que esta será uma eleição sui generis. Dificilmente teremos uma vacina em tempo hábil da vacinação até novembro e é pouco provável que até lá tenhamos uma cura. Então, teremos que fazer uma campanha que respeite o distanciamento social. Ganham importância as redes sociais e o horário eleitoral, o que para a esquerda não é uma boa notícia. Nosso terreno é a rua, o debate público, a mobilização da militância. Mas temos que enfrentar este desafio. Estamos fazendo reuniões virtuais com todos os setores da cidade. Já fizemos com todas as regiões, e com muitos setores como educadores, profissionais de saúde, da assistência social, etc. Tem sido uma experiência reveladora e gratificante. Sabemos que com o início da campanha enfrentaremos as mesmas máquinas de fake news do bolsonarismo. Temos que estar também preparados para isto.


Após reuniões virtuais com todos os setores da cidade, Manuela e Rossetto iniciam visitas presenciais / Divulgação

BdFRS - Aliás, devido à pandemia, ampliou-se na população a percepção da importância do SUS e, por consequência, do papel do Estado de garantir à população o acesso gratuito e universal à saúde. No entanto, na agenda de privatizações de Paulo Guedes está a privatização do Grupo Hospitalar Conceição e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, duas das maiores estruturas hospitalares do Estado e essenciais no combate ao coronavírus. Esta será uma questão da campanha?

Rossetto - Esta é uma questão absolutamente central. Em primeiro lugar, porque a pandemia não acabou e não acabará neste mandato. Então temos que ter uma estratégia para a gestão dela, coisa que este governo nunca teve. Mesmo que haja uma vacina, ela exige um enorme esforço de vacinação em curto período de tempo. Mas além deste desafio que é gigantesco, ainda há o enorme represamento de outros adoecimentos que ficaram sem tratamento, exames, atendimento. Porto Alegre perdeu muito em capacidade de atendimento básico. Só do Mais Médicos perdemos 130 médicos do nosso sistema. A privatização dos hospitais públicos é uma sandice completa desta equipe econômica. Com qual renda eles pensam que a população vai pagar procedimentos privados, ainda mais na maior crise econômica da história? É papel irrevogável da próxima gestão lutar contra estas propostas genocidas, bem como pela revogação da PEC do Teto.

Temos 12 mil crianças de 0 a 5 anos sem escola infantil em Porto Alegre. É intolerável

BdFRS - Em 2020, no rescaldo da pandemia ou dentro ainda dela, haverá temas maiores do que “Saúde” e “Emprego”?

Rossetto - Estas duas pautas se referem à preservação da vida. Uma pelo óbvio risco de adoecimento e morte e outra pelo desaparecimento dos meios de subsistência. São crises gravíssimas que estarão no centro do debate. Um debate que coloca modelos de sociedade que queremos. O liberalismo hoje assumiu a face da necropolítica. Seu imperativo de acumulação impõe cortes que resultam na morte seja pela doença seja pela fome. Mas há outros temas que teremos de enfrentar. O transporte público já é insustentável, hoje, e com uma população empobrecida e precarizada (portanto sem vale transporte) chegará ao ponto da impossibilidade. Precisamos reformá-lo. Temos 12 mil crianças de 0 a 5 anos sem escola infantil em Porto Alegre. É intolerável.

Precisamos de um plano de inclusão urgente. Temos que reorganizar a cidade, hoje sob o jugo da especulação imobiliária. Para isto precisamos fazer um novo plano diretor com ampla participação popular. Eleitos, em 2021 vamos convocar uma grande conferência da cidade para discutir o plano diretor. Todos os bairros e vilas vão falar. Vamos recuperar a agenda ambiental, destruída hoje, em Porto Alegre. E, depois de 10 anos, vamos reorganizar essa agenda a partir de uma conferência municipal do meio ambiente. Ou seja, precisamos pensar numa cidade inclusiva e democrática, renovar os instrumentos e formas que a população conhece e gosta, como o Orçamento Participativo e os conselhos setoriais, agora com todos os recursos tecnológicos que permitem ampliar a comunicação permanente da população com o governo. Que a vida seja o princípio e que a vida plena seja possível para todos. 

BdFRS - Temos uma bipolarização fortíssima na sociedade brasileira, exacerbada pelo golpe de 2016 e a eleição da extrema-direita em 2018. Ela prevalecerá nas eleições municipais, onde as temáticas locais costumam preponderar?

Rossetto - Acredito que teremos esta polarização reproduzida a nível local. Até porque estas visões de mundo se expressam também no debate sobre a cidade. A cidade como mercadoria a ser auto regulada pela especulação imobiliária ou a cidade como local de convívio regulada coletivamente pela participação cidadã, a visão egoísta do privilégio do transporte individual ou a visão coletiva do transporte público acessível, a privatização do espaço público como quer o prefeito como a Orla e o Mercado Público ou a fruição comunitária destes espaços.

Há visões diferentes de cidade. Mas isto deve ser desvelado à população em coisas concretas, reais, tangíveis e não num debate meramente ideológico. A ideologia é o grande biombo que a direita tem usado para esconder seus reais interesses de classe. Retirar este biombo e mostrar as reais opções é o melhor caminho para a esquerda voltar a conquistar os corações e mentes dos porto-alegrenses.

A Manuela e eu estamos nessa eleição para ganhar. Nossa aliança está preparada para governar Porto Alegre. Estamos construindo nossa agenda há meses. Realizamos centenas de reuniões com todos os bairros e regiões de Porto Alegre, com lideranças populares, construindo um programa para transformar nossa cidade. Estamos preparados para voltar a governar Porto Alegre como fizemos em 1989, quando derrotamos os governos conservadores. Vamos abrir um novo ciclo político em Porto Alegre.

Edição: Ayrton Centeno e Katia Marko