Paraíba

VULNERABILIDADE

Sociedade feminicida: a morte executada por muitas mãos

O feminicídio se relaciona com outros tipos de violações de direitos, pois trata-se de um crime multidimensional

Brasil de Fato | João Pessoa - PB | |
A sociedade pandêmica tornou o feminicídio mais complexo - Internet

A situação de calamidade na saúde que introduz o século fragiliza populações de todo o mundo e potencializa velhos problemas que afetam os extratos em situação de vulnerabilidade e risco social, entre eles: mulheres, idosas e meninas. O feminicídio é um desses graves problemas intensificados pela pandemia, trata-se do assassinato de mulher pela condição de ser mulher, um crime habitual na sociedade patriarcal que ceifa a vida de inúmeras de nós cotidianamente.

Basta ser mulher para estar permanentemente ameaçada pelo feminicídio, mas pode haver maior incidência deste crime em mulheres que possuem condicionantes sociais, como os raciais, étnicos, de classe social, ocupacionais, geracionais e de orientação sexual. O feminicídio ainda se relaciona com outros tipos de violações de direitos, pois trata-se de um crime multidimensional que, quando não resulta da violência doméstica, é difícil de ser identificado, devido ao grau de subjetividade que envolve sua caracterização. Isso significa que, dentro do espectro da violência, muitos feminicídios ocorrem e não são assim caracterizados por causa da própria naturalização da violência contra a mulher na sociedade. 

 Se o feminicídio já era difícil de ser enfrentado, a sociedade pandêmica o tornou ainda mais complexo. A violência perpetrada por homens contra as mulheres se intensificou desde que as medidas de lockdown e isolamento foram introduzidas.  As estatísticas destes tipos de crime têm crescido em muitos países, é o que aponta a UN Women, que denominou o momento como “shadow pandemic” (pandemia das sombras), fazendo alusão à situação de negligência e exposição à violência em que se encontram as mulheres

Dados do Covid Global Gender Response Tracker mostram que a maioria dos países tem falhado em adotar medidas que protejam as mulheres durante o período da pandemia. O documento diz que 20% dos 206 países analisados sequer possuem medidas com perspectiva de gênero para combater a repercussão da crise sanitária sobre a vida das mulheres. Isso significa que o momento desafia o mundo inteiro não só a ampliar e inovar as formas de enfrentamento da violência, mas a qualificar todas as iniciativas em uma perspectiva crítica de gênero, expandindo a discussão sobre a questão com ampla participação democrática das mulheres. Uma provocação que impele governos, organismos internacionais e toda a sociedade a se organizarem em unidade pela não-violência.

Pesquisas realizadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2020, apontaram que, durante o período da pandemia, houve o aumento do feminicídio e redução nas denúncias de violência doméstica. Todavia, o próprio aumento do feminicídio evidencia que, apesar da diminuição nos registros de violência doméstica, sua incidência aumentou, já que é ela própria o condicionante principal dos feminicídios íntimos, ou seja, aqueles que ocorrem em casa. Os dados também apontam para um cenário onde, com acesso limitado aos canais de denúncia e aos serviços de proteção, diminuem os registros de crimes relacionados à violência contra as mulheres, sucedidos pela redução da concessão de medidas protetivas e pelo aumento da violência letal.

Em países como o Brasil, que vivencia uma forte legitimação de crimes contra a mulher e a disseminação da misoginia por parte do Estado, a luta pela não-violência é uma tarefa imperiosa para o movimento feminista e movimentos sociais como um todo. É o que diz a deputada Estadual Cida Ramos, que preside a CPI do Feminicídio da Paraíba: “O momento é de desafio coletivo, todos os movimentos sociais devem inserir a questão de gênero e da não-violência como pautas centrais de suas lutas. Agora, mais que nunca, precisamos de determinação e ação na construção de uma sociedade que se baseie em valores como igualdade, fraternidade e precisamos, sobretudo, da unidade política entre as forças populares e órgãos em defesa da vida das mulheres”.

A chamada “ideologia de gênero”, propagada pelo discurso presidencial, busca rechaçar qualquer afirmação de direitos das mulheres. É a tônica central do atual governo para embasar discursos e práticas antifeministas e para elaboração de políticas violadoras de direitos humanos, a exemplo da flexibilização do acesso a armas de fogo, instrumento através do qual mais de metade dos feminicídios são realizados.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 mostram que houve uma diminuição dos casos de violência e aumento dos feminicídios no primeiro semestre de 2020 em vários estados, em comparação ao primeiro semestre de 2019. Todavia, na Paraíba, ocorreu uma diminuição de 11,8% dos casos neste período.

Entre janeiro e novembro de 2020, 81 mulheres foram mortas no estado, de acordo com a Secretaria de Estado de Segurança e Defesa Social. Mesmo que a maioria destas mortes não estejam sendo investigadas como feminicídios, novos casos sempre são postos em investigação, o que altera as estatísticas constantemente.

Ainda temos muitas dificuldades operativas e culturais para a caracterização desse tipo de crime e a pandemia da COVID-19 instaurou um novo cenário de violência e ocorrência do feminicídio. Os dados e pesquisas realizadas sobre este período apresentam pistas para uma possível interpretação do fenômeno atualmente, mas ainda precisamos trilhar outros caminhos para compreendê-lo e enfrentá-lo. A subnotificação é um empecilho, mas há outros gargalos que precisam ser identificados, e estes têm sido alvos de investigação da CPI do Feminicídio da Paraíba, a qual, desde 2019, vem dialogando com órgãos e segmentos da sociedade sobre o tema.

A CPI tem como proposta redigir um relatório final com a indicação de políticas públicas de enfrentamento ao feminicídio no estado, mas estende suas ações com a realização de campanhas de comunicação e promove o debate para conscientizar a população sobre as formas de violência contra mulher. Em virtude da pandemia, a CPI foi prorrogada por mais um ano e as atividades desenvolvidas pela comissão até 2020 foram publicadas em dezembro em um e-book que também traz informações atualizadas sobre a incidência deste crime na Paraíba, no Brasil e no mundo, bem como artigos de mulheres que têm contribuído com as discussões no âmbito da comissão. Um documento importante para subsidiar pesquisadores e governos na condução de propostas de enfretamento do feminicídio e que pode ser consultado através do link: CPI_FEMINICIDIO_EBOOK

Cada nova iniciativa, como a da CPI, soma forças contra o descaso do governo Bolsonaro com a vida das mulheres e alerta a sociedade para uma autocrítica: nunca foi tão importante entendermos o fenômeno do feminicídio como uma construção social cotidiana.  Precisamos identificá-lo para além da culminância fatal, entendê-lo como a morte sistemática da mulher ainda em vida, pela violência que se dá no espaço doméstico ou fora dele, quando pela legitimação da misoginia pelo Estado, pela espetacularização da morte de mulheres nas manchetes de muitos jornais, pela perpetuação do machismo na narrativa das novelas, nos conteúdos pornográficos que consumimos objetificando a mulher e naturalizando o estupro, na piada despretensiosa do colega que não contestamos. Está em tudo, entranhado na cultura patriarcal de aniquilação da figura feminina. Que vejamos o feminicídio executado por muitas mãos, sacramentado em comportamentos simples do cotidiano que muitas vezes não identificamos, mas que tecem a sociedade perigosa e feminicida. Precisamos ter a consciência de que a responsabilidade pela existência das mulheres é tarefa coletiva! 

 

Raphaela Ramalho

Doutoranda em Geografia pela UFPB e assessora parlamentar.

Coordena a CPI do Feminicídio da ALPB, presidida pela deputada estadual Cida Ramos

Edição: Henrique Medeiros