Rio Grande do Sul

Descaso

Conselho para Enfrentamento à Covid de Porto Alegre ignora conhecimento técnico

Afirmação foi feita por profissionais da saúde após entidades decidirem se retirar do Comue-Covid

Sul 21 |
Prefeito Sebastião Melo participa da 3ª reunião virtual do Conselho Multissetorial para o Enfrentamento da COVID-19 (Comue-covid) - Mateus Raugust/PMPA

Quando o Conselho Multissetorial para o Enfrentamento à Covid (Comue-Covid) de Porto Alegre voltar a se reunir nesta sexta-feira (9), os representantes do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS), do Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS), do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs) e das centrais sindicais irão oficializar a sua retirada do órgão. O motivo para a decisão, anunciada durante a semana em nota conjunta, é a alegada falta de interesse da Prefeitura em ouvir as recomendações das entidades e o fato do Comue, segundo eles, não estar servindo ao propósito de debater as melhores práticas para o enfrentamento da covid-19, mas ter se tornado apenas um espaço em que a Prefeitura comunica suas ações.

O Comue foi criado pelo Decreto nº 20.889 da Prefeitura em 4 de janeiro de 2021, logo após Sebastião Melo (MDB) tomar posse. De acordo com o decreto, o órgão tem “caráter consultivo, com a função de assessorar, opinar e propor ao CE-COVID [Comitê para o Enfrentamento da Covid-19] ações e políticas públicas de combate à pandemia”. O CE-COVID é um órgão de caráter deliberativo, composto apenas por membros do governo. Já o Comue, além de membros do governo, conta com a participação de representantes do governo federal, estadual e da Câmara de Vereadores, assim como de diversas entidades representativas de setores econômicos e da área da saúde.

Cláudia Franco, presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs), explica que, originalmente, o decreto que criou o Conselho incluía como entidades representativas de profissionais da saúde o seu sindicato, o Sindicato Médico do RS (Simers) e o Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers). Na primeira reunião do conselho, Claudia reivindicou a presença de outras entidades de trabalhadores. “Tinha quase 60 entidades e só três da parte dos trabalhadores”, diz.

Dessa forma, entraram os representantes do Coren, do CMS e das centrais sindicais. Contudo, Cláudia destaca que as entidades, mesmo tendo interesse em contribuir para a formulação de políticas de enfrentamento à covid-19, tinham suas falas ignoradas, o que acabou motivando a decisão de retirada. “Eles abrem para a gente falar depois que todo mundo fala, só que a gente fala e eles seguem falando outro assunto, como se a gente não tivesse ali. Até que deu aquela declaração do Melo de que conselho é para consultar, mas o prefeito vai seguir o que ele achar importante. Aí nós não vamos brincar, também temos coisas importantes para fazer”, diz.

Ana Paula de Lima, coordenadora-adjunta do Conselho Municipal de Saúde (CMS), órgão responsável pelo controle social da gestão da saúde municipal, ressalta que começou a participar do Comue apenas a partir do final de fevereiro. Ela diz que imaginava que o conselho seria o principal espaço de discussão das medidas de enfrentamento da pandemia, mas não foi o que percebeu na prática.

“O que a gente começou a notar foi que aquele espaço não era nem consultivo, porque, na verdade, eram apresentadas já posições tomadas pelo gestor, sem a possibilidade de que houvesse um aprofundamento do tema”, diz. “A gente não tinha, por exemplo, documentos formalizados, como é no COE [Centro de Operações de Emergências da Saúde] estadual e tem que ser. Até mesmo a gente não tinha atas por escrito do processo e a gente começou a verificar que tinha poucas entidades que representavam o setor de saúde e grande parte eram representantes do setor empresarial. As discussões, na verdade, iam sempre no sentido econômico”.

Ana acrescenta que a premissa das reuniões que participou era sempre, por parte da Prefeitura, de que o comércio tinha que ficar aberto, porque era um compromisso de campanha, mesmo diante do crescimento dos casos, internações e óbitos . “O que a gente estava trazendo é: a gente vai sustentar isso a que preço?’ Porque muitas mortes poderiam ser evitadas. O que a gente foi vendo é que, na verdade, os posicionamentos em relação às medidas de enfrentamento à pandemia, eles estavam sendo muito mais flexibilizados do que no ano passado, só que, nesse anos, nós estamos vivendo o pior momento”, diz.

Ela questiona ainda o fato de que as medidas que eram apresentadas pela Prefeitura não eram justificadas a partir de um embasamento técnico-científico. “A gente perguntava quais eram os indicadores que estavam sendo utilizados como guia para a tomada de decisão do gestor, mas isso não foi apresentado, porque não tem como justificar as medidas que eles estão tomando frente aos indicadores que existem. A ampliação de oferta de leitos de UTI, que é o que foi feito, chegou ao limite. E o que a gente está vendo acontecer é uma ampliação do número de mortes evitáveis, seja por falta de acesso, seja pela baixa qualidade do atendimento em função dessa questão dos leitos serem abertos de qualquer forma. Não adianta ter uma maca e um respirador se você não tem uma equipe qualificada que possa acompanhar aquele paciente crítico, que demanda um cuidado especializadíssimo”, afirma.

Membro da Frente de Saúde do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Poder Executivo do Estado (Sintergs) e representante das centrais sindicais no Comitê, Masurquede Coimbra pontua ainda que em nenhum momento foram apresentados indicadores de ações do município para a proteção social e atendimento de comunidades vulneráveis. “Foi uma das coisas cobradas em duas reuniões por algumas entidades desse coletivo que representavam os trabalhadores e ligadas ao controle social”, diz.

Segundo ele, uma das propostas apresentadas pelos trabalhadores era ampliar a oferta de ônibus circulando na cidade para atender a própria demanda da Prefeitura de manter o comércio aberto, mas foi ignorada. “As sugestões não eram levadas em conta, assim como algumas indagações das entidades não eram respondidas”, diz Masurquede, acrescentando que sentiu falta da presença de pesquisadores e cientistas no comitê. “Só existia um corpo técnico da Secretaria Municipal de Saúde, que era convidado a apresentar os dados da situação de leitos, especificamente”.

Por outro lado, destaca que as entidades empresariais sempre tiveram mais espaço de participação. “Como era um comitê multissetorial, tu deveria ouvir outras posições, mas não havia espaço. Os setores econômicos e a Prefeitura dominavam o centro da reunião. Eu acho que faltou um comitê científico e uma ampliação do diálogo para escutar outras posições e outros setores. Apesar de as ações serem de incumbência do Executivo, como foi falado pelo prefeito numa reunião, a gente não vai sair dessa crise econômica, sanitária, social, se tiver apenas decisões unilaterais”, diz.

Cláudia Franco, do Sergs, avalia que, na prática, a presença das entidades de trabalhadores acabava servindo apenas para “validar” as medidas implementadas pelo prefeito. “Se tu tá ali, ele pode argumentar depois que tem um conselho que participa das reuniões e não questiona. Porque a gente não tem ata das reuniões, segundo eles, tem gravação, mas a gente pediu e não veio. ‘Quem diz que a gente falou alguma coisa?'”, pondera.

Os motivos para a desistência do Sergs e das demais entidades de participarem do Comue foram elencados em uma nota de esclarecimento encaminhada na segunda-feira (5) ao prefeito Melo e ao secretário extraordinário de Enfrentamento da Covid-19, Cesar Sulzbach. Cláudia afirma que elas irão formalizar a saída na reunião de sexta-feira do Conselho, para poderem manifestar publicamente os motivos da decisão. “Tudo se leva para o lado político, mas não é uma questão política. Se ele tivesse discutido com a gente, a gente estaria disposto a ajudar dentro do nosso conhecimento técnico. Mas o nosso conhecimento técnico não está sendo levado em conta”, afirma.

Nesta quarta-feira (7), a reportagem do Sul21 questionou a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento da Covid-19 sobre o posicionamento das entidades de que suas gestões eram ignoradas e sobre a alegada falta de observação de indicadores técnicos nas medidas apresentadas pelo governo municipal ao Comue. Em nota, a pasta destacou que já foram realizadas 13 reuniões virtuais do conselho é que elas são “um espaço aberto, sem protocolos formais, que reforçam a disposição do Executivo Municipal em manter um diálogo franco e transparente com a sociedade”.

A secretaria diz que os integrantes têm oportunidade de fala ou podem se manifestar pelo chat e que, em todos os encontros, é apresentado o cenário epidemiológico da cidade e o avanço da vacinação pela equipe técnica da SMS. A nota diz ainda que as gravações das videoconferências são públicas e estão no site da Prefeitura, em: https://prefeitura.poa.br/coronavirus/reunioes-comue.

Edição: Sul 21