Pernambuco

Coluna

O 31 de março nos dias de hoje

Imagem de perfil do Colunistaesd
"A substituição no Ministério da Defesa parece indicar como tendência uma maior centralização do aparelho de Estado nas mãos de Bolsonaro" - Marcos Corrêa/PR
Reverter a escalada autoritária em curso exigirá o esforço unitário dos setores populares

Esta quarta-feira marcou um dos dias mais tristes e tenebrosos de nossa história. Uma democracia não deve admitir que instituições da república e seus representantes comemorem um regime responsável pela tortura e assassinato de centenas de brasileiras e brasileiros que cometeram o grave crime de sonhar com uma sociedade mais justa e igualitária em nosso país. É um momento vergonhoso de nossa história cuja única função deveria ser homenagear todas aquelas e aqueles que, corajosamente, se organizaram para lutar pela democracia e pela derrubada da ditadura, é para com eles que nosso país tem uma enorme divida histórica. É da luta destes que puderam surgir as conquistas democráticas que temos, é o exemplo destes que nos leva a seguir lutando para mantê-las. É também o exemplo de pessoas como Soledad Barret, Carlos Marighella, Dinalva Oliveira Teixeira, Zilda Xavier, Carlos Lamarca e tantos outros que nos levam a seguir lutando por memória, verdade e justiça. 

:: Receba notícias de Pernambuco no seu Whatsapp. Clique aqui ::  

A ordem do dia alusiva ao golpe de Estado de 31 de março de 1964 revela, a um só tempo, a incompletude de nossa república democrática e o ímpeto autoritário que se mantém incrustrado no aparelho de Estado e reforçado pelo atual governo. A alusão foi precedida, como se sabe, pela enorme reforma ministerial levada a cabo pelo presidente, alterando o comando de seis ministérios e, entre eles, o Ministro da Defesa. O fato trouxe à tona análises diversas não apenas na grande mídia, mas também entre a intelectualidade orgânica aos setores populares. A divergência entre posições reflete a dificuldade atual das forças de esquerda em avaliar a relação de forças e seu papel na conjuntura. As interpretações vão desde uma simples mudança burocrática sem grandes impactos, um recuo necessário diante do descontentamento de setores da burguesia, até uma demonstração de força que prenunciaria um novo golpe de Estado. O que mais preocupa é tanto o risco de superestimar a força do inimigo, quanto subestima-la. 

A caracterização de Bolsonaro e seu governo como expressão condensada da ascensão neofascista, presente em várias das análises, nem sempre vem acompanhada das conclusões necessárias que o termo sugere. Por neofascismo entendemos um movimento de massas, composto majoritariamente pelos setores médios, pela pequena burguesia e pelo médio capital, que visa a implementação de uma forma particular do Estado de exceção capitalista, uma ditadura fascista.  Assim como no fascismo histórico, embora se sustente nessa base social, o neofascismo não visa corresponder por inteiro aos interesses desses setores. Em outras palavras, o reacionarismo da pequena burguesia serve de sustentação a interesses alheios a si mesma, ou seja, deve servir aos interesses do grande capital. Ontem como hoje esse processo é marcado por enormes contradições. 

Por vezes o que é necessário para manter mobilizada e coesa a base social do neofascismo entra em contradição com os interesses do grande capital e das diversas frações da burguesia brasileira. Esse parece ser o fato mais relevante da conjuntura que antecede a reforma ministerial. A carta aberta de mais de 200 economistas comprometidos com os interesses do capital financeiro, assinada por banqueiros como Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles (Itaú), por empresários como Pedro Parente (Brasil Foods), é sem dúvida o fato que mais preocupou o Palácio do Planalto nas últimas semanas. 

A grande burguesia conviveu de forma relativamente harmônica com a política genocida do presidente durante o primeiro pico da pandemia. Ao que tudo indica, a confluência entre 300 mil mortes e a morosidade deliberada do governo em vacinar a população começou a prejudicar o clima de negócios, bem como o andamento da agenda prioritária destes setores no Congresso Nacional, incluindo aí o plano de privatizações com que sonha o Ministro Paulo Guedes. A isso se soma a irracionalidade presente na política externa brasileira prejudicando de forma decisiva as relações com parceiros comerciais importantes, particularmente para o agronegócio. Embora não se possa esperar mudanças substantivas na diplomacia do Planalto, a substituição de Ernesto Araújo, um dos ministros mais alinhados com a família do presidente, foi sem dúvida um aceno aos interesses de parte do grande capital. 

O descontentamento do grande capital em relação ao negacionismo do presidente não parece indicar uma ruptura definitiva da burguesia em relação ao neofascismo, mas o simples distanciamento desse setor e a ameaça de buscar alternativas em 2022 já é motivo de preocupação suficiente. Esse distanciamento, contudo, não induziu ao suposto “isolamento institucional” do presidente. Essas contradições não avançaram até o ponto de um insulamento que coloque na ordem do dia uma possibilidade de impeachment. Tal tese alimenta uma ingênua confiança no caráter democrático e republicano da burguesia dependente brasileira. É ademais estranho enxergar isolamento quando o governo detém maioria parlamentar e relativo alinhamento do presidente das duas casas do congresso, influência nada desprezível nas polícias militares e em boa parte das Forças Armadas. A oposição mais decisiva segue sendo a do Supremo Tribunal Federal, mas vale lembrar que Bolsonaro já indicou um de seus ministros e fará a indicação do segundo no próximo semestre. 

Bem entendido, a reforma ministerial não representou exatamente um recuo, mas um necessário rearranjo de forças. A mudança mais significativa expressou-se no Ministério da Defesa e foi ela que criou maiores alardes entre os analistas. Como são públicas e comprovadas as intenções autoritárias do presidente, não poucos imaginaram o risco de um autogolpe, com o ataque aos demais poderes e tendo os militares ao centro. 

Aqui se faz importante resgatar um segundo aspecto indispensável na análise do caráter neofascista do governo. Dissemos acima que o neofascismo tem como ponto de chegada a instauração e uma forma particular de regime de exceção capitalista. É justamente essa particularidade que o diferencia das demais formas de ditadura burguesa, em particular das ditaduras militares. O fascismo histórico, tanto na Itália como na Alemanha, certamente não prescindia de uma relação de controle sobre as forças militares, bem como do conjunto das forças de repressão. Sem isso não haveria ditadura. Contudo, a ditadura de tipo fascista não se instaura por um golpe militar de tipo clássico, como o que vivenciamos no Brasil em 1964. Na Itália, por exemplo, a subida de Mussolini ao poder só foi possível a partir da Marcha sobre Roma em 1922 e, ainda assim, o país não vivenciou de imediato o fechamento das liberdades democráticas. O que determinou essa virada foi o crescimento da força social do movimento fascista na sociedade, crescimento que permitiu converter as milícias fascistas (os chamados fasci di combatimiento) em polícia política. 

Acreditamos que esse aspecto é central para a interpretação das movimentações de Bolsonaro. Suas ações possuem uma certa coerência e sentido. A tensão entre o presidente e os comandantes das três forças, particularmente com o comandante do exército Edson Pujol, nem de longe pode ser interpretada como a recusa dos militares em “fazer parte da política”. Como parte do aparelho de dominação burguesa, as forças militares não são outra coisa que uma instituição política por excelência. Os militares brasileiros nunca deixaram de se fazer presentes na política nacional. Não era essa a razão do conflito. A questão era o envolvimento público da corporação militar nos anseios de Bolsonaro em romper o pacto federativo, intervindo nos estados que promovem políticas de combate à pandemia através da intensificação do isolamento social. E isso justamente em um momento em que parte expressiva do grande capital se recusa a fornecer apoio a medidas deste gênero. 

Nem a cúpula militar se dispõe a um golpe de Estado nesse momento, tampouco Bolsonaro os incentivava a isso. Bolsonaro não necessita de um golpe para instaurar um governo militar: este governo já detém a maior presença de militares no executivo em toda a nossa história. O que está em jogo é o acúmulo de forças do neofascismo dentro e fora da corporação militar. É o intuito de aproveitar o caos gerado pelo governo na pandemia para fornecer maior enraizamento das ideias neofascistas na sociedade. A proposta de “estado de mobilização nacional”, temporariamente barrada no Congresso Nacional era parte desse intuito, bem como o incentivo ao amotinamento de policiais militares em pelo menos três estados da federação. A indicação do delegado da Polícia Federal Anderson Torres, alinhado à família do presidente para a pasta da justiça e segurança pública é outro elemento importante nesse processo. 

A substituição no Ministério da Defesa parece indicar como tendência uma maior centralização do aparelho de Estado nas mãos de Bolsonaro. O descontentamento dos comandantes afastados das três forças sinaliza que haverá resistência na cúpula militar em colaborar com a disseminação da ideologia neofascista na corporação como esteio para a mobilização antidemocrática nos estados. Tudo dependerá da indicação do novo ministro da defesa e do grau de influência que o bolsonarismo ainda detém entre o baixo oficialato. 

O que deve estar no centro da preocupação das forças populares não é o risco de um golpe iminente, mas o aprofundamento do caráter neofascista no interior das instituições do Estado e a ampliação de sua influência na sociedade. Devemos, sem dúvida, estar atentos para as movimentações dos militares na política. Todavia, a ditadura neofascista não nascerá de um golpe de força e da noite para o dia. O neofascismo constrói antes as condições de legitimação de sua barbárie, através da corrosão progressiva dos ideais democráticos na sociedade, da perseguição às universidades e ao pensamento científico, da ampliação das milícias reacionárias, da conversão das forças de segurança em polícia política em cada região. Diferente do que aconteceu há 57 anos atrás, não dormiremos hoje numa democracia para acordar amanhã em uma ditadura. Mas certamente não acordaremos amanhã em uma sociedade mais democrática do que aquela que temos hoje. 

Reverter a escalada autoritária em curso exigirá o esforço unitário e concentrado dos setores populares em construir força social em torno da democracia que queremos. Cabe à esquerda solidarizar-se com os agentes de segurança pública e policiais antifascistas que resistem à influência bolsonarista em suas corporações. Cabe promover uma ampla campanha de defesa da democracia nas universidades públicas e de compromisso com o pensamento científico. Cabe reinventar as formas de diálogo com o povo com bandeiras que expressem suas necessidades e ao mesmo tempo façam avançar seu nível de consciência. Transformar a luta pelo auxílio emergencial em luta por renda básica permanente nas diversas regiões é um exemplo de que isso é possível e necessário. Cabe, por fim, construir uma frente unitária de luta antifascista e enraíza-la através da organização popular. É a melhor forma de honrarmos hoje o exemplo de lutadoras e lutadores que deram suas vidas por uma sólida democracia, a ser construída de baixo para cima.

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

 

Edição: Vanessa Gonzaga