Minas Gerais

POLÍTICA

Artigo | Indústria das enchentes, urbanização sustentável e disputas políticas

A politicagem esteve acima dos interesses da população

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
Ocupação Izidora
"Hoje Izidora é parte da cidade e luta cada vez mais por reconhecimento" - Créditos da foto: Reprodução/Rede Minas

Nessa semana a Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) rejeitou por um voto o Projeto de Lei que autorizava a Prefeitura a contrair um empréstimo junto ao Banco Mundial, para implementar o Programa de Redução de Riscos de Inundação e Melhorias Urbanas na Bacia do Ribeirão Isidoro.

A posição dos vereadores que derrubaram o projeto foi motivada por disputas políticas com o prefeito da cidade, envolvendo cargos e as eleições de 2022, com destaque para o rompimento recente entre o Deputado Federal Marcelo Aro (PP) e o Prefeito Alexandre Kalil (PSD). Obviamente, a politicagem esteve acima dos interesses da população.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

A Gabinetona BH votou SIM ao projeto, mas sem ignorar suas contradições. Trata-se de um empréstimo em dólares em um banco internacional, relacionado a enchentes e urbanização de ocupações. Os financiamentos são fundamentais para a realização de intervenções estruturais. Defendemos que o Brasil volte a ter fomento público de bancos como o BNDES para que não precise recorrer a bancos internacionais. Mas, infelizmente, essa não é uma alternativa diante do desmonte promovido pelo governo atual das políticas de moradia e saneamento e do BNDES.

É importante destacar que o projeto aborda duas questões de interesse da população: as enchentes, que em 2019 desabrigaram mais de 10 mil pessoas em BH, e a urbanização das ocupações, onde moram mais de 9 mil famílias, mais de 30 mil pessoas, somente na região da Izidora.

Agora, é preciso fazer uma análise detalhada do projeto para compreender a urgência do debate e da participação popular, para além da crítica à posição do prefeito Kalil ou dos vereadores nessa votação. Embora mereçam.

O Programa de Redução de Riscos de Inundação e Melhorias Urbanas na Bacia do Ribeirão Isidoro/Izidora e seus dois componentes

A justificativa apresentada para obter o empréstimo, na ordem de 160 milhões de dólares, é a realização de obras de infraestrutura e drenagem na região do Vilarinho e nas ocupações da Izidora. Embora a natureza das intervenções sejam bastante distintas, elas estão conectadas pois fazem parte da mesma bacia hidrográfica: a Bacia do Isidoro/Izidora.

Segundo o projeto Manuelzão, essa bacia, localizada na região Norte de BH, possui 280 nascentes e 64 córregos que deságuam no Ribeirão Onça; o Vilarinho é afluente da bacia do Isidoro. Naquela região está a mata do Izidora, uma área de 9,5 milhões de m² maior que o interior da Avenida do Contorno, de mata densa com a presença dos biomas de mata atlântica e cerrado, onde está parte importante do patrimônio ambiental e imaterial da cidade, com destaque para o Sanatório, atual Casa de Francisco e o Quilombo Mangueiras.

Desde 2011, a região também passou a receber cerca de 9 mil famílias sem-teto que constituíram as quatro ocupações da Izidora, que são Rosa Leão, Esperança, Vitória e Helena Greco.

Que as ocupações sejam mantidas em sua posse com saneamento básico e ambiental

O nome Izidora, no feminino, se deve à descoberta de que o Ribeirão que dá nome à bacia é uma referência a uma moradora da região, mulher que foi escravizada e libertada, a Izidora. Passado os anos, com os processos de grilagem de terras na região, o nome foi desconfigurado para o masculino “Isidoro”. Recuperar essa história é recuperar um sentido popular, ambiental e de luta das mulheres por terra e teto naquela região.

Segundo informações divulgadas em audiências públicas gravadas com a comunidade e disponibilizadas no site da Prefeitura, o recurso seria repartido: metade para Vilarinho e metade para Izidora. O problema aqui é que misturar as duas coisas é complexo e perigoso. De um lado, obras que tradicionalmente serviam à indústria das enchentes, na Vilarinho; do outro, a possibilidade de construção participativa de uma urbanização baseada na sustentabilidade ambiental das ocupações.

Componente 1: Vilarinho e a indústria das enchentes 

A região do Vilarinho sofre há décadas os problemas de alagamento em função do avanço na urbanização que canalizou córregos e rios, apostou em obras de macrodrenagem e ocupou a margem de vazão do rio, desconsiderando a natureza presente no espaço.

Assim como em outras regiões da cidade, a resposta que o poder público dá a essa questão são grandes obras de macrodrenagem. Nesse caso, a intervenção previa canalizações e a construção de piscinões na região. Essas obras alimentam a indústria das enchentes e se mostraram, a médio ou longo prazo, ineficazes. Belo Horizonte foi construída sob a lógica da canalização de rios e o resultado é que a cidade se transformou em um grande assentamento precário no período das chuvas.

:: Saiba quais são as produções de rádio do BdF MG e como escutar! ::​​​

Não é possível aceitar mais um planejamento urbano que desconsidere o meio ambiente e a condição dos rios como sujeitos de direitos. É necessário combater as ausências forjadas pelo projeto de cidade do capital e, ao invés de manter a invisibilidade dos rios como regra, faz-se urgente a emergência de outras cidades em que o protagonismo da participação popular seja definidor de projetos de cidade que criem e recriem outras cidades possíveis.

Diante da rejeição pela Câmara do PL 1.026/2020, que garantia recursos para obras importantes da cidade, precisamos aprofundar o debate no legislativo municipal

Nesse sentido, os movimentos ambientalistas defendem a recuperação e tratamento ambiental dos rios da região, com reassentamento das comunidades do entorno, além de aumentar a taxa de permeabilização do solo e investir em microdrenagem. Essa solução, no entanto, não foi considerada por essa gestão municipal e nem pelas últimas gestões que historicamente se atrelaram ao conjunto de atores da construção civil formando a aliança capital-poder público na reprodução da cidade.

A gestão atual realizou um empréstimo em 2019 no valor de 65 milhões de dólares para iniciar as intervenções de macrodrenagem na região. O processo de intervenção já está em curso, mas pode ser revertido a partir de uma mudança de paradigmas e escuta da comunidade. Foi pensando nisso, inclusive, que nós propusemos emendas ao PL 1.026/20 para garantir ampla participação das comunidades e conselhos na elaboração do projeto e na execução e fiscalização das obras, determinando ao executivo a prestações de contas periódicas e o comparecimento em audiências públicas com a participação dos setores populares, técnicos e acadêmicos.

É verdade que mesmo assim o pressuposto do projeto se manteria: uma grande obra da indústria das enchentes. Essa obra se conjugaria com outras grandes obras que estão sendo realizadas no Barreiro ou que estão sendo anunciadas na Tereza Cristina, a partir de recursos dos atingidos pelo crime de Brumadinho. Um absurdo sem tamanho protagonizado por Zema com a conivência, até então, das prefeituras de BH e Contagem.

Por outro lado, a população de Venda Nova clama por soluções para as enchentes que todos os anos tiram vidas e causam prejuízos incalculáveis. É inegável que são urgentes e necessárias na região, mas será que a macrodrenagem é mesmo a solução?

Componente 2: a garantia de direitos e a urbanização sustentável da Izidora

Izidora resiste desde 2013 quando, necessitadas de moradia, cerca de 9 mil famílias sem casa consolidaram as ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, onde a especulação imobiliária projetava grandes empreendimentos. A resistência desse território abalou as estruturas da cidade ao resistir a diversas tentativas de despejo e formar uma grande rede de solidariedade externa e de organização comunitária.

Izidora são quatro grandes bairros auto-construídos pelo povo na luta que acontece em profunda conexão com os processos ambientais da região. Existem matas e nascentes preservadas na ocupação, hortas comunitárias, sistemas de saneamento ecológico, e claro, também há construções em áreas de risco e inundação que demandam intervenções do poder público.

Hoje Izidora é parte da cidade e luta cada vez mais por reconhecimento. As ocupações já possuem estabilidade jurídica e reconhecimento legal tendo as comunidades Rosa Leão, Esperança, Vitória e Helena Greco sido reconhecidas como AEIS (Área de Especial Interesse Social) pelo Plano Diretor, além do conflito fundiário que as envolve ter sido objeto de acordo no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC BH) após longo processo de negociação no âmbito da Mesa Estadual de Diálogo e Negociação com Ocupações Urbanas e Rurais, espaço institucional do Governo de MG.

Os moradores das ocupações vivem condições inimagináveis e inaceitáveis para uma capital com tantos recursos como BH. A negação de direitos produz vítimas como João Vitor, criança atropelada por um caminhão-pipa que abastecia a comunidade de água. Assim, cabe ao Poder Público Estadual e Municipal assumir sua responsabilidade pela garantia dos direitos urbanos e ambientais no local, direitos fundamentais dos moradores da ocupação e direitos de preservação da natureza como sujeito que é.

Izidora clama por uma urbanização sustentável, que se dê com ampla participação popular e promoção de tecnologias de microdrenagem e cuidado com os cursos de água, conjugando-se direitos fundamentais - o direito à moradia e à cidade de grupos vulneráveis e o direito ao meio ambiente sustentável. É também a grande oportunidade para que BH, a partir da diversidade das lutas que constituem o vetor norte, deixe de fazer girar a roda da indústria das enchentes que opera aliada ao planejamento urbano vertical promovido pelo poder público e possa pensar a natureza como sujeito de direitos na constituição de processos de urbanização mais abertos e participativos.

A derrota do Projeto de Lei por setores bolsonaristas, ultra-neoliberais e fisiológicos, que não tem qualquer compromisso com o meio ambiente e nem com a garantia de direitos sociais é uma derrota da cidade de Belo Horizonte. Mas como diz o ditado, faremos do limão uma limonada, e com muita luta, vamos avançar na construção de propostas, junto com os movimentos sociais, ambientalistas e moradores dessas áreas, para que possamos construir um futuro de dignidade para as famílias que moram nesse nosso pedaço de cidade.

A disputa por recursos deve ser também uma disputa por um modelo de cidade que estabeleça uma melhor convivência entre a vida urbana e a natureza sendo necessário que os rios sejam reintegrados à paisagem urbana e que as ocupações sejam mantidas em sua posse com saneamento básico e ambiental.

Bella Gonçalves é vereadora em Belo Horizonte pelo PSOL/Gabinetona BH

Edição: Rafaella Dotta