Pernambuco

VIOLÊNCIA

Polícia indicia condutor por tentativa de homicídio privilegiado em atropelamento no Recife

Para defesa da vítima, que foi atropelada no último ato "Fora Bolsonaro", definição do crime tende a atenuar pena

Brasil de Fato | Recife (PE) |
A vítima tentava acalmar o motorista, que a arrastou e atropelou sem prestar socorro - Rani de Mendonça/Brasil de Fato PE

A Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) concluiu a investigação do caso do atropelamento da advogada Sarev Freitas na manifestação contra o presidente Jair Bolsonaro no Recife no último dia 2 de outubro e indiciou o acusado, o administrador de empresas Luciano Matias Soares, por tentativa de homicídio privilegiado. O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) informou que o inquérito foi recebido pela Central de Inquéritos da Capital na última sexta-feira (5) e distribuído para um dos seus promotores, que será o responsável por apreciar os autos e decidir se apresenta denúncia ou não. No entanto, tanto a acusação quanto a defesa discordam da tipificação do crime descrita no inquérito policial, do delegado Elielton Xavier, da 1ª Delegacia de Polícia de Homicídios (DHPP).

Para Beatriz Calado, uma das advogadas que representa Sarev Freitas, a definição de tentativa de homicídio privilegiado é um atenuante que diminui a pena e acaba por colocar na vítima a culpa pelo crime que sofreu. “O relatório diz que [a tipificação] é por excesso de dolo na legítima defesa, ancorada na injusta provocação ao agente. Isso quer dizer que o agressor, naquele momento, não tinha outra saída a não ser fazer o que fez, porque estava em uma situação em que precisava se defender, estava em legítima defesa. Só que, ao afirmar isso, se está culpabilizando a vítima, uma pessoa que só estava trabalhando, pedindo para o motorista esperar um pouco para não avançar com o carro, e foi atropelada”, afirma.

Sarev Freitas é integrante da Comissão de Advocacia Popular (CAP) da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), e, no dia do ato, estava presente representando o órgão. “A CAP reúne advogados populares que prestam alguns serviços, um desses é estar presente em atos democráticos para garantir segurança das pessoas que estão e não estão na manifestação. A própria Sarev foi uma das pessoas que ajudou a socorrer um dos homens que perdeu a visão no protesto de 29 de março”, conta Beatriz, que também compõe a Comissão, como secretária.


Sarev (à direita) atua como integrante da Comissão de Advocacia Popular da OAB em Pernambuco / Hugo Muniz

Segundo ela, no momento do atropelamento, Sarev estava tentando impedir que o condutor Luciano Matias Soares furasse o bloqueio de trânsito na esquina da Rua 1º de Março com a Avenida Martins de Barros, implementado para garantir a dispersão do ato em segurança. Luciano avançou com o carro, atropelou a advogada e a arrastou por cerca de 100 metros. Sarev passou 12 dias internada em hospital no Recife, quatro desses na UTI. Ela sofreu trauma na cabeça e fratura na tíbia e precisou passar por cirurgia para a colocação de dez pinos no tornozelo esquerdo.

“Ela está sem poder botar o pé no chão, a perspectiva é que fique em recuperação por seis meses. A CAP, inclusive, está fazendo uma cotinha para pagar uma cuidadora porque mora só ela e a mãe, que é idosa. Sarev é o arrimo da família, era ela que levava o sustento para casa. A situação está complicada”, conta Beatriz.

Para ela, o indiciamento também pode abrir um “precedente assustador” quanto ao direito ao protesto. “Se a gente disser que ele agiu por legítima defesa, a gente está dizendo que, em qualquer ato, se alguém quiser furar um bloqueio de trânsito, ele está amparado por legítima defesa porque tem manifestantes ao redor. É muito perigoso e abre espaço para situações que, no estado político que a gente está, é preocupante”, argumentou.  

Agora as advogadas aguardam a decisão do MPPE. Se o órgão decidir por seguir com a denúncia, o caso passará para outro promotor, responsável por fazer a acusação. Nos casos de ação pública incondicionada, como é o de Sarev, a vítima também tem direito de constituir seus advogados para exercer o papel de assistentes de acusação. “Além de ter um diálogo com o Ministério Público, também é uma garantia caso a vítima entenda que alguma diligência não foi feita, não seguiu da maneira que deveria seguir. Face à omissão do MPPE, a gente pode se manifestar, apresentar testemunhas etc”, explica Beatriz, que deverá ser uma das assistentes de acusação.

Paralelamente, Sarev também conta com uma equipe de advogados que buscam a responsabilização cível pelos os danos que ela sofreu - como com custos de muleta, bota, transporte para fisioterapia e danos estéticos. Uma vez que Sarev estava trabalhando quando foi ferida, a Comissão de Advocacia Popular da OAB também acompanha o caso via Ofício da Presidência da OAB.

A defesa

O advogado de Luciano Matias Soares, Sérgio Gonçalves, disse que “a defesa aceitou a opinião do delegado [pelo indiciamento] por tentativa de homicídio privilegiado, tendo em vista que não é uma decisão definitiva”. “Na visão da defesa, não houve tentativa de homicídio. Acredito que seria um crime de trânsito ou até uma lesão corporal. Mas a defesa não quer atrapalhar nem o trabalho da promotoria, muito menos do magistrado. Quando for tempo hábil, tomaremos as medidas cabíveis”, falou.


Luciano Matias Soares acusa a advogada de ter depredado seu veículo e diz não ter percebido que passou por cima da perna dela / Captura de tela/TV Globo Pernambuco

Se a denúncia for feita e Luciano for processado por tentativa de homicídio privilegiado, o caso será encaminhado para a Vara dos Crimes contra a Vida, explicou Sérgio. Se for por crime de trânsito ou lesão corporal, será para a Vara Criminal. “A defesa está preparada seja qual for o caso”, completou.

Ele lembrou que, no dia 2 de outubro, logo após o ocorrido, acompanhou Luciano à Central de Flagrantes para prestar um Boletim de Ocorrência (BO) pelo que, na visão do acusado, teria sido um acidente. 

“Ele relatou à autoridade policial o que aconteceu, que o carro foi danificado por manifestantes, e a mesma autoridade informou qual artigo seria enquadrado no BO. Depois disso, a SDS (Secretaria de Defesa Social) emitiu uma nota informando que o caso seria de tentativa de homicídio. A defesa compareceu juntamente com o acusado n Departamento De Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP), colocamos à disposição do delegado o acusado, para quando ele fosse ouvi-lo, e o veículo, para que fossem diligenciadas as perícias devidas”, relatou. De acordo com o advogado, foram constatadas no inquérito várias avarias e amassos no carro, além de comprovado que o vidro do automóvel foi quebrado.

Na opinião de Sérgio, o delegado deveria ter requerido “a dilação do prazo para que ele concluísse as investigações com laudo traumatológico da vítima, que não está nos autos”.

 

Edição: Vanessa Gonzaga