Paraíba

ENTREVISTA

Jô Oliveira, primeira vereadora negra de CG, fala sobre sua trajetória de vida, luta e racismo

"A vitória de Marielle foi como celebrar uma nossa também; uma mulher negra tem a possibilidade de ascender ao poder"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Vereadora Jô Oliveira (PC do B). - Assessoria Jô

Jô Oliveira nasceu em Campina Grande. Filha de Dona Basta, uma mulher negra, trabalhadora doméstica e mãe solo, estudou em escola pública e ingressou no curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), onde se graduou e concluiu mestrado na área. Começou sua atuação no movimento estudantil, na UEPB. Iniciou sua militância nas atividades da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), e depois integrando a Associação de Juventude pelo Resgate a Cultura e Cidadania (AJurcc), da qual é sócia-fundadora. 

Em 2016, Jô Oliveira disputou pela primeira vez uma vaga na Câmara Municipal de Campina Grande, obtendo 1.544 votos, ficando assim na primeira suplência, mas nunca chegando a assumir. Em 2020, alcança a vitória com 3.050 votos, entrando para a história como a primeira mulher negra a ser eleita vereadora de Campina Grande. Sobre sua inserção na política partidária, ela disse "nunca pensei em estar nesse lugar, nem fui ensinada, como a maioria das mulheres e a maioria da população negra. Então, se nós vamos estar nesse processo que seja com todo mundo que acredita que tem a possibilidade de entender que esse projeto precisa ser coletivo para que ele tenha de fato efetividade".

Suas principais bandeiras são a defesa dos direitos das mulheres, da população LGBTQIAP+, da periferia, das pessoas com deficiência, e da população idosa, com foco nas mulheres negras e juventudes, segmentos que estão diretamente articulados às demandas de saúde, educação, assistência social, cultura, o direito à cidade, e a defesa do direito à vida.


Jô Oliveira: Lute como uma preta. / Assessoria Jô

 

Para fechar o último dia de novembro empretecendo o Brasil de Fato, fomos entrevistar Jô Oliveira. Confira a seguir:

Mônica Lourenço - Sendo você uma mulher negra e filha de uma mulher negra, que era trabalhadora doméstica e mãe solo, como foi sua vida nesse contexto tão comum e duro das mulheres negras brasileiras?


Jô Oliveira- Primeiro, é sempre importante a gente marcar esse lugar das mulheres negras, chefes de família, mãe solo, visto que marca exatamente esse contexto em que são as mulheres negras, não só as mais vulnerabilizadas, mas também aquelas que são abandonadas por seus parceiros, pelas pessoas que têm uma responsabilidade fundamental na educação dos filhos e filhas. Então, acaba sendo mais um elemento para a responsabilização das mulheres negras. No meu caso, foi difícil como sempre. Obviamente, a sociedade cobra muito desse referencial masculino na criação dos filhos e filhas e, muitas vezes, invisibiliza a ação dessas mulheres. Eu tive a possibilidade de ter uma mãe muito forte, não estou aqui exaltando o que significa essa força, mas estou aqui colocando, inclusive como referência, que muitas das vezes ela abriu mão das possibilidades. Eu lembro que quando eu era criança, ela sempre dizia que queria fazer um curso de corte e costura, queria se especializar, entretanto não tinha dinheiro suficiente para fazer isso para ela e para a minha formação, para ter o dinheiro para merenda, assim, ela sempre priorizou a minha educação. E também, para além dessa questão da priorização, eu ouvi muito ela dizendo isso, "eu não quero que você pegue a mesma perspectiva que eu tenho, em relação ao trabalho doméstico". Hoje eu entendo que não só a isso, mas até a possibilidade de subempregos, que infelizmente ela vivenciou. O quanto era difícil e limitador a questão do acesso à alimentação, não que tivesse faltado, mas era sempre no limite do aperto. Você tinha o essencial, o que para uma criança que às vezes queria um tênis novo, que queria determinados tipos de alimento, nem sempre era possível. E eu lembro que ela sempre disse assim: "você vai ter o que é possível". Ela diz hoje ainda que eu era uma criança muito conformada, no entanto, não é questão de conformidade, mas sim de você entender uma dinâmica que é ser criada por essa mulher, saber que eram as dificuldades daquele contexto e ter a possibilidade de aceitar isso. Então, eu lembro com muito orgulho dessa minha mãe e que acaba sendo um referencial para tantas outras mulheres negras, que estão aí nas suas batalhas diárias, se virando como podem, como é possível, dentro dessa sociedade, que inclusive marginaliza essas mulheres, marginaliza a atuação, as coloca, muitas vezes, no lugar de subemprego e tantas dificuldades para ter o mínimo, para garantir a existência de seus filhos e filhas. Por exemplo, minha mãe perdeu uma criança - eu digo que eu sou filha única hoje, porque não tenho a lembrança do meu irmão -, ela me teve e teve um outro filho e ele, infelizmente, faleceu vítima de sarampo. Imagine o que é para uma mãe perder o filho para uma doença que hoje, a gente tem controle, mas que no período não foi possível. Além de tudo, tem essa dor de não ter tido seu outro filho, de não ter garantindo a formação e a educação como ela pôde fazer comigo.


Como foi que você se interessou pela política?

O interesse na política, e aqui a política nessa perspectiva de pensar de forma coletiva, veio com a minha inserção nos movimentos sociais. Faço questão de frisar os lugares que o movimento estudantil, que o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), o movimento de mulheres, tiveram na minha compreensão sobre observar os espaços, observar os espaços de poder, e perceber as ausências em relação a nós, aos nossos corpos, mas principalmente em relação às nossas vozes. Esse contexto surge muito no sentido do que falamos nos movimentos: "a gente, enquanto mulheres, é a maioria da população, mas quando a gente avalia o ambiente da política, nós somos em menor número. Enquanto população negra somos a maioria, mas não estamos ocupando os espaços de decisão da vida pública", juntando esses fatores ligado à perspectiva de pensar as juventudes, e ter essa vontade de mudar o nosso contexto, falando do âmbito comunitário, pensando também em políticas públicas, essa junção de coisas me levou a entender que seria importante fazer esse tipo de disputa. É importante colocar que não foi somente uma decisão pessoal, óbvio que a gente precisa colocar energia, força empenho para que as coisas aconteçam, mas eu lembro que uma das principais coisas que eu disse a todo mundo que começou a dizer "ah você precisa pensar nessa perspectiva da política partidária e ter a possibilidade de concorrer a um cargo", é que não dá para fazer nada sozinho, nem sozinha nesse caso, se a gente vai, vai, mas não é um projeto de Jô. Eu, pessoalmente, nunca pensei em estar nesse lugar, nem fui ensinada a estar, como a maioria das mulheres e a maioria da população negra,  então, se nós vamos estar nesse processo que seja com todo mundo que  acredita que tem a possibilidade de entender que esse projeto precisa ser coletivo para que ele tenha de fato efetividade. Cada passo que a gente dá nessa direção, precisa ser também coletivo e dialogado. Acredito que confere muito mais, não só legitimidade, como também representação, garante que muitas mãos se envolvam e se engajem com a gente no suporte necessário para enfrentar as lutas diárias.

E como foi tua trajetória até assumir o mandato?

No âmbito da política partidária, a primeira coisa foi a escolha do partido. Eu fui filiada ao PT durante 15 anos, desde 2001, no momento que eu entrei na universidade, até 2015. Eu acompanhava os processos de eleição dos diretórios e todas as coisas que passam pela dinâmica de organização do partido, mas nunca me entendi no lugar de candidata, como possível nome a ser votada, somente depois com a aproximação com o mandato da Deputada Estela Bezerra, em que a gente foi se aproximando do ambiente do espaço legislativo na condição de assessoria, foi que a gente foi fermentando essa possibilidade. Foi quando eu  me filiei ao PSB e já vi essa perspectiva de disputar uma eleição. É importante a gente colocar que o ambiente da política partidária também é uma ambiente muito difícil para as mulheres, assim como no conjunto da sociedade em todas as estruturas. Chegar nesse ambiente e se colocar para concorrer, é enfrentar determinadas resistências que estão postas. Concorri em 2016 como candidata a vereadora aqui em Campina Grande, tive 1.544 votos, foi um momento que a gente teve a possibilidade de se colocar para a cidade de Campina Grande, inclusive questionando esse lugar e esse modelo do que é ser candidata e candidato na nossa cidade. A gente vive num espaço em que a política também é um elemento familiar, tem muito dessa trajetória do sobrenome, de ser filho, neto de alguém e eu sempre dizia em 2016 e acabo reforçando isso aqui também, as cadeiras elas estão postas, mudam-se o primeiro nome, mas os sobrenomes ou essa relação familiar, mesmo que não seja um parente direto, mas um alguém que tem uma relação com um determinado grupo político, então é alguém que pode já ir fazendo esses enfrentamentos, como assim a política é esse lugar que é para poucos? A gente precisa ter outras possibilidades, precisa ter outros perfis. Fazer o questionamento, certamente, não é fácil. Nosso slogan era Cor de Campina, eu ouvi coisas do tipo: 'que história é essa que a cor de Campina é a sua e as outras pessoas?' As pessoas se incomodam com o fato de a gente dizer que a nossa cor também é de Campina Grande, esse é só um elemento para a gente mostrar como é difícil ir furando, ir causando fissuras na estrutura, como diz Angela Davis, a fim de ter a possibilidade mínima de se movimentar diante desse fazer política, apresentar outras perspectivas, outras possibilidades para o fazer política partidária. Nesse contexto de ficarmos com 1.544 votos, nós ficamos como suplentes, ficamos quatro anos na suplência, nunca assumimos nenhum mês. É importante colocar um elemento fundamental nisso, porque a gente já podia ter experimentado esse ambiente do legislativo, mas infelizmente, por questões diversas, que eu particularmente não consigo explicar, nós não assumimos nenhum período de mandato. E em 2020, quando nós nos colocamos novamente na disputa, fomos em busca de ampliar aquilo que nós construímos, a partir da nossa trajetória, da nossa inserção na política partidária, mas sempre tendo como perspectiva de que a gente podia chegar nesse ambiente que estamos hoje. Foi com a grata satisfação e obviamente com muito trabalho, muito empenho e muitas mãos envolvidas que nós quase conseguimos dobrar nossa votação em relação a 2016 e tivemos 3.050 votos e foi muito importante ver o resultado dessa somatória de esforços, de tanta gente envolvida,  gente que eu nem conhecia fazendo campanha, apresentando nosso perfil, pedindo entre os familiares, entre os amigos. Mostra inclusive essa possibilidade, a cidade também está aberta a outros perfis, a outras possibilidades de fazer política. Continua sendo uma dificuldade porque, inclusive, estar hoje nesse ambiente, é tentar entender o funcionamento mesmo desse dia a dia. como eu disse, nós não somos ensinadas que esse ambiente da política também é uma possibilidade, assim, a gente precisa estar a todo tempo mostrando a nossa capacidade, a gente precisa conhecer o funcionamento a partir do regimento interno, a gente precisa entender o funcionamento das leis, a gente precisa dialogar com a comunidade e saber como transformar essas demandas em projetos ou em requerimentos, a gente precisa sempre estar à disposição 24 horas, estamos nesse lugar também, nessa perspectiva de representação das pessoas de Campina Grande. É uma somatória de coisas que acaba trazendo muito mais responsabilidades, porque não é somente o ambiente da representação, é também a perspectiva da representação com a qualidade que as pessoas esperam da gente. Muitas vezes eu acabo brincando que a representação é muito bacana, mas também tem um peso muito grande com ela. É uma responsabilidade você estar ali naquele lugar e saber que representa, por exemplo, um espaço de 68 anos na Câmara de Vereadores de Campina Grande, sem uma mulher negra, sem um perfil como o nosso. Às vezes, a gente fica assim meio assustada sobre o que isso significa, até mesmo dentro da dinâmica do cotidiano, eu já parei e já pensei assim, o que 'mulesta' eu estou fazendo aqui? Podia estar em casa com outras possibilidades, inclusive, com menos desgaste emocional, físico, porque certamente não é o momento tranquilo de ouvir tantas coisas contrárias daquilo que nós acreditamos enquanto projeto de sociedade e ter isso colocado em um ambiente comum, na vala ali do que não presta. Todas essas coisas que a gente acaba vivenciando no cotidiano da Câmara, mas que quando a gente para e pensa o que significou a nossa chegada, o que foi todo o caminho para que nós estivéssemos aqui, não somente Jô, mas todas as mulheres negras que me antecederam, toda a abdicação da minha mãe, tantas outras coisas que ela poderia fazer, para que eu tivesse outras possibilidades, faz a gente entender que é urgente e necessário que nós estejamos aqui.


Você é a primeira mulher negra vereadora de Campina Grande. Já sofreu violência política na Câmara de Vereadores, seja em razão do gênero ou da questão étnico-racial?

Falando desse ambiente da violência política, nós estamos na agenda Marielle Franco. Nós assinamos durante a campanha e somos sistematicamente acompanhadas pelo Instituto Marielle Franco. Nesse momento, é sempre importante ter a possibilidade de ter essa referência e colocar a importância que é a gente fazer esse lugar de Marielle, dessa perspectiva de que hoje somos sementes. É importante colocar que Marielle foi candidata em 2016 e nós também fomos. Logo, a vitória de Marielle foi como celebrar uma nossa, uma vez que marca o momento em que uma mulher negra tem a possibilidade de ascender ao poder e do quanto a sua morte, o seu silenciamento, infelizmente, possibilitou que outras mulheres negras se levantassem e se sentissem estimuladas. Quando Marielle foi silenciada, minha prima ligou do Rio de Janeiro e disse: "eu só lembrei de você, se você pudesse não mais concorrer seria importante, porque é um risco". Minha mãe ligou muito preocupada. As pessoas do nosso entorno, do nosso ambiente doméstico ficam muito preocupadas, não à toa, já que as instituições são muito violentas. A forma que elas têm de demonstrar que não nos aceitam nesses espaços, é por meio da violência, seja ela simbólica, de gênero. Em 2020, tivemos um aumento de mulheres negras eleitas, a gente tem acompanhado os relatos de mulheres vereadoras, em outros estados, que têm recebido ameaças de morte, que precisaram sair do país para que pudessem ter a possibilidade de garantir as suas vidas. É um ambiente de risco contínuo e mostra quanto as estruturas não estão preparadas para receber a população, a qual ela de fato deveria representar. Lamentavelmente, as mulheres negras acabam sendo uma parcela significativa disso. No nosso caso, a violência não é física, não é nesse sentido, ela é muito mais no campo do duvidar da nossa capacidade, de dizer, por exemplo, que talvez você não tenha capacidade de presidir uma audiência pública que paute saúde, porque não é um tema específico de mulheres negras; no momento em que você está ali no plenário, você está falando, as pessoas não estão ouvindo aquilo que você está dizendo, como se talvez não tivesse a importância necessária; é a perspectiva de quando você colocar alguma coisa precisar referendar com alguém aquilo que você está dizendo, ou tentar diminuir isso que você está apontando com alternativa somente para não dá os devidos créditos; ou mesmo quando a gente faz a fala a partir do nosso lugar e que marca que estamos aqui enquanto mulheres negras, a gente faz a saudação a alguma outra mulher, no outro dia você tem uma fala que diz 'precisamos saudar todas as mulheres', para diminuir o que você colocou em outros momentos como sendo importante fazer esse marco e registrar o que é estar aqui enquanto mulher negra. Esse ambiente ainda passa muito por isso. Então, também são violências, obviamente, que dadas as proporções, elas são muito ruins, acabam nos limitando muitas vezes, acaba cobrando da gente outros posicionamentos, mas elas são reais. 

Edição: Heloisa de Sousa