Paraíba

RETROCESSO

Artigo | A fome volta às ruas

"O pior de tudo isso é a desfaçatez como tentam justificar esse abismo social, relativizando a desigualdade"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Pão nosso de cada de dia - Reprodução

O cenário social do país a partir de 1° de janeiro de 2003 mudou muito com a eleição de Lula para Presidente da República e de certa forma com a continuidade no governo de Dilma Rousseff, em que pese o clima internacional recessivo.

A mendicância que era uma presença constante nas portas dos restaurantes, das farmácias, dos supermercados, das igrejas, das padarias, além dos saques  em diversas  feiras livres das cidades espalhadas pelo interior do nordeste brasileiro, foi gradualmente sumindo, a ponto de atravessarmos cinco anos de seca sem um saque sequer em feiras livres, cena muito comum em governos anteriores.

A proposta  de criação do programa fome zero como  uma política pública, foi fruto de uma decisão de profundo conteúdo socioeconômico, anunciada no discurso de posse  como presidente da república, do nordestino e retirante Luiz Inácio da Silva, que houvera convivido na infância  e sentido na pele o fantasma da fome em consequência da seca no nordeste.  Ele declarou alto e bom som, que se daria por satisfeito, se ao fim do seu mandato cada brasileiro pudesse tomar o café da manhã, almoçar e jantar. 


Mendicância pelas ruas de João Pesooa/PB. / João Vivente Machado

Lula criou o programa Fome Zero e o entregou   à sensibilidade do frade dominicano    Frei Beto, o qual tem como concepção filosófica  a ideia da formação de cidadãos e não apenas de consumidores, o que infelizmente acabou acontecendo, porem  pela metade.  

Apesar do programa Fome Zero ter um conteúdo  reformista,  sem nenhum viés revolucionário, mesmo assim não era visto com bons olhos pelos integrantes do governo de coalizão que elegeu Lula, uma consequência das alianças políticas previstas na política liberal como meio de obtenção de êxito eleitoral e que havia sido  previamente anunciada na famosa carta aos brasileiros, de autoria do próprio Lula. 

São as famigeradas  "forças terríveis", das quais se queixou durante o restante da sua vida o conservador Jânio Quadros, que engoliram a eleição de Lula a contragosto e conspiraram contra ele desde o primeiro minuto, do primeiro dia, do primeiro mês e do primeiro ano da sua posse, numa revolta surda que permaneceu silente e foi sendo gestada para eclodir oportunamente.  

O sua  primeira e muito bem disfarçada reação, aconteceu   em abril de 2013  no decorrer do primeiro governo Dilma que não soube fazer a leitura correta  daquele misterioso  movimento acreditando no lado progressista  da coalizão.

Pois bem, quando deputados e prefeitos, “aliados” ultraconservadores, vislumbraram a perspectiva de se apropriar de um volume considerável de recursos alocados para a gestão do programa Fome Zero,  foram impedidos pela simples presença intimidatória de Frei Beto com toda sua credibilidade internacional. Trataram logo  de mudar-lhe o nome para Bolsa Família o qual passaram a gerir através das prefeituras municipais, provocando a discordância e a saída de Frei Beto e o fim do Fome Zero, para eles um programa maldito, que foi convenientemente  denominado  Bolsa Família    e o resto a gente já sabe.

Que o extrato social passou por uma mudança positiva nos governos Lula /Dilma não há a menor sombra de dúvidas. A fome causada pela falta de comida foi abrandada e eles foram considerados como os melhores presidentes da república dos últimos 50/60 anos. Todavia, como defensor da ideia da sustentabilidade, não poderíamos conceber uma transformação pontual  sem continuidade e sem consequência política. 

Frei Beto discordou porque enxerga a fome no latu sensu da palavra: fome de alimentos, fome de saúde, fome de conhecimentos, fome de habitação, fome de saneamento, enfim fome de cidadania.


Evolução do salário mínimo a partir de 2003. / Reprodução

Ao governo Lula faltou apoio político para adotar políticas públicas que fortalecessem a concepção do programa  Fome Zero, restou a adoção da  política correta de crescimento real do salário mínimo como forma de distribuição de renda que  mesmo anêmica, como política compensatória,  aumentou a renda e facilitou    o acesso do pobre ao consumo de bens duráveis como à compra da  chamada  linha branca e linha marrom, à aquisição de veículos, às viagens nacionais e até  internacionais etc. 

Chegamos ao paradoxo de assistir o pobre “ir à Disney” como criticava humoristicamente o saudoso Ariano Suassuna, adquirir todos os equipamentos citados, mesmo  sem ter água,  esgotos e coleta de lixo  na sua moradia. 

O mergulho profundo de Frei Beto nas raízes dos problemas que reclamavam solução, atordoou a burguesia à ponto de alertá-la para o perigo do despertar da massa explorada, a qual  rasgando o véu da inconsciência poderia partir para um acerto de contas histórico,, começando pela dívida eleitoral que seria cobrada à custa da perda dos mandatos eletivos dos conservadores  e do domínio político oligárquico secular que poderia escapar-lhes das mãos.

A reação tornou-se pública no dia da posse do novo congresso, com o discurso raivoso de Aécio Neves, em tom ameaçador, em que ele conclama o congresso a paralisar o governo Dilma até o estrangulamento e a capitulação final e naquele momento ele dava  a senha tucana para o golpe parlamentar. 

Derrotado nas urnas, Aécio não se conformou  e verbalizou toda trama de bastidores que vinha sendo urdida no seio da oposição ultra neoliberal ortodoxa, que chegou até a seduzir alguns expoentes  de partidos ditos de esquerda.

As manifestações de rua de 2013 foram desencadeadas com uma aparência de espontaneidade e eram coordenadas “pelo imaginário” sem vanguarda nem direção, o que é no mínimo muito estranho. Todos chegavam ao local certo na hora certa, sem que ninguém soubesse informar a origem da convocação.

O famoso discurso de derrota proferido por uma liderança do PSDB, como já ressaltamos, aconteceu no primeiro dia em que ele foi ao congresso após a derrota sofrida nas urnas de novembro de 2014 e deu um duro recado que muito deu  o que falar.

A conspiração comandada pelo vice presidente Michel Temer que foi nomeado, pasmem, como Coordenador Político do governo num ato de desespero de Dilma. Só podemos creditar uma atitude como essa à falta de experiência política da presidenta, que abriu espaço para o PMDB nomear sete ministros e se adonar do governo, a ponto de propor e conseguir a presença de Joaquim Levi um economista ortodoxo,  como Ministro da Fazenda. 

Todos os que fizeram parte do governo Dilma, estão hoje comodamente instalados no governo Bolsonaro, a começar por Fernando Bezerra Coelho, hoje líder do seu governo.

Temer, um político sem expressão eleitoral que sempre  foi  eleito Deputado Federal na lanterna, àquelas alturas já estava montando o seu governo, que finalmente se instalaria em 31 de agosto de 2016 como desfecho do golpe parlamentar, que conduziu Bolsonaro à Presidência da República.


Foi aqui que tudo começou... / Reprodução

No período Lula/Dilma  o  salário mínimo que que chegou a valer US$ 50 dólares no último ano de governo de Fernando Henrique Cardoso, experimentou um crescimento progressivo anual a partir de 2003 início do governo Lula, o que permitiu atravessar incólume a crise mundial de 2008, com a presença mesmo tênue do estado na economia, fortalecendo o mercado interno como saída para a crise. 

Essa decisão política permitiu o acesso ao consumo, das classes C e D, agraciadas também com o programa Bolsa Família e em agosto de 2014 o salário mínimo valia US$ 306 dólares o equivalente a um crescimento de mais de 500%.

Então “nunca perguntem por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”

Não perguntem por que a fome voltou e visivelmente está em todos os lugares. Perguntem sim a causa da presença dos famélicos por toda parte e em números crescentes, lembrando que em economia nada acontece por acaso.

O cenário do mundo do trabalho é de erosão de receita, de perda do poder de compra  dos salários para a inflação, do desemprego crescente, da fragilização das leis trabalhistas que eles chamam de flexibilização e tudo isso somado nos espanta. Os números apurados pela PNAD do IBGE mostram um preocupante extrato social que pode ter sido a causa maior da não realização do censo de 2022, onde os indicadores poderiam revelar números que o governo federal não interessa mostrar, de olho nas eleições de 2022.

O desemprego aberto é de 14,7%; o subemprego está em torno de 22.0% e o trabalho informal está em torno de 49,30%, o que totaliza 86,00% da força de trabalho. Para completar, aqueles que sonham com a “miragem” do “próprio negócio” encontrarão  como estímulo uma taxa de juros mensal 3 % ao mês,  a moeda estadunidense valendo R$ 5,5 por cada real, segundo eles  “para conter o consumo” num ambiente de estagflação, ou seja estagnação a golpes de inflação.

É pertinente lembrar que essa massa de desempregados abriga 41% da população abaixo da linha da pobreza e essa é a grande causa do recrudescimento da mendicância, da fome e da miséria. São famílias inteiras que não conseguem nem o suficiente para garantir a ração de sobrevivência e que são obrigadas à humilhação da mendicância nos locais públicos já citados, sem sequer ter o sagrado direito à vida. 

"O pior de tudo isso é a desfaçatez como tentam justificar esse abismo social, relativizando a desigualdade e tentando nos fazer crer que sempre foi assim e será sempre assim, ou seja, a fome e a miséria  são naturais".

* Engenheiro Civil e ex-diretor do Sindiágua.

Edição: Heloisa de Sousa