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Coluna

Transformar o judiciário é possível?

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Sessão de abertura do ano judiciário no STF em 2019 - José Cruz/Agência Brasil
De que sistema jurídico estamos falando?

O Direito constitui um sistema de normas sociais coercitivas que refletem tanto as relações econômicas como outras relações sociais de uma dada sociedade. É um sistema de normas criadas e protegidas pelo poder do Estado e, por isso, serve ao fortalecimento da dominação de uma determinada classe ou grupo social que dominam tal poder. Por isso, a formulação das normas e as suas aplicações não são imparciais aos meios de dominação-exploração da sociedade, ou seja, o Direito possui classe, possui raça e possui gênero.

E não é para menos. O Direito atual é formado na perspectiva do contratualismo de que existe um “contrato fundador” o qual se torna uma matriz teórica a partir de que se procura formular os princípios gerais do governo. Trata-se, nas palavras dos pensadores contratualistas, de um contrato social firmado entre os homens, os quais renunciam a parcela da sua liberdade individual com a finalidade de contemplar os demais sujeitos do contrato. 
Sobre esse ponto, teóricas feministas vêm demonstrando que: “As mulheres não participam do contrato original através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança da liberdade civil. As mulheres são objeto do contrato” .

Nesse sentido, os princípios jurídicos da atual sociedade foram formulados em uma perspectiva de sujeição da mulher ao homem, ou seja, de não reconhecer a mulher como sujeito de direito, mas como objeto de um contrato. Obviamente, ao longo dos anos essa perspectiva foi se afrouxando, mas não se diluindo. Isto porque, embora as mulheres tenham sido ao longo dos anos simbolicamente incluídas como detentoras de direito, passando a ser autorizado a propriedade de terras em seu nome e o voto, por exemplo, é igualmente certo também que o sistema judicial permaneceu fincado em suas raízes patriarcais e machistas.

Exemplo disso é que apenas em 2005 foi retirado do código penal brasileiro o termo “mulher honesta” que, doutrinariamente, era conceituado como a mulher que usava livremente da sua vida sexual. O Direito, assim, decidia seletivamente àquelas que poderiam ser vistas como “vítimas” de um crime e as que não possuíam “moral sexual” para tanto. 

No Código Civil de 1916, por exemplo, ao homem cabia o exercício do pátrio poder (poder familiar). Já em relação às mulheres, os seus direitos tornavam-se ainda mais restritos quando se casavam. Além disso, durante muito tempo o código penal e os tribunais brasileiros sequer consideravam estupro dentro do casamento como crime. Isto porque entendiam ser caso de “exercício regular do direito”, como se o homem, ao casar-se com a mulher, pudesse exigir dela o ato sexual. 

As disposições, já referidas, do Código Civil de 1916 sofreram significativas alterações com a criação do Estatuto da Mulher Casada (1962). A partir dele o exercício do pátrio poder passou a ser da mãe e do pai. Além disso o Estatuto deixou de considerar a mulher como civilmente incapaz.
Apesar de ter existido muitas alterações e avanços, essa realidade não mudou. É que a simbologia da mudança não é suficiente para resolver os problemas estruturais do machismo impregnados nas nossas instituições. Não se rejeita a necessidade e importância dessas alterações formais, mas se questiona se elas são suficientes para resolver uma questão maior do que o próprio direito. Embora seja uma igualdade formal, essas conquistas são indiscutivelmente importantes para as mulheres, alterando em alguma medida as relações sociais. E afirmo que em alguma medida porque, embora apresente certo poder de modificar a realidade, o Direito encontra limitação na estrutura que o sustenta.

Nesse sentido, as determinações legais acabam sendo mais reflexivas da realidade do que constitutivas dessa mesma realidade social e, portanto, não desafia a base do sistema patriarcal-racista-capitalista. Por isso, qualquer que seja as alterações e mesmo os avanços que o Direito possa incorporar, essas conquistas não se tornam plenas já que são incorporadas em uma ordem que atende apenas a lógica de um mercado que relega às mulheres e aos negros posições de desprestígio e de subalternidade.

O indivíduo livre e que estabelece relações de igualdade (conforme os contratualistas definiriam), na realidade trata-se do sujeito que tem acesso aos direitos políticos e amplamente reconhecido no mercado, ou seja, é dirigida ao homem (branco). A identidade das mulheres com este sujeito jamais será plena, mas será em maior ou menor grau a depender de sua raça e classe social. Diante disso, o Direito passa a estabelecer formalmente uma igualdade que jamais será plena, porque baseia-a em premissa falsa de que as instituições, incluindo a Administração e a legislação, são neutras em relação ao gênero e à raça.

Muito dessas amarras se dá, inclusive, em razão das movimentações de mulheres dentro da conjuntura política e jurídica, sem que elas considerassem a necessidade de romper essas amarras não através da mera inclusão no lugar de poder antes destinado ao homem, mas sim no esfacelamento desse lugar de poder. Na transformação desse lugar de poder em um espaço livre de opressões e dominações. 

Para bell hooks, “Os esforços feministas para garantir às mulheres igualdade social com os homens de sua classe nitidamente coincidiam com os medos brancos, supremacistas, capitalistas e patriarcais de que o poder branco diminuiria se as pessoas não brancas ganhassem igual acesso aos privilégios e ao poder econômico” .

Exemplo disso é que mulheres – desembargadoras, juízas ou ministras do STJ e do STF, delegadas ou promotoras – fazem tal qual os seus colegas homens de profissão e aplicam às mulheres negras a mesma seletividade, severidade e julgamento moral que aplicam aos homens negros. Obviamente, ao se voltar para as mulheres negras, esses pontos são levantados de forma específica, desenhando-se no âmbito da violência institucional de gênero, que já fora abordada em artigo publicado sob o nome de “Toda mulher tem direito a uma vida sem violência” .

No ano de 2018, o CNJ, Conselho Nacional de Justiça, publicou pesquisa denominada de Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, na qual foi possível se constatar que 63% dos magistrados brasileiros são homens e 75% são brancos/brancas. Esses números são imprescindíveis para analisarmos de que sistema judicial estamos falando e para pensarmos potencialidades de mudanças com ações atuais e assertivas, capaz de modificar o perfil do sistema jurídico, a fim de que haja nele necessária diversidade não só de gênero, mas também de raça.

Mas basta observar o perfil em relação aos outros poderes (executivo e legislativo) que percebemos não pertencer unicamente ao poder judiciário essa formação estruturalmente machista e racista que desemboca em um perfil elitista, branco e patriarcal.

O que difere o poder judiciário dos outros poderes não é existir uma crise de representatividade. Mas sim como essa crise vem sendo gerida e como o sistema jurídico vem representando uma forma de manutenção e aprofundamento de desigualdades sociais. Especificamente ao olharmos para países como o Brasil, é possível percebermos que o judiciário foi responsável por legitimar e estabelecer sua própria instrumentalização para perseguir políticos, aplicar golpes democráticos e permitir a chegada no ao poder de Jair Bolsonaro, hoje em dia responsável por mais de 350 mil mortes no País. Mas não só.

Para além das situações midiáticas, que chamam atenção internacionalmente, em relação à Lava-Jato, há também o esvaziamento da perspectiva do garantismo nas instituições jurídicas. O elitismo, apoiado pela mídia e pelo mercado, cria no imaginário da população – e dos operadores do direito que compõem essa mesma população – a ideia de que os direitos humanos são coisas para bandidos, que reinvindicações por igualdade são vitimismo, que mulheres são meros objetos sexuais dispostos ao prazer masculino e de que direitos e garantias para as minorias são privilégios.

Além disso, em relação ao poder judiciário há uma diferença quanto aos outros poderes. Ele é o único que não é formado através da eleição direta da população, mas ou por nomeação dos políticos (no caso dos ministros do STF, por exemplo) ou por concursos públicos. O problema em relação aos concursos é que, embora seja inegavelmente melhor do que as escolhas governamentais instrumentalizadas, vivemos em um país de profunda desigualdade social, inclusive na educação. Trata-se, com efeito, de um problema que, caso não superado, permanecerá a resultar em uma magistratura elitista, branca, racista e patriarcal. Quantos são as negras e negros que possuem tempo/estrutura para desprender a fim de passar anos estudando para os concorridos concursos na área jurídica? E mais, quantos possuem ensino de qualidade que lhes coloquem como reais competidores às vagas nas boas universidades do País?
 

Levando em conta os aspectos apresentados, podemos concluir que é necessário movermos as estruturas do poder judiciário. A questão agora é: como podemos fazer isso?

 

Referências:

PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

HOOKS, Bell. Luta de Classes Feminista. Artigo disponível em: http://www.cabn.libertar.org/wp-content/uploads/2013/08/LutadeClassesFeminista.pdf. Acesso em 07/04/2021.
 

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

Edição: Monyse Ravena