Pernambuco

Entrevista

Mulheres indígenas enfrentam o vírus e nova colonização, diz Telma Taurepang

Telma Taurepang é de Roraima e integra a coordenação da União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB)

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Telma Taurepang é uma das principais vozes na defesa dos direitos das mulheres indígenas - acervo pessoal

“As mulheres indígenas precisam, com essa pandemia, se reinventar no sentido da questão da renda familiar, do enfrentamento à violência dentro das suas aldeias, onde houve um aumento muito grande da violência”. A afirmação é de Telma Taurepang, importante liderança na luta pelos direitos das mulheres indígenas.

De Roraima, a coordenadora da União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB) e parceira da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) foi a porta voz das indígenas brasileiras no II Tribunal Ético de Justiça e Direitos das Mulheres Panamazônicas e Andinas. Pela primeira vez online, o Tribunal aconteceu dia 28 de outubro e teve relatos e denúncias de ataques às mulheres na Colômbia, Peru e Brasil.

Telma denunciou as violações de direitos fundamentais dos povos indígenas, especialmente as violências sofridas pelas mulheres durante 2020, com o agravamento da pandemia da covid-19. O veredito decidido pelo Tribunal, composto unicamente por mulheres, foi apresentado no início do IX Fórum Social Panamazônico (Fospa), nos dias 12 a 15 de novembro.

Para Telma, além da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus, há outra ameaça que se espalha e ataca os povos indígenas: a colonização. Para a liderança, ela não acabou e até piorou em 2020, com as eleições e com a desenfreada violência contra as mulheres indígenas, o consumo de drogas pelos jovens, o suicídio e o patriarcado. 

Ela fala não só da região Amazônica, onde vive, mas de um quadro que se repete em outros territórios e com outras etnias. A reportagem da Marco Zero conversou com Telma por telefone, quando ela se preparava para fazer o deslocamento de Roraima para sua aldeia, onde a comunicação e conexão se torna mais desafiadora para as mulheres. A possibilidade de estar em rede, na internet, é parte da estratégia e foco de ação do movimento de mulheres indígenas que busca fortalecer individual e coletivamente, cada vez mais, umas às outras.

Na sua avaliação, qual é o saldo de 2020 para as mulheres indígenas brasileiras? Como foi enfrentar a pandemia e as investidas do governo federal para retirar direitos dos povos originários?

Para nós, para mim como coordenadora das mulheres indígenas na Amazônia brasileira. 2020 não foi tão fácil, né? Eu vou falar no contexto geral do Brasil porque os enfrentamentos que nós temos feito não só com a pandemia, mas também com o governo federal, se repetem. A gente vem sofrendo muito, principalmente as mulheres indígenas, porque estamos nesse contexto de combater as questões que afligem as comunidades e os direitos dos povos indígenas como um todo.

As mulheres indígenas precisam hoje, com essa pandemia, se reinventar no sentido da questão da renda familiar, do enfrentamento à violência dentro das suas aldeias, onde houve um aumento muito grande da violência. Ontem mesmo eu estava conversando com as mulheres do Sul onde aconteceu um caso de violência sexual coletiva. Eu passei por um processo recente dentro da família em que uma criança de nove anos vinha sendo molestada.  Quando o assunto é com o vizinho a gente parece que consegue resolver, mas quando é dentro de casa a situação complica porque a gente se sente impotente. E aí você lidar com o sistema é pior ainda, porque esse sistema burocrático que é imposto a nós deixa a gente muito mais aflita.

Não está sendo fácil para nós, ainda mais hoje, que a gente tem acompanhado a discussão sobre o que influenciou dentro das aldeias a política partidária. Aconteceu e está acontecendo até pouco tempo. Algumas lideranças expulsaram pessoas que não acompanharam eles na disputa política partidária e isso envolve mulheres, envolve crianças e idosos.  

Como as mulheres indígenas têm se organizado para combater as violações dos direitos de vocês, mas também dos indígenas em geral?

Dentro das nossas aldeias existe o cala a boca das mulheres que estão sendo violentadas em todos os sentidos. Diante disso, muitas vezes ela precisa se calar porque ela não quer perder a sua vida ali dentro da aldeia, ou ela não se sente capaz de sair da aldeia, de lutar junto com seu filho porque ela precisa pensar como vai se vestir, como vai se alimentar, como é que vai dar alimento para o meu filho.

Hoje nós vivemos num sistema que é cruel com as mulheres indígenas. O sistema do branco é cruel, eles não dão respostas para nós. O sistema do branco também mata. 

Mas elas têm buscado uma forma de se adaptar dentro da própria casa, quando buscam, dentro da medicina tradicional e espiritual, a cura para a humanidade dentro da própria aldeia, por exemplo. Compartilhar o conhecimento tradicional com o mundo lá fora também é uma forma. É através dessa união que as mulheres entendem e procuram se adaptar ao genocídio do sistema que é cruel, mata e oprime.

Com relação à questão da violência contra as mulheres, como você avalia a situação ao longo desse ano, com a pandemia, as pessoas mais em casa, a falta de trabalho. Houve um agravamento?

Conversando com a coordenadora da APIB, que é a Sônia Guajajara, e com todas as outras que compõem esse grupo de mulheres, viemos falando sobre o aumento da violência e também da violência sexual, com casos de estupros dentro das comunidade. Nós buscamos nos ajudar porque está todo mundo preso dentro de casa. E também acaba que as lideranças vão de encontro com as próprias formas de vivência das mulheres indígenas dentro das aldeias, a partir do momento que ele impõe para a comunidade o jeito deles. 

Muitas vezes, da forma dele não tá sendo bacana, não tá sendo legal. É o patriarcado. Essa repressão com as mulheres acontece porque a gente não consegue falar com o líder, com o cacique para que ele nos ajude a combater a violência,  porque que ele tenta oprimir junto com o sistema capitalista, junto com o sistema do branco. 

Mas as mulheres continuam e vão continuar combatendo essa violência. Nós buscamos levar a internet para as aldeias, mas não queremos que esses pontos de internet cheguem somente na Amazônia, queremos criar uma rede muito grande para que haja de fato um fortalecimento das mulheres indígenas porque vidas indígenas importam. 

Como vocês dizem, mexeu com uma mexeu com todas. Hoje precisamos nos reinventar para desenvolver o econômico e o sustentável dentro das nossas comunidades. Precisamos de fortalecimento para que a mulher se sinta empoderada cada vez mais usando a língua portuguesa ou falando a língua materna, mas que ela possa se sentir protegida para que ela consiga falar dentro de casa como ela sente, o que ela quer, como ela quer viver, como ela quer se vestir, como ela quer comer e o que ela quer comer.

Você fala bastante da necessidade das mulheres indígenas se reinventarem para enfrentar a crise  do coronavírus, o descaso para enfrentar as violências que são muitas. O que você quer dizer com essa reinvenção?  O que vem da sabedoria ancestral e vem surgindo de novidade e novas estratégias?

Se conectar a partir do momento que nós temos uma internet, dentro da aldeia. A partir do momento que nós temos uma internet dentro da aldeia, que a gente pode se comunicar com as outras mulheres. Com a internet ela busca uma forma de fazer algo diferente, um artesanato, um crochê, uma roupa. Aí ela está se reinventando e ela está se agarrando em algo que possa fortalecer. Quando ela busca a medicina tradicional e ela sabe que era parte da conexão ancestral e espiritual dela, então busca fazer aqueles medicamento e aquele medicamento traz a cura ela.

Quando ela se conecta ela tem poder de um conhecimento. Nós estamos adentrando nas telas da internet para gente se reinventar, para gente se conectar. Hoje com a pandemia a gente não pode sair, mas a gente pode conversar. A gente busca espiritualmente pedir de o nosso grande pai acabe com essa pandemia nos traga uma solução para que a gente não perca mais as nossas lideranças. 

Perdemos muita muitas lideranças lideranças históricas dentro das nossas aldeias, mulheres de conhecimento grandiosas, perdemos os nossos entes queridos de dentro de casa. 

Como você avalia o governo Bolsonaro, em 2020, com relação a políticas públicas, à pandemia e demandas dos povos indígenas?

Parece que ele ainda não conseguiu ver que nós não somos mais tutelados. Nós temos uma Constituição que nos garante, mas em todos os  momentos, desde quando assumiu, ele violou esse direito. Quando ele chega na mídia e diz que o cacique Raoni não representa nada no Brasil, quando o general Heleno [Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República] diz que Sônia Guajajara não representa, não tem autonomia de falar pela população indígena, vemos o desrespeito. 

Nós temos que lutar perante o STF até para ter direito à água potável. Todo tempo nós temos que agir com os nossos advogados para que chegue até o Supremo aquele direito que ele não nos garante. Além disso, há a ameaça constante de entrarem nas nossas terras para tirar o ouro ou diamante, que destrói não só a terra, mas destrói as nossas vidas. 

A partir do momento que os garimpeiros entram nas nossas terras eles estão violando nossos direitos, estão levando a droga, álcool, a prostituição para dentro e quando criam esses mega projetos também estão violando os nossos direitos. Então, para nós, não foi fácil 2020. Temos lutado contra o sistema todo e também precisamos enfrentar uma pandemia que veio e assolou as nossas vidas e a nossa terra mãe.

No final de outubro você representou o Brasil e as mulheres indígenas no Tribunal de Mulheres Panamazônicas e Andinas. Qual é a importância de denunciar as violações que os povos indígenas e as mulheres indígenas têm sofrido em um espaço como esse? E quais foram as principais ameaças relatadas?

O importante foi dar visibilidade às mulheres que estão à frente dessa luta e fazer com que o mundo veja que no Brasil as mulheres indígenas lutam contra o sistema cruel com as vidas humanas e com a vida dos povos indígenas e africanos. 

A falta de saúde dentro das nossas terras indígenas é uma violação que nós sofremos.  Nunca houve um garimpo legal dentro das nossas terras, mas ele [Bolsonaro] fala para o mundo que no Brasil está tudo bem com os povos indígenas. As queimadas, a grilagem, a invasão das nossas terras, as madeiras que são tiradas ilegalmente e a devastação da Amazônia nos ameaçam.

Quais são as principais bandeiras de lutas e quais as expectativas para 2021?

Sinceramente enquanto existir esse governo nós não temos muita expectativa. As mulheres indígenas, junto com as organizações indígenas e com as nossas bases, continuaremos a criar estratégias para combater a desordem que o governo federal cria com os nossos territórios, com o nosso planeta Terra, com a nossa mãe terra.

A resistência é também a estratégia para a nossa vida. Resistir é criar estratégias para todos os dias combater esse governo que não se importa com as vidas dos povos indígenas.

Temos que enfrentar e buscar soluções e estratégias também dentro da própria aldeia. É preciso se reinventar também dentro das organizações porque nós fizemos uma assembleia online que deu para mais de 70 mulheres. Isso porque a gente não conseguiu ainda instalar a internet em todos os estados, mas as mulheres querem ouvir, elas querem entender, elas querem se juntar para que nós possamos nos fortalecemos cada vez mais. Então, assim a luta é todo dia para fazer com que as coisas aconteçam. A gente não enfrenta só o vírus, mas também o vírus da colonização que ainda entra nas nossas aldeias.