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A Bíblia no banco dos réus

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"É preciso purificar a leitura bíblica e o modo como se fala de Deus" - Pixabay
Não é honesto ler ao pé da letra um texto escrito há mais de dois mil anos, em outro contexto

Neste último domingo de setembro, as comunidades católicas festejam o Dia da Bíblia. No entanto, já há 50 anos, todo setembro é considerado mês da Bíblia. Nele, cada ano, grupos e comunidades aprofundam algum tema, ligado a um livro bíblico. Em 2021, o livro escolhido foi a Carta aos Gálatas e o lema tirado do hino batismal que ocupa o centro da carta: “Pois, todos vós sois UM só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28). Este lema pode ajudar as comunidades a descobrirem na Bíblia resposta para os conflitos que opõem cristãos entre si quando se defrontam com a realidade social e política do país.  

Desde o começo do Cristianismo, as comunidades eclesiais sempre tiveram em seu seio pessoas e grupos com diferentes posições sociais e políticas. E as Igrejas cristãs veem a catolicidade como sua vocação, porque devem ser capazes de conviver com as diversidades.  

Pelos anos 50 do primeiro século, na região que atualmente compreende a Turquia, Paulo fundou algumas comunidades cristãs. Nelas, havia crentes de diversas culturas. Alguns membros, de origem judaica, defendiam que para ser cristãos, todos deveriam obedecer às leis do Judaísmo. Outros, vindos das culturas locais e de religiões orientais se sentiam mais livres. Diante do conflito entre esses dois grupos,  Paulo não ficou neutro. Tomou posição por uma Igreja aberta e em saída, como propõe o papa Francisco, mas respeitou a diversidade.

Primeiramente, a sua carta insiste que “judeus ou gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres, todos que somos batizados no Cristo somos iguais e devemos ser unidos [UM só] em Cristo” (Gl 3, 27- 28). A partir da igualdade de todos, Paulo defende a liberdade. Não proíbe cristãos de cultura judaica a obedecerem às normas do Judaísmo, mas esses não têm direito de exigir isso dos outros. A fé em Cristo é força libertadora “Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou” (Gl 5).

Na nossa realidade, a proposta das comunidades aprofundarem a leitura e interpretação da carta aos gálatas pode impedir que a Bíblia seja usada como pretexto para o racismo religioso. Ninguém tem direito de usar a Bíblia e a fé em Jesus como pretexto para perseguir e atacar comunidades de cultos afro-brasileiros ou de outras religiões. A Bíblia não justifica posturas moralistas e discriminatórias contra a igualdade de gêneros e a diversidade sexual. Não é honesto ler ao pé da letra um texto escrito há mais de dois mil anos, em outro contexto cultural e geográfico para justificar posições que veem o ser humano como superior à natureza.  

Lamentavelmente, parte da hierarquia católica, como também de pastores evangélicos e grupos de diversas Igrejas ainda pregam o evangelho de forma dogmática e arrogante. Ao fazerem isso, continuam o caminho dos colonizadores que usaram a Bíblia para justificar a violência da conquista. Dão razão a quem usa a Bíblia como arma que legitima opressões e dores à humanidade e ao planeta. É preciso purificar a leitura bíblica e o modo como se fala de Deus. É preciso revelá-lo como Amor e Compaixão e não como déspota que impõe a sua vontade e castiga impiedosamente quem não o obedece. 

No Brasil, há mais de 40 anos, o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) nos ajuda a ler a Bíblia a partir da vida e em perspectiva libertadora. A inspiração e a iniciativa vieram do querido irmão, frei Carlos Mesters, profeta da leitura libertadora da Bíblia, que neste próximo outubro, completará 90 anos, dos quais a maioria a serviço da Bíblia e das comunidades da caminhada.  

O CEBI sempre defendeu que o terreno melhor para se ouvir e praticar a palavra de Deus é a comunhão com os mais pobres. É a partir da vida dos oprimidos que, na leitura comunitária e orante da Bíblia, vamos discernindo a  revelação de um projeto divino de justiça, amor e vida para a humanidade e todo o universo.

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

Edição: Vanessa Gonzaga