Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Faltam lágrimas e sobra indiferença

Bolsonaro nega a pandemia e manda vibrar rígido o chicote, retirando direitos e avançando na direção do passado

Sul 21 | Porto Alegre |
"Até quando emprestaremos as cores da nossa bandeira para encobrir tanta infâmia e covardia?" - Divulgação

Ao norte de Angola, próximo da província de Cabinda, avista-se as belas praias de Malembo. Hoje, fortemente protegidas pelas empresas petrolíferas. No passado, um enclave para o tráfico de seres humanos. No alto do morro que dá acesso ao mar, uma placa cravada em um imponente embondeiro traz a inscrição: “lugar de concentração de escravo de Chinfuca”. Um dos monumentos a céu aberto a nos alertar até onde a ganância e o desprezo pela vida alheia podem nos arrastar.

Esse antigo entreposto une a África ao Brasil em algo abominável. Por lá, milhares de africanos, cruelmente capturados, foram desterrados para nunca mais retornarem. O continente africano alimentou a voracidade dos nossos colonizadores com 5 milhões de seres humanos traficados em navios negreiros, cinicamente batizados de “boa intenção”, “caridade” e “feliz destino”.

No trajeto, o sangue daqueles que não resistiram a tamanha dor e maus tratos tingiu o mar de vermelho. Por três séculos, tumbeiros imundos e infectos saciaram a fome de cardumes de tubarões com carne humana sem vida atirada ao mar. Diante de tanto horror, o grande poeta Castro Alves perguntou em versos no poema Navio Negreiro: “Ó mar, por que não apagas com esponjas de tuas vagas do teu manto esse borrão?”

Esse desapreço com a vida, essa falta de lágrimas com a dor do próximo e esse desinteresse com o luto alheio possuem raízes profundas. Estão no berço que embalou o surgimento do nosso país. Estão nas senzalas que ainda formam essa nação. Por séculos, fomos levados a naturalizar o açoite e a conviver com a desigualdade. Só apagaremos esse borrão quando realmente formos capazes de enfrentar os horrores das nossas desigualdades.

Já ultrapassamos os 110 mil mortos pela Covid-19. Transformamos a morte em mero dado estatístico. O contágio rapidamente saiu dos aeroportos e se espalha pelo interior e vilas empobrecidas. Desde quando a morte do pobre nos causa espanto?

O capitão presidente nega a pandemia e manda vibrar rígido o chicote, retirando direitos e avançando loucamente na direção do passado. Governadores e prefeitos prostram-se frente às pressões do poder econômico. Zombando da morte, certos empregadores abrem as portas dos seus negócios sem protocolos rígidos de segurança. Hospitais abarrotados e submetidos ao trabalho traumatizado negam aos profissionais da saúde a testagem e economizam com equipamentos de segurança.

Em meio a esse pesadelo de proporção dantesca, pergunto com as palavras de Castro Alves: até quando emprestaremos as cores da nossa bandeira para encobrir tanta infâmia e covardia?

* Professor e presidente da CUT-RS

Edição: Sul 21