Pernambuco

SOBERANIA ALIMENTAR

“O Governo não está preocupado com 20 milhões de pessoas com fome”, diz secretário do Consea

Em Pernambuco, a Jornada Nacional da Soberania Alimentar denuncia a fome e cortes em políticas de segurança alimentar

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Em Pernambuco, o mês da alimentação saudável tem programação de movimentos populares e espaços de debate e articulação propostos por esferas governamentais - Foto: Leandro Molina

O agravamento crescente da vulnerabilidade social no Brasil faz com que o Dia Mundial da Alimentação Saudável, neste sábado (16), seja tempo de falar de fome. A pandemia da covid-19  atravessou não só o país, mas também o mundo e deixou entre os seus flagelos o aumento da insegurança alimentar - condição de não ter comida ou não saber se você ou seus familiares vão se alimentar. Mas, como pontua o secretário geral do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Pernambuco (Consea/PE), Reginaldo Xavier de Assis, a piora desse quadro é um processo que acompanha o desmonte das políticas públicas ao longo dos anos, ainda antes do coronavírus.

As informações mais recentes sobre o assunto mostram que 43,4 milhões de brasileiros (20,5% da população) não tinham alimentos em quantidade suficiente e mais 19,1 milhões (9%) estavam passando fome em abril de 2021, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil da Rede PENSSAN.  Os dados pintam um país diferente de sete anos atrás.

“A gente saiu do mapa da fome em 2014, quando o percentual que se calcula [para insegurança alimentar] estava abaixo do parâmetro, que era de 5%. De 2018 pra cá, a gente vem crescendo essa questão da insegurança alimentar. Esse número foi aumentando à medida que as políticas públicas foram deixando de existir”, comenta Assis.


O PAA sofreu um corte de aproximadamente 50% neste ano / Divulgação/CTA

Entre os projetos que sangram à míngua de recursos do Governo Federal, o secretário menciona o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos da agricultura familiar e os destina a famílias em vulnerabilidade, e o programa 1 Milhão de Cisternas, que leva tecnologia de armazenamento de água ao Semiárido. O primeiro programa sofreu um corte de aproximadamente 50% neste ano, enquanto o segundo teve corte de cerca de 94%. “Aqui em Pernambuco, praticamente não existe mais o PAA. Desde o governo passado vem se tirando recursos, e hoje não se destina mais nada”, lamenta.

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Reginaldo Assis também destaca o Bolsa Família. “Milhares de pessoas foram cortadas do programa. O governo criou esse Auxílio Brasil que, ao invés de ampliar a quantidade de acesso ao programa, reduz o Bolsa Família para criar outro. Dessa forma, você está colocando as famílias em situação de insegurança alimentar. Isso afeta especialmente as regiões Nordeste e Norte, que vêm pagando um preço alto pela ausência de políticas públicas”, critica.

Ao falar sobre o programa, o especialista frisa que o Bolsa Família gera renda para a compra de alimentos ao mesmo tempo em que garante a segurança alimentar da criança ou adolescente que merenda na escola, ao condicionar o benefício à inscrição dos filhos na rede de ensino. “O auxílio emergencial na primeira fase também tinha esse caráter. Se esses programas estivessem funcionando a contento, hoje haveria outro impacto”, afirma.

Outra decisão que comprometeu a articulação contra a fome foi a extinção, em 2019, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que hoje só existe a nível das federações. 

“O Consea era um espaço pactuário com ⅔ de sociedade civil e  ⅓ do governo. O papel era propor políticas públicas de enfrentamento à fome e obesidade, fiscalizar a ação do poder público e denunciar a violação do direito à alimentação. Em pleno Dia Mundial da Alimentação, não ter um órgão como o Consea é uma declaração pública de que o Governo não está preocupado com as quase 20 milhões de pessoas com fome no Brasil”, defende.

Movimentos se articulam contra a fome e pela soberania alimentar

Para as organizações que se propõem a combater a fome no Brasil, outubro é um período de luta. As entidades que se debruçam sobre o tema elaboraram programações específicas em prol do tema. A Via Campesina, mobilização internacional de camponeses composta por movimentos sociais, lançou a Jornada Nacional da Soberania Alimentar, com o lema “Soberania Alimentar: Contra o agronegócio para o Brasil não passar fome”, que teve entrega de alimentos no Recife.

Reginaldo Assis explica que os grandes produtores do agronegócio não produzem para consumo interno da população, mas, sim, para a exportação. “70% do que a gente consome vêm da agricultura familiar. Sem ela, o alimento não chega às escolas, aos lares, aos equipamentos públicos”, fala.

"Quem já viu algum caminhão do agronegócio entrando para ajudar a sanar a fome nas grandes cidades brasileiras? Nesse momento em que o dólar subiu, a intencionalidade é exportar o máximo possível, vender as próximas safras para, assim, conseguir manter uma alta taxa de lucro", denuncia Paulo Mansan, da direção do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) - uma das organizações que integram a ação da Via Campesina .


Nesta quinta (14), Via Campesia doou 10 toneladas para os Bancos Populares de Alimentos da região metropolitana do Recife/ Olívia Godoy

"O agronegócio produz, mas para quem e a que custo? São alimentos com alta taxa de veneno, então não sobra nada onde ele entra - somente a terra nua e crua, acaba a fauna e flora e quem não morre com as queimadas, morre posteriormente com os venenos. O agronegócio coloca o Brasil em primeiro no ranking mundial [de uso de agrotóxicos] com uma média de mais de 8 litros de venenos utilizados na agricultura por brasileiro por ano. Isso dá mais de 1,6 bilhão de veneno utilizado na terra", complementa Mansan, apontando ainda que o governo Bolsonaro foi o que mais liberou o uso de agrotóxicos em menor tempo. 

Na última quinta-feira (14), sob esse mote, diversos movimentos se reuniram no Armazém do Campo, no Centro do Recife, para a doação de 10 toneladas de alimentos produzidos em assentamentos e acampamentos da reforma agrária para 19 Bancos Populares de Alimentos espalhados na Região Metropolitana da capital pernambucana.

A campanha Mãos Solidárias, que distribui marmitas para a população em situação de rua, mantém suas atividades neste mês, com previsão de entrega de 10 mil refeições. O Roçado Solidário também continua sua produção de alimentos para o abastecimento dos bancos e cozinhas populares.

Em Paudalho, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, foi realizada no último dia 30 a primeira Mostra de Segurança Alimentar e Nutricional - uma articulação do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMSEA) de Paudalho, as instituições da sociedade civil que o compõem, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) e secretarias da prefeitura. Cerca de 250 pessoas circularam no evento com estandes de produtos da agricultura familiar e expositores, a exemplo das Mulheres Boleiras de Chã de Camila.

Nesta sexta-feira (15), foi lançado o programa Sopa Família, que vai distribuir alimentos de segunda a sexta a 2.500 paudalhenses de 500 famílias. A iniciativa da Secretaria de Assistência Social do município foi dialogada e aprovada pelo conselho.

Já no Sertão do Pajeú do Estado, acontece a 19ª Semana Intermunicipal da Alimentação e Campanha Consumo Consciente, que teve início em 8 de outubro e se encerra no dia 28. A programação terminará com uma audiência pública sobre agroecologia e participação popular para enfrentamento à realidade da fome, com participação da sociedade civil e organizações governamentais.

"PAA" Estadual

Enquanto a esfera federal seca a verba destinada ao combate da fome, resta aos estados e municípios conseguir recurso para implementar ações que visam à segurança alimentar. Assis elenca cozinhas comunitárias, bancos de alimento e feiras agroecológicas como políticas públicas que podem ser incentivadas.

Segundo ele, o Governo de Pernambuco está, neste momento, construindo um projeto voltado para a compra de produtos da agricultura familiar e economia solidária. O governador Paulo Câmara sancionou há mais de um ano a lei que cria o Programa Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PEAAF), que garante que pelo menos 30% dos recursos destinados à aquisição de comida pelo Estado sejam utilizados na compra de produtos agropecuários, extrativistas, lácteos e resultantes da atividade pesqueira, in natura e beneficiados.

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“Com a medida, a inclusão social, a modernização da produção, o consumo de alimentos saudáveis e a geração de emprego e renda no campo passam a ser reconhecidas como política de Estado”, fala, em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA) de Pernambuco.

“Para acompanhar e monitorar as ações do programa, será instituído o Comitê Gestor do PEAAF, sendo 50% de seus membros representantes da sociedade civil e os outros 50% da administração estadual, cabendo à Secretaria de Desenvolvimento Agrário a coordenação-executiva do comitê gestor. A formação do Comitê está em tramitação no âmbito da SDA”, informa.

 

Edição: Vanessa Gonzaga