Auto-organização

Indígenas superam fake news e falta de estrutura por vacinação no Xingu

Regiões com maior presença evangélica têm mais dificuldade ao vacinar contra a covid-19, diz médico

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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O Território Indígena do Xingu (TIX) é composto por 112 aldeias; na foto, família Yefuka, do Baixo Xingu, se prepara para receber a vacina contra covid - Priscila Fonseca

Dezesseis etnias, com cinco troncos linguísticos diferentes. Transporte predominantemente fluvial, sem equipamentos adequados e com combustível insuficiente. Igrejas evangélicas como porta-vozes do discurso negacionista e antivacina do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O controle da covid-19 ao longo dos quase 2 mil km da nascente à foz do rio Xingu, entre Mato Grosso e Pará, depende não só de ações do governo federal, mas do empenho de organizações não governamentais e da auto-organização dos povos indígenas.

O Brasil de Fato conversou com quem acompanha de perto a vacinação no Baixo e no Médio Xingu para entender como indígenas e organizações parceiras vem enfrentando os desafios logísticos e comunicacionais.

Segundo o último Boletim Epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Território Indígena do Xingu (TIX) contabiliza 1.024 casos e 16 mortes decorrentes do novo coronavírus. Entre as vítimas fatais da covid, estão os caciques Aritana Yawalapiti e Kamitai Kaiabi. 

O TIX é composto por 112 aldeias, com uma população estimada em 6.090 indígenas, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA).

Estratégias

As primeiras informações sobre o novo coronavírus que chegaram ao polo base Pavuru, no Médio Xingu, não eram nada animadoras. Uma doença perigosa, sem nenhuma vacina aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com cada vez mais indígenas infectados.

Se, no ambiente urbano, a ordem era se isolar em casas e apartamentos, no Xingu, a solução para preservar a vida dos anciãos foi adentrar na mata à espera do imunizante.

Cerca de 90% dos habitantes da aldeia indígena Moigu, da etnia Ikpeng, fizeram essa escolha, montando barracas na beira do rio para esperar a vacina em isolamento.

As chuvas constantes atrapalharam os planos de muitos deles, que voltaram à aldeia e acabaram se infectando. Só quem permaneceu isolado ficou imune ao vírus – 38 pessoas ao todo.

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De novembro de 2020 a fevereiro de 2021, os casos confirmados aumentaram 47,7% em todo o TIX. Entre os Ikpeng, o número de contaminados subiu 52% entre novembro e janeiro.

Liderança Ikpeng, Kumaré Txicao lembra emocionado do dia em que a notícia da aprovação dos imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca para uso emergencial se espalhou pelo Médio Xingu, via rádio-móvel, em janeiro de 2021.

“Quando a vacina foi aprovada pela Anvisa, foi uma comemoração pelo rádio, gritaria. Então, a comunidade no Médio estava muito consciente do perigo da doença e da importância da vacina. Foi fantástico, emocionante. Não perdemos nenhum dos nossos anciãos, nenhum membro da comunidade”, relata.


Chegada das vacinas ao Baixo Xingu / Priscila Fonseca

O polo base Pavuru tem cinco etnias e 999 habitantes. Até o final da semana passada, 97% deles haviam recebido a primeira dose da vacina contra o coronavírus. Os outros 3% estavam na cidade no momento da aplicação, e devem ser vacinados em breve.

Para o enfrentamento à pandemia, foram montadas 13 Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPIs) no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu. Nos locais, são disponibilizados concentradores de oxigênio, medicamentos, EPIs e macas.

Daphne Lourenço, médica do DSEI Xingu, diz que a participação de agentes e técnicos de enfermagem indígenas nas equipes contribuiu para ampliar a cobertura de imunização no Médio Xingu.

“Eles atuaram em todo o percurso da vacina", enaltece. "Desde armazenar e cuidar da vacina, até o trabalho de conversa com quem não queria tomar. Quem vacina são eles.”

Trabalho coletivo

Kumaré Txicao trabalhou 10 anos como chefe de Coordenações Técnicas Locais (CTL) da Fundação Nacional do Índio (Funai) e outros cinco como coordenador-regional. Há cinco meses, foi demitido por divergências com o governo Bolsonaro.

Segundo a liderança Ikpeng, a imunização só foi um sucesso porque contou com o trabalho conjunto de organizações parceiras, que ajudaram a contornar as dificuldades logísticas.

“A gente está vendo o empenho das comunidades e dos nossos parceiros, organizações indígenas e não indígenas, que garantem que a vacina chegue até as aldeias. Porque a Sesai traz equipes até o polo, fornece combustível, mas não tem equipamento para poder garantir a locomoção das equipes”, lamenta.


Transporte fluvial garante chegada das vacinas e dos profissionais ao Baixo Xingu / Priscila Fonseca

Kumaré cita como exemplos o ISA, a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), a ONG Amazon Conservation Team (ACT) e o Projeto Xingu, vinculado à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp).

O Projeto Xingu existe desde 1965 e realiza cooperação técnica com o DSEI Xingu por meio da extensão universitária. Naquela época, a convite de Orlando Villas Boas, então diretor do Parque Indígena do Xingu, membros da Escola Paulista de Medicina visitaram a região para avaliar as condições de saúde dos povos.

Desde então, o projeto luta para incluir, de forma diferenciada, a saúde indígena no Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como eixos principais a imunização e o atendimento à população.

Médico do ambulatório do índio da Unifesp, Clayton Coelho atua no projeto e possui mais de 18 anos de experiência no TIX. Ele avalia que uma das principais falhas no plano de vacinação foi discriminar os indígenas que moram em áreas urbanas ou em terras ainda não reconhecidas pelo governo federal.

“Essa insistência em vacinar só morador de terra indígena está excluindo uma população que circula constantemente entre o município e a aldeia e vice-versa. Se eu não vacino essa população, estou aumentando o risco de novas entradas do vírus no território”, explica.

A exclusão dos “não aldeados” fez com que mais da metade da população indígena do país fosse excluída da primeira etapa da imunização.

No total, de acordo com o Ministério da Saúde, 410.348 indígenas foram contemplados para a primeira fase da campanha de vacinação contra a covid-19. Segundo o último censo do IBGE, de 2010, o total de indígenas do país é de 896.917, entre aldeados e "não aldeados".

Essa defasagem motivou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir a vacinação de todos os indígenas no Brasil, inclusive os não aldeados, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. A demanda não foi atendida até o momento.

Infraestrutura

Yefuka Kaiabi, chefe logístico do polo Diauarum, no Baixo Xingu, enfatiza que a estrutura oferecida pelo governo federal é insuficiente.

“A Sesai coloca o pessoal aí, o Ministério da Defesa, trazendo equipe de helicóptero, tudo isso, mas acaba deixando de conhecer o outro lado das dificuldades que enfrentamos aqui nessa parte de transporte. [Precisaríamos de] Um motor novo, um barco novo. Se não tivesse a Atix [Associação Terra Indígena do Xingu], nós não teríamos como realizar essa primeira etapa da vacina”, reconhece.

Entre as atribuições de Yefuka está o deslocamento dos profissionais de saúde dentro do território do Baixo Xingu e a retirada de pacientes que precisam ser atendidos na cidade.

“Agora mesmo estou com 10 litros de gasolina para 44 aldeias. Eu tenho que ficar ajoelhando para não acontecer nada nesse período chuvoso”, afirma.

Enquanto 100% da população não estiver vacinada, o risco de um surto é iminente. “Hoje nós estamos no meio da cidade, o território indígena do Xingu está cercado de 14 municípios. São várias estradas que têm acesso com as aldeias, e isso facilitou muito a entrada da doença”, avalia Yefuka.

Kumaré Txicao ressalta que está chovendo desde a primeira etapa de vacinação. “Os equipamentos que a gente tem à disposição são velhos, defasados”, diz. “Então, essas associações não governamentais têm apoiado equipes de saúde, tanto cedendo energia para congelar e preservar a vacina, como ajudando na logística e na comunicação com as aldeias de forma geral.”

No TIX, por meio de 91 sistemas fotovoltaicos instalados, 78 aldeias contam com sistemas de energia limpa. Com as estruturas, uma iniciativa do projeto “Xingu Solar”, os indígenas tem energia para os equipamentos médicos e as sedes de associações sem depender da chegada do combustível para abastecer geradores.

 


Kumaré Txicao recebe a primeira dose da vacina contra a covid-19 no polo base Pavuru / Daphne Lourenço

Informação e desinformação

Embora os problemas de infraestrutura se verifiquem da nascente à foz do Xingu, o líder Ikpeng lembra que não houve resistência à vacinação no polo Pavuru.

São raras as comunidades evangélicas no Médio Xingu, e o trabalho de conscientização sobre saúde pública vem desde os tempos em que Kumaré estava à frente da coordenação regional Funai. 

“No baixo Xingu é muito forte a evangelização e a interferência dos pastores, então é tudo mais difícil”, analisa.

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Clayton Coelho, que acompanhou a primeira etapa de vacinação no Xingu, confirma essa hipótese. 

“O discurso antivacina no Brasil tem sido historicamente associado a um discurso aliado ao fundamentalismo religioso”, reforça. “E, nas aldeias de maneira geral, a gente percebe nos últimos dez anos um avanço de igrejas evangélicas, principalmente neopentecostais.”

“Quase todos os casos de recusa vacinal que a gente teve foram em aldeias onde a conversão evangélica é grande”, completa Coelho. “A gente ouvia de vários indígenas que tem pastor que é contra, tem pastor que é a favor [da imunização].”

A vacinação não é obrigatória e, para enfrentar esse discurso, é preciso muito esforço de convencimento. Dos 1.960 indígenas do polo base Diauarum, apenas 586 receberam a primeira dose. A meta é vacinar 882 pessoas.

“A recusa, em alguns casos, conseguimos vencer com bastante conversa, sempre muito franca, lembrando o papel que a vacina já teve na eliminação ou na redução brutal da mortalidade por várias doenças que já mataram muitos indígenas, como o sarampo, a catapora e a própria gripe”, lembra o médico do Projeto Xingu.


Cacique Melobo Ikpeng vacinado no Médio Xingu / Priscila Fonseca

O testemunho dos anciãos, que viveram o avanço de outras enfermidades, tem servido de antídoto ao discurso negacionista em várias comunidades.

“Muitos dos nossos velhos, das nossas lideranças, conheciam como era a epidemia de outras doenças, como sarampo, catapora, coqueluche, malária. Essas doenças que já afetaram a nossa comunidade muito tempo atrás. Então, a gente tinha essa experiência contada pelos nossos velhos. Isso ajudou bastante”, afirma Yefuka, sobre o Baixo Xingu.

A Campanha Nacional de Vacinação contra a COVID-19 no DSEI Xingu teve início em 20 de janeiro de 2021. Já o calendário para a segunda dose do imunizante inicia nesta quarta-feira (10).

Até o momento, só foram divulgados dados oficiais sobre a imunização contra o coronavírus nas regiões do Baixo e Médio Xingu. Não se sabe, portanto, quantos indígenas foram vacinados nas 49 aldeias dos Polo Base Wawi e Leonardo, nas regiões do Leste e Alto Xingu.

Outro lado

A Sesai respondeu aos questionamentos do Brasil de Fato sobre a recusa vacinal, mas não esclareceu os demais pontos. Confira na íntegra a nota enviada à reportagem:

“O Ministério da Saúde, por meio da Sesai informa que, as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) dos 34 DSEI têm trabalhado constantemente na conscientização sobre a imunização contra a covid-19. Os DSEI receberam treinamentos e foram orientados a desenvolverem estratégias de educação em saúde adequadas ao contexto cultural de cada etnia, incluindo a elaboração de materiais e conteúdos audiovisuais na língua nativa para incentivo à participação na campanha de vacinação. Os presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) e lideranças indígenas também têm apoiado a Sesai reforçando a campanha de imunização contra a covid-19 nos Distritos.  

A pasta ainda esclarece que a vacinação contra a covid-19 não é obrigatória. Em caso de recusa de vacinação por parte dos indígenas, é realizado registro no prontuário médico, mantendo-se as ações de incentivo à participação na campanha de vacinação, destacando-se a importância da imunidade coletiva para proteção da comunidade como um todo. As doses são armazenadas na Rede de Frio – organizada pelo Programa Nacional de Imunização (PNI), mantendo-se à disposição dos indígenas em outras visitas das EMSI às aldeias.”

Edição: Poliana Dallabrida