Paraíba

ENTREVISTA

BdF PB traz um balanço político de 2020 pela visão do companheiro Gleyson Melo

[Na questão da vacina] "A gente (esquerda) não conseguiu se constituir como um polo de referência pras massas no Brasil"

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Divulgação - Card

No encerramento de um ano deveras 'osso duro de roer', é necessário fazermos uma análise e uma retrospectiva política. Para isso, convidamos o companheiro Gleyson Melo que hoje está à frente do Movimento dos Trabalhadores por Direitos (MTD), e que também esteve na coordenação da campanha do Coletivo Nossa Voz, candidatura coletiva que pleiteou o cargo para vereador em João Pessoa, em 2020. Gleyson constrói, também, diversos outros movimentos sociais, transitando por amplas frentes de trabalhos da esquerda, e concedeu entrevista ao Jornal Brasil de Fato PB no intuito de fazer um balanço deste atípico ano de 2020, no seu âmbito político.

Brasil de Fato: O ano de 2020 foi marcado pela pandemia da Covid-19 e seus impactos sanitários, sociais, econômicos e políticos. Como você avalia a crise que enfrentamos hoje em âmbito nacional?
Gleyson Melo: A crise na verdade já estava estabelecida, só que em outro patamar! A gente já vinha em uma crise econômica, social, política e ambiental que foram agravadas pela crise sanitária do Covid-19. A econômica vem se afundando desde 2008. Além do setor imobiliário nos Estados Unidos que contaminou todo o resto dos países, e que rebate aqui no Brasil em 2012 e que, enfim, essa crise vai também repercutir no jogo político pra enfraquecer mais ainda o Governo no segundo mandato de Dilma facilitando o golpe de 2016. Então, a crise econômica, somado também com a crise política, com o golpe vem um Governo ilegítimo, que é o governo Temer, e agora o governo Bolsonaro. 
Então a gente vive uma crise porque o país não tem um estadista. Não tem alguém que conduza o país pra enfrentar essa crise, crise econômica e a crise social que estamos vivendo. As taxas de fome estão aumentando, levando o país de volta pro mapa da fome, o desemprego aí em dois dígitos. Enfim, o IDH do Brasil piorou significativamente.

Então a gente vive uma crise porque o país não tem um estadista. Não tem alguém que conduza o país pra enfrentar essa crise, crise econômica e a crise social que estamos vivendo

Estamos diante de uma tragédia com o aumento da violência e de todas as mazelas que a crise social traz! Uma crise, evidentemente, ambiental, onde o próprio governo tem um lado que não é o da defesa da natureza. Você vê a questão da Amazônia, volta e meia ela vai aparecer novamente porque o Governo beneficia o agronegócio dos fazendeiros, dos grileiros, da mineração clandestina, do desmatamento. 

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A gente teve as candidaturas coletivas como uma grande novidade, acho que houve uma animação da parte de um determinado campo que é possível pensar a política a partir de outros parâmetros. Veja como é contraditório, né - ao passo que há uma falência, uma desistência, há também uma animação

E a crise sanitária que a gente está vivendo, ela só veio pra revelar isso em nível nacional, que infelizmente a gente está ao Deus dará! Não é à toa que os governadores e os prefeitos é que vão assumindo a direção no enfrentamento do processo. Por isso, acho que é uma crise profunda que a sociedade brasileira vive. Precisamos superar essa crise e, para isso, é fundamental uma ampla mobilização social a partir de um programa, de uma plataforma. Um dos elementos principais nessa plataforma é a derrota desse governo, sem dúvidas.

Há sinais de mudança, sinais de esperança e esses ventos hão de chegar aqui e a gente vai estar, sem dúvida nenhuma, preparados. A gente já sente que tem um clamor por mudança no meio do povo! A gente só precisa de fato traduzir esse clamor em luta de massas, em organização social e em formação política ideológica

Brasil de Fato:Ao final de 2020, qual o saldo político para a esquerda e para os movimentos sociais?
Gleyson Melo: Eu arrisco dizer que o nosso saldo é positivo! Um ano marcado pela pandemia veio ensinar à esquerda, aos movimentos sociais. A pandemia trouxe os ensinamentos da necessidade, e a gente se deparou com o desafio de não deixar o povo morrer de fome! As campanhas de solidariedade foram fundamentais para uma reaproximação da esquerda com o povo. Começamos a perceber que é preciso voltar a fazer o velho trabalho de base. Então, acho que o ano de 2020 foi fundamental pra que a política de solidariedade, que é um valor importante na sociedade, passasse a ser um elemento da própria estratégia do movimento social. Ela é uma solidariedade como nos ensina Paulo Freire, carregada de amor e de intencionalidade política na educação pedagógica da massa, através do exemplo pedagógico! Por isso que a solidariedade foi a providência que reabriu as portas de diálogo dos movimentos sociais com o povo.
Esse trabalho de base promoveu um saldo fantástico não só do ponto de vista da territorialidade, como também do ponto vista da expansão, da massificação dos movimentos sociais, mas eu diria, sobretudo, da expansão das nossas experiências: das cozinhas comunitárias, hortas urbanas, dos agentes populares por direitos e dos agentes populares de saúde. Com essas ações, a gente foi traduzindo a solidariedade em organização, em força social, política e popular! Esse é o grande saldo, que nos ensina que o caminho para a superação das crises que vivemos só é possível se traçarmos nossa caminhada junto com o Povo!

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Brasil de Fato: Aqui na Paraíba, o resultado das eleições municipais foi extremamente desfavorável ao campo progressista. Que balanço você faz do processo eleitoral?
Gleyson Melo: Eu acho que um primeiro elemento que não pode deixar de ser avaliado é o próprio sistema político. A gente herda, da campanha, a necessidade da mudança no sistema político, portanto, de uma reforma política. E o que a gente viu foi uma contrarreforma, o que foi feito no sistema político brasileiro, que praticamente blinda a possibilidade de grupos, tanto grupos menores, partidos menores, como a esquerda em si, as forças progressistas, que têm uma tradição de fazer agitação e propaganda.

Outra questão, o fim do auxílio emergencial vai aprofundar ainda mais a crise social, porque no país não existem perspectivas de melhorias das políticas econômicas, pelo contrário, a política econômica do governo está levando o país para um abismo! 

Um dado, por exemplo, é que foram 29 candidaturas para vereador em João Pessoa, sendo que a gente não tem 29 ideologias distintas que justificasse uma separação e uma disputa de visão de mundo. Então, isso dificultou mais ainda que o campo progressistas pudesse se organizar. A eleição para vereador ficou o salve-se quem puder, cada um vai fazer o seu. Agora, no geral, acho que um outro elemento que precisa ser colocado, tanto no nível nacional como estadual, é a questão que, aqui na Paraíba, o polo político, que aglutinava o que a gente chama de hegemonia, o projeto de sociedade, projeto civilizatório, era o candidato Ricardo Coutinho que vinha, nesses últimos períodos, aglutinando essa perspectiva, tanto do ponto de vista político, de projeto, como na sua efetividade enquanto gestão, através de políticas. 

Olha, eu acho que a nossa grande tábua de salvação é, primeiro, não perder a capacidade de sonhar! Tenho resgatado sempre o verbo esperançar que Paulo Freire nos ensinou! No sentido, não de esperar, mas de ter esperança

Isso foi fortemente atacado pela Operação Calvário e isso desorganizou aqui na Paraíba. Há uma dificuldade muito grande ainda do campo progressista se organizar. Primeiro porque teve a pandemia, e a gente é de um campo que tem uma ética e não o vale tudo. Então a gente também teve bem mais cuidados no período eleitoral. E aí ganhou o poder econômico, a fome, muita compra de voto, uma das coisas que chamou muita atenção é, se você chegar hoje em qualquer comunidade, você vai ver que muitas mulheres, no pós-eleição, foram laqueadas. Então, é muito comum as pessoas trocarem voto por uma cirurgia, uma laqueadura, que é um direito que as mulheres têm de evitar filhos, uma medida contraceptiva permanente.
Mas o poder econômico foi decisivo nessa eleição. Então, o balanço, o saldo é muito ruim para as forças populares e exige um balanço e a necessidade de pensar como ocupar de forma mais coletiva esse espaço.
E a gente teve as candidaturas coletivas como uma grande novidade, acho que houve uma animação da parte de um determinado campo que é possível pensar a política a partir de outros parâmetros. Veja como é contraditório, né - ao passo que há uma falência, uma desistência, há também uma animação, porque aqui é isso, é um jogo de sinais contrários.

Brasil de Fato: Quais as perspectivas e desafios para 2021 no plano nacional e local?
Gleyson Melo: O primeiro desafio urgente e necessário para 2021 é derrotar Bolsonaro nas ruas! E para isso a gente precisa se apresentar, às forças populares, no âmbito nacional, se colocar como alternativa. Veja a situação da vacina, de um lado são os governadores e os prefeitos que se colocam como detentores do campo progressista exigindo a vacina, de outro lado, às vezes é o STF também se colocando. E nós? Você não vê vocalizado na esquerda, nas forças populares, esse clamor. A gente não conseguiu se constituir como um polo de referência pras massas no Brasil, disputar essa referência política significa denunciar esse Governo assassino que tá aí, mas sobretudo, apresentar um programa de mudanças, uma plataforma emergencial e, evidentemente, uma frente política ampla e democrática em defesa do Brasil que combata o Bolsonaro de forma cotidiana diante de medidas que ele tomar contra o povo. 
Posso citar como exemplo o fim do Minha Casa, Minha Vida. O governo Bolsonaro vai criar o Minha Casa Verde Amarela que, na prática, tira a faixa 1, ou seja, exclui as pessoas mais pobres. Então, é um terror, é uma tragédia! Por isso, os desafios são enormes. Outra questão, o fim do auxílio emergencial vai aprofundar ainda mais a crise social, porque no país não existem perspectivas de melhorias das políticas econômicas, pelo contrário, a política econômica do governo está levando o país para um abismo! 
A gente vai ter um desafio profundo de direcionar essas massas que vão tá perdidas, praticamente sem rumo e numa tragédia social, diante de uma barbárie. Então, é preciso que as forças populares, progressistas, apontem um caminho! 
Aqui na Paraíba é preciso repactuação das forças populares organizadas em partidos, mas também nos movimentos sociais. É preciso que a gente faça uma grande escuta com envolvimento popular, que seremos capazes de construir um programa que de fato tenha força social para defendê-lo nas ruas!

Brasil de Fato: Como alimentar a mística militante para seguir adiante em meio a essa crise e frente a esse mar de adversidades?
Gleyson Melo: Olha, eu acho que a nossa grande tábua de salvação é, primeiro, não perder a capacidade de sonhar! Tenho resgatado sempre o verbo esperançar que Paulo Freire nos ensinou! No sentido, não de esperar, mas de ter esperança. Eu acho que ter a capacidade de perceber que o vento muda de direção! É preciso perceber o que está acontecendo no mundo. Nós estamos diante de um... mesmo com essa extrema direita que, aqui no Brasil também se manifesta através do neofascismo, dos bolsonaristas, ela vai chegar ao fim. Porque nos outros países as pessoas estão rejeitando isso. Diante dessa crise, do próprio neoliberalismo, é preciso apontar um outro caminho. Então, essas derrotas que seja nos Estados Unidos, o Trump perdeu, foi derrotado. Aqui na América Latina, o México, a Argentina, o Chile clamando por uma nova constituição e vai ter uma Assembleia Nacional Constituinte! A Bolívia que, após um golpe profundo, conseguiu se levantar novamente. E mais recentemente, na Venezuela, com a eleição, desde Hugo Chávez, a vigésima quinta eleição na Venezuela. E ela foi vitoriosa para o processo revolucionário. Então, aqui há de mudar também, os ventos vão mudar.

Mas o poder econômico foi decisivo nessa eleição. Então, o balanço, o saldo é muito ruim para as forças populares e exige um balanço e a necessidade de pensar como ocupar de forma mais coletiva esse espaço

Agora, é preciso que a gente esteja, como diz o Maquiavel, sobre a virtude e a fortuna. É preciso que a gente construa essa virtude. Essa virtude nada mais é do que essa preparação do cotidiano, do Esperançar! É essa nossa capacidade de tá enraizado como os Panteras Negras fizeram de estar no meio do povo para quando a fortuna nos sorrir novamente, como diz o Maquiavel, a gente vai estar preparado! Quando esses ventos mudarem, a gente vai estar preparado! Nada é eterno, e já tem muito arrependido por ter defendido Bolsonaro, isso é cada vez mais nítido! E cada vez mais a gente vai percebendo essas contradições, a população vai percebendo. Há sinais de mudança, sinais de esperança e esses ventos hão de chegar aqui e a gente vai estar, sem dúvida nenhuma, preparados. A gente já sente que tem um clamor por mudança no meio do povo! A gente só precisa de fato traduzir esse clamor em luta de massas, em organização social e em formação política ideológica. Temos um embate político-ideológico profundo para ser feito. 
Nesse sentido, recuperar a memória nos ajuda a alimentar a nossa mística. Nossa história está cheia de grandes lutadores e lutadoras, que deram a vida pra que a gente pudesse estar aqui hoje e não permitir que tudo o que foi construído até agora seja destruído! 
É o momento de seguir firme no rumo da nossa utopia cantando aquele bonito samba que diz assim: ‘Reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima!’

 

 

Edição: Maria Franco