cultura popular

Fé e festa: conheça a tradição do Banho de São João

Celebração que acontece em Corumbá e Ladário, no Mato Grosso do Sul, é reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil

Ouça o áudio:

Andor enfeitado para a festa: cada fita contém um pedido para o santo - Arquivo Bianca Machado
É um encontro que vai além da religião: é um encontro de devoção

Nos municípios de Corumbá e Ladário, no Mato Grosso do Sul, o mês de junho é marcado por uma festa muito especial: o Banho de São João. A celebração acontece no dia 23 de junho e reúne devotos de várias religiões, como explica o antropólogo Álvaro Banducci:

“Você tem a festa das casas católicas e a festa nos terreiros de matriz afro-brasileira, de umbanda ou candomblé; e também acontece em centros espíritas. E tem a festa da rua, que é a celebração no porto, onde os andores são levados para dar banho no santo. Então você batiza São João com aquela água sagrada, e por ser São João, a água que retorna pro rio é mais sagrada ainda. Tem essa potencialização de sacralidade”.

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O ritual no Rio Paraguai é o ponto alto da festa e remete ao batismo de Jesus por São João nas águas do rio Jordão.

Mas a celebração começa antes, pela manhã, com uma missa. É quando os festeiros, que são as pessoas que guardam as imagens do santo em casa, levam os andores para serem benzidos na igreja.

Depois tem festa com muita comilança e à noite os devotos saem em procissão até o rio. A atriz e diretora de teatro Bianca Machado, que é festeira há quinze anos, lembra de uma ocasião em que essa caminhada foi especialmente emocionante:

“Teve um ano que eu vinha descendo pela Antônio Maria, uma rua que vai desembocar na ladeira que desce o santo. E tinha santo vindo de tudo quanto é lado. E aí teve um blecaute, e aquele pedaço da cidade ficou todo iluminado, porque todo mundo carrega uma vela na mão. Eu falo que naquele dia eu casei com São João Batista”.

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Para os devotos das religiões de matriz africana, a festa continua no dia 24 de junho, como conta a antropóloga Luciana Scanoni:

“Após essa noite de São João, em que as águas ficam mágicas, poderosas, no dia 24 é feito o culto a Xangô nos terreiros de umbanda e candomblé. Tem toda a sequência de entidades na linha de Xangô que descem naquele terreiro. E como é o aniversário de São João, em alguns terreiros é cantado parabéns”. 

Patrimônio Imaterial

Em maio de 2021, o Banho de São João foi registrado como Patrimônio Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN.

O antropólogo Álvaro Banducci, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, coordenou o grupo de pesquisa que coletou o material para o processo de registro. 

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“Ter reconhecido esse ritual, essa devoção, é potencializar essa festa, inclusive é uma forma de retribuição ao santo”. 

Luciana Scanoni, que também integrou o grupo, diz que conheceu muitas histórias sobre a fé no santo durante o levantamento. 

“Uma dessas promessas, o filho, o bebê estava doente, tinha recebido extrema-unção do padre. E aí passa um andor de uma festeira em frente à casa. A mãe desesperada sai correndo e se joga no andor, ajoelha e começa a pedir pela vida do filho. Enquanto ela estava lá rezando e chorando, o filho começou a se mexer”. 

A festa de São Joao é marcada pelo sentimento de gratidão, seja por uma promessa que deu certo ou pela saúde e felicidade da família durante o ano todo. Para a festeira Bianca Machado é também um momento de encontro:

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“Quando a gente desce a ladeira, eu falo que é a parte que São João humaniza. Porque ele encontra com outro andor e eles se cumprimentam na ladeira. Os dois santos acima da gente viram pessoas que falam: ‘Ê, São João’. ‘Oi, São João de fulano, São João de ciclano’. Então essa parte que humaniza em cima, humaniza aqui embaixo também, porque a gente se encontra todo ano na ladeira. E a gente vê o São João do outro, e se cumprimenta. É um encontro que vai além da religião: é um encontro de devoção”. 

Por causa da pandemia, foi preciso mudar a celebração. Muitos festeiros optaram por dar banho no santo em casa mesmo, usando uma bacia ou bica d’água. Aquela festa com muita gente foi substituída por reuniões só para a família. Mas mantendo a mesma fé. 

Edição: Douglas Matos