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O caso Miguel: uma questão de pele

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Defesa da acusada Sarí Corte Real vem atuando para atribuir ao próprio Miguel a culpa pela sua morte aos cinco anos - Rafaella Gomes
Irá mais uma vez o Estado, dessa vez representado pelas mãos da justiça, abandonar Miguel?

Na semana passada foi realizada audiência de produção de provas para o julgamento de Sarí Corte Real pela morte de Miguel, filho de Mirtes Renata, uma criança de cinco anos de idade. Durante a audiência, de acordo com a mãe de Miguel, foi sugerido pela defesa da acusada que Miguel seria responsável por sua própria morte, uma vez que possuiria transtornos que estariam sendo tratados por um psicólogo que o atendia. Aparentemente, causa estranheza uma família negra cuidar da saúde mental de uma criança negra.

No caso Miguel, o Ministério Público denunciou Sarí Corte Real por abandono de incapaz, que se configura pela conduta de abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono. Além disso, a acusação alegou que houve, na espécie, circunstâncias responsáveis por agravar a pena da acusada, quais sejam o fato do crime ter sido cometido contra uma criança e em situação de calamidade pública (a pandemia).

Sobre o crime de abandono de incapaz, é necessário observar que o Código Penal não exige a intenção de que o abandono cause algum perigo para a pessoa incapaz, mas que a possibilidade do perigo, mesmo não intencional, resultado da conduta criminosa, já é suficiente para o cometimento do crime. Isto é, mesmo quando a pessoa não tem intenção de, ao abandonar uma criança, expô-la ao perigo, o fato de tê-la abandonado em potencial situação de perigo já é configura o delito.

Outra questão importante é que para o cometimento do crime de abandono de incapaz, qualquer pessoa, independente de idade, pode ser vítima. Basta demonstrar-se que, no momento do crime, esteja incapacitado de se defender. O Código Civil, que em alguns casos pode ser aplicado de forma analógica ao Código de Processo Penal, define que as crianças com menos de 16 anos de idade são absolutamente incapazes. Assim, no caso de Miguel, por se tratar de uma criança de cinco anos, a sua incapacidade absoluta é evidente. Miguel, abandonado por Sarí, em tão pouca idade, não seria capaz de evitar e se defender dos riscos causados pelo abandono. Muito mais quando, o laudo pericial feito pelo Instituto de Criminalística de Pernambuco (ICPAS/PE) afirma que Sarí, ao deixar Miguel no elevador, ainda pressionou o botão do elevador para a cobertura de prédio.

É possível, ao imaginar a situação e tendo todos nós sido crianças, sentir na pele o horror que Miguel viveu dentro do elevador, sendo abandonado pela figura adulta, sozinho e sem qualquer capacidade de prever e se defender dos perigos inerentes à altura do edifício e a entrada e saída de pessoas estranhas no elevador. Mas consegue a justiça se colocar na pele de uma criança negra para protegê-la ou, no caso de Miguel, justiçá-la? 

O Estado já abandonou Miguel, ao tornar possível que pessoas como Sarí pudessem exigir a presença das suas empregadas domésticas em suas residências em plena pandemia. O Estado já abandonou Miguel, ao tornar necessário que Mirtes, e tantas outras empregadas domésticas, atendessem a exigência por medo da fome e do desemprego. Irá mais uma vez o Estado, dessa vez representado pelas mãos da justiça, abandonar Miguel e permitir que o fato da criança ser acompanhada por psicólogos resulte na absolvição de Sarí?

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

Edição: Vanessa Gonzaga