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Por que falar de neoliberalismo em plena pandemia?

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Trata-se, novamente, de inibir que o Estado aja ativamente para garantir a saúde, a moradia, a alimentação e a educação das pessoas - Reprodução/GGN
O coronavírus adoece e mata. O neoliberalismo é um vírus que destrói toda e qualquer forma de vida.

Após o fim da primeira guerra mundial os países do centro - Europa e Estados Unidos - passaram a repensar o modelo socioeconômico liberal que defendia o livre mercado e a pouca intervenção do Estado na economia. Com o fim da guerra e a crise econômica de 1929, a teoria liberal é desgastada em razão da incapacidade do liberalismo em reverter o cenário de desemprego e miséria. Com a crise da teoria liberal, surgiram (ou ressurgiram) correntes teóricas que repensavam a forma de organização social e, por vias democráticas ou autoritárias, aproximavam o Estado como agente ativo na economia e na garantia dos direitos básicos dos cidadãos.


Com o desgaste da teoria, o modelo de Estado intervencionistas e que garantia o bem estar social ganhou força na década de 1930. No mesmo período os liberais passaram a reformular a teoria liberal, fundando aquilo que hoje é denominado neoliberalismo. Em razão do crescimento dos modelos do bem estar social, o neoliberalismo não teve impacto e influência imediata. Contudo, passou a ser formulado nas academias e a ser pensado partindo do pressuposto que o liberalismo fracassou em organizar a sociedade e com a tentativa de corrigir os motivos desse fracasso. Foi apenas na década de 1970 que o neoliberalismo passou a ser influente e, consequentemente, a ganhar poder e passar a gerir a sociedade.


Uma das mudanças principais na teoria foi a modificação do pensamento naturalista de que as forças do mercado financeiro propiciariam espontaneamente o equilíbrio social e econômico. De acordo com a ideologia neoliberal, o Estado não deve ser suprimido nas relações sociais e econômicas e, assim, nega a perspectiva liberal de que o mercado sozinho irá garantir a liberdade individual e o equilíbrio econômico. Para o neoliberalismo, é necessário se construir uma ordem institucional e jurídica que proteja e incentive o funcionamento do mercado e a competição entre as pessoas.

Sendo assim, o Estado seria responsável por regular a competição, a concorrência e permitir o livre mercado. E, com a alimentação da força do livre mercado, o Estado seria controlado por esse próprio mercado, sendo impedido de tornar-se totalitário e de usurpar as liberdades individuais.
No entanto, o neoliberalismo não se voltou apenas para o controle do mercado e do Estado, mas seria fundamental na construção de uma “nova razão” do mundo, ou seja, uma nova forma de organização social. Seria um poder cultural de modificar a forma de se pensar e de se estar no mundo, forjando as instituições a partir da perspectiva da competitividade e construindo a subjetividade dos indivíduos a partir da lógica de concorrência entre as pessoas, que leva a individualização do sujeito. 


Para o neoliberalismo, o individualismo gera aspectos positivos para a sociedade, porque ao concorrerem entre si, as pessoas geram bem estar coletivo. Ainda de acordo com essa “nova forma de estar no mundo”, o sucesso e o fracasso seriam baseados na meritocracia, ou seja, na perspectiva de problema individual para o desemprego, a miséria, a fome. Em outras palavras, o sujeito seria responsável por não conseguir emprego e ter uma boa vida e não seria um problema coletivo da sociedade, sendo assim, não seria a função do Estado agir para garantir empregos e promover garantias sociais de saúde, moradia, educação e alimentação.


Essa perspectiva não só relativiza, mas nega a ideia de solidariedade. Ou seja, recusa a ideia de coletividade, para valorizar a livre iniciativa do indivíduo. E, ainda, entende que os indivíduos devem ser submetidos ao risco, ou seja, não podem ter garantias trabalhistas, previdenciárias e de saúde, pois devem temer o desemprego, a velhice e a morte com a finalidade de se manterem produtivos para o sistema.


Quando Jair Bolsonaro se recusa a traçar estratégias federais para combater a pandemia e não se responsabiliza, enquanto chefe de Estado, pelo alastramento do coronavírus, apoia-se justamente na ideologia neoliberal de que a saúde e a vida do indivíduo não é um problema coletivo, mas individual. Cabe, assim, ao indivíduo manter-se vivo e produtivo, pois apenas dessa forma poderá garantir o seu próprio bem estar social. 
É em razão do viés neoliberal do atual governo federal, por exemplo, que o auxílio emergencial foi, inicialmente, rechaçado por Bolsonaro. No início da pandemia, o Presidente da República posicionou-se veementemente contra o auxílio e foi apenas em razão da oposição que o programa emergencial foi implementado. Hoje, contudo, Bolsonaro se vangloria do programa e omite em seus outdoors espalhados pelas cidades do Brasil que, a depender dele, o auxílio emergencial não existiria.


As críticas ao neoliberalismo são extensas, mas a atual situação do Brasil permite uma síntese em relação a pelo menos uma dessas críticas. Ao posicionar-se em defesa da abertura dos comércios e contra o isolamento social, Bolsonaro deixa evidente que sua preocupação maior é com a saúde do mercado, mesmo que para manter essa saúde, sejam necessárias mais de 117 mil mortes evitáveis de brasileiras e brasileiros. Trata-se, novamente, de inibir que o Estado aja ativamente para garantir a saúde, a moradia, a alimentação e a educação das pessoas. E, assim, responsabilizar individualmente cada um de nós pelo sucesso ou pelo fracasso de manter nossa dignidade e de nos mantermos vivas e vivos.


E pior, por tratar-se de uma nova forma de organização social, o neoliberalismo, impregnado em nossa subjetividade enquanto sujeitas e sujeitos no mundo, faz com que milhares, ou melhor, milhões de brasileiros e brasileiras ajam com tanta naturalidade frente à elevada quantidade de mortes causadas pelo vírus. A escassez do sentimento de coletividade, a falta de solidariedade e empatia para com os demais e a inexistência de uma consciência de responsabilidade social repercute, exatamente, na ausência de revolta contra um governo que, até hoje, não fez absolutamente nada para impedir o contágio e a morte.


O coronavírus adoece e mata. O neoliberalismo é um vírus que destrói toda e qualquer forma de vida. Precisamos de uma vacina para ambos.

Edição: Vanessa Gonzaga