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A urgência da fome no Brasil e a história da sopa de pedra

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Essa história tem desdobramentos e versões em quase todas regiões europeias. Nas diferentes versões variam o que é usado inicialmente como desculpa para se começar a sopa e arrumar os ingredientes - Reprodução
Quando muitos brasileiros passam fome, é fundamental lembrar de histórias de ajuda ao próximo

Essa é uma história muito conhecida, mas eu vou contar mesmo assim. Dois viajantes chegam a uma pequena cidade do interior e dizem que vão fazer uma sopa de pedra. Um morador passa e pergunta o que está acontecendo, intrigado com o caldeirão de água fervente que armaram no meio da praça. Os viajantes afirmam que estão fazendo uma sopa de pedra, mas que esta ficaria melhor se alguém tiver algumas cenouras. O morador vai até sua horta e doa algumas que tinha lá. A mesma coisa acontece com muitos moradores e com o que tinham na dispensa: batata, vagem, um pouco de toucinho, verduras, feijões, sal. No final, todos compartilham uma deliciosa sopa em que a pedra é apenas desculpa para que cozinhe coletivamente. Os viajantes, que pareciam querer aplicar um truque nos cidadãos se revelam sábios conhecedores da alma popular e coletiva.

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Essa história tem desdobramentos e versões em quase todas regiões europeias. Nas diferentes versões variam o que é usado inicialmente como desculpa para se começar a sopa e arrumar os ingredientes. Vemos botões, machados, pedaços de madeira ou até unhas cortadas (argh!). Cada lugar fez uma versão e, nos livros para crianças modernas, foram feitos outros acréscimos e novas versões. Existem variações da história em filmes, séries de tv, novelas.

Especialistas em folclore localizaram versões dessa história sendo contadas desde 1548, em inúmeras localidades. Na Europa oriental, como a Polônia, ou no Norte europeu, na Suécia ou Finlândia, é o machado o catalizador da sopa. Na França, na Rússia ou na Hungria são soldados que chegam na cidade voltando da guerra. Na Escandinávia são mendigos que querem fazer uma sopa com as unhas cortadas e pedem contribuições, numa típica alusão aos caldeirões de bruxas, tradição local.

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Existe ainda a versão alemã, escrita por Johann Peter Hebel em 1811, Der schlaue pilgrim, que pode ser traduzido mais ou menos como "O astuto peregrino". Nessa versão da história, vemos um peregrino que está indo para Jerusalém e engana a mulher que o hospedava conseguindo os ingredientes um a um. Hebel foi um escritor, poeta, pedagogo, teólogo e pensador nascido em Basil, em 1760, que escreveu uma série de poemas e pequenas histórias “do calendário” que ficaram conhecidas como clássicos alemães. Sua versão da sopa de pedra introduz elementos da doutrina luterana: o peregrino, Jerusalém, a redenção com sopa compartilhada.

Portugal tem uma tradição fortíssima de contar essa história que vem da região de Almeirim, perto de Santarém. Lá também a religião é um elemento importante da história. O viajante que chega à cidade é um monge andarilho, remete à longa tradição de crenças católicas da região. A história é tão forte que a sopa de pedra é considerada um prato nacional.

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Não foi à toa que resolvi contar a história da sopa de pedra. Num momento que muitos brasileiros passam fome, é fundamental voltar a lembrar de histórias em que o senso comunitário, de ajuda ao próximo, seja evidente. Um viajante desconhecido chega numa cidade. Com simpatia, contando com a ajuda de todos consegue alimentar todos não apenas de sopa, mas de solidariedade, ele alimenta as pessoas com a ideia de que devemos ajudar quem precisa. E que a fome é uma questão maior, que pode ser resolvida conjuntamente, em comunidade, pelos homens e mulheres preocupados com os outros.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo