Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Lagoa dos Patos: entidades querem anular audiência pública por ferir direito à participação

Pesquisadores e pescadores criticam falta de informação em audiência virtual sobre projeto de parque eólico na Lagoa

Sul 21 |
Segundo projeto do governo do RS, Lagoa dos Patos seria dividida em dois grandes lotes que seriam concedidos a empresas privadas - Foto: Google Earth/Reprodução

Um grupo de pesquisadores, pescadores artesanais, coletivos e movimentos populares encaminhou à Procuradora Anelise Becker, do Ministério Público Federal, um pedido de anulação da audiência pública online, promovida pelo governo estadual do Rio Grande do Sul, em 21 de janeiro, para tratar do projeto de instalação de um parque eólico dentro da Lagoa dos Patos.

Os autores do pedido consideram que a audiência foi marcada por problemas graves que ferem o “direito constitucional de participação e acesso à informação”. O principal deles, relatam, foi a inviabilidade da efetiva participação social, especificamente dos pescadores e pescadoras artesanais que não dispõem de equipamentos eletrônicos adequados e em muitos casos não possuem sequer conexão à internet. E mesmo aqueles que possuem conexão e realizaram inscrição para perguntas orais não foram aceitos na sala virtual para participar da audiência, afirma ainda o pedido.

Além disso, os autores do pedido apontam ainda a ausência de apresentação do escopo técnico do edital, bem como a ausência do corpo técnico da Sema (Secretaria Estadual do Meio Ambiente) para esclarecimento das questões apresentadas formalmente pelos inscritos. “A audiência pública teve as perguntas e dúvidas respondidas essencialmente pelo Procurador do Estado Juliano Heinen. Grande parte das respostas não continha amparo técnico e foi insuficiente do ponto de vista dos partícipes da audiência”, assinalam.

O pedido de anulação é assinado pelo Fórum da Lagoa dos Patos, Fórum do Delta do Jacuí, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento Pela Soberania na Mineração (MAM), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Pescadores e Pescadoras (MPP), Pastoral da Juventude Rural (PJR), Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e Via Campesina Brasil.

Projeto é ‘inovador’, diz governo do Estado

A Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (Sema) publicou, dia 29 de dezembro de 2021, no Diário Oficial do Estado um “Aviso de Audiência e Consulta Pública” para apresentação de um Projeto de Concessão de Uso de Bem Público para a instalação de parques eólicos dentro da Lagoa dos Patos. A consulta pública virtual foi aberta dia 3 de janeiro e se estendeu até o dia 21 de janeiro, com o objetivo, segundo a secretaria, de receber “sugestões e contribuições da população para aprimorar a futura concessão”.

Segundo o projeto do governo gaúcho, a Lagoa dos Patos seria dividida em dois grandes lotes (lote norte e lote sul) com o objetivo de atrair “o maior número de investidores”. A expectativa do Executivo é que o edital para a concessão das áreas da Lagoa seja publicado até o início de fevereiro de 2022. Ainda segundo o Executivo, com a concessão, “o Estado do Rio Grande do Sul pretende oferecer uma solução de médio e longo prazo para a geração de energia renovável e limpa”, além de “garantir o desenvolvimento sustentável da região com investimentos substanciais”. Todo o processo, diz a Sema-RS, “será desenvolvido respeitando as normas ambientais previstas em legislação”.


Audiência pública on-line foi transmitido pelo canal da Sema no Youtube / Foto: Priscila Valério/Divulgação

Na abertura, o secretário adjunto da Sema, Guilherme de Souza, defendeu o projeto como “inovador” e a importância da troca de ideias sobre o mesmo. “Como é um projeto inovador, é normal que haja dúvidas. A proposta da audiência é trazer esclarecimentos, coletar sugestões e dar clareza ao processo”, afirmou.

O coordenador setorial da Procuradoria-Geral do Estado na Sema, Juliano Heinen, apontou o projeto como expressão do compromisso do governo firmado na COP26, em Glasgow, para reduzir as emissões de carbono. “Este momento é o pontapé inicial para uma grande jornada em que o Estado se torna pioneiro na busca por soluções alternativas para a produção de energia limpa por fontes renováveis”, assinalou o procurador.  O site da Sema disponibillizou neste endereço outras informações e documentos sobre o processo de concessão.

Após as apresentações dos integrantes do governo, o espaço foi aberto para as manifestações das pessoas que tinham se inscrito previamente por e-mail e as respostas dos integrantes da mesa formada pelo secretário adjunto, pelo procurador do Estado e pelo diretor de Energia da Sema, Eberson Silveira. No entanto, pesquisadores, pescadores e pescadoras artesanais que tinham se inscrito para participar da audiência relataram que não foram aceitos na sala para participar do debate e reclamaram da ausência de uma apresentação técnica do projeto e de seus possíveis impactos ambientais e sociais.

“Audiência pública deveria ouvir as pessoas que serão afetadas”

Liandra Caldasso, professora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e integrante da coordenação do Fórum da Lagoa dos Patos, qualificou como um fato “gravíssimo” a impossibilidade de participação de muitos pescadores e pescadoras artesanais na audiência pública.

“Muitos pescadores e pescadoras que estavam inscritos não conseguiram falar. Alguns poucos tiveram a oportunidade de falar. Para mim isso é gravíssimo, pois a audiência pública deveria ouvir as pessoas que podem ser afetadas pelo projeto. Os pescadores da comunidade da Várzea, do interior de São José do Norte, por exemplo, sequer ficaram sabendo dessa proposta, da audiência pública e estão completamente sem informações. Esse é um exemplo de que a Sema e o Estado precisam dialogar mais com as comunidades”.

Para além do problema do déficit democrático, a pesquisadora apontou outros problemas na audiência pública, que também considerou bastante graves, como, por exemplo, a não apresentação, por parte do governo, do projeto de instalação de um parque eólico dentro da lagoa.

“A audiência pública não teve um momento para apresentação da proposta pelos técnicos da Sema. Não havia um corpo técnico da secretaria apresentando a proposta do empreendimento do parque eólico. As respostas aos questionamentos feitos na audiência tampouco foram dadas por pessoas tecnicamente qualificadas para tanto e sim pelo procurador do Estado. E essas respostas não tiveram a qualificação e o amparo técnico adequado e suficiente. Esses são os dois grandes motivos para justificar o pedido de anulação da audiência que estamos fazendo”.


Possível criação de zonas de exclusão de pesca preocupa pescadores / Foto: Gustavo Vara/Prefeitura de Pelotas

“Eles chamavam meu nome, mas não me aceitavam”

Pescadora artesanal e moradora de uma comunidade pesqueira tradicional no interior de Rio Grande, na Ilha dos Marinheiros, Viviane Machado Alves se inscreveu para participar da audiência pública, pois pretendia fazer questionamentos sobre o projeto aos integrantes do governo do Estado.

“Eu era a décima inscrita. Eu estava na sala, acompanhando pelo Youtube, pedindo permissão para entrar, só esperando alguém me aceitar para entrar dentro da sala. Eles chamavam meu nome, mas não me aceitavam. Não me aceitaram em nenhum momento. Nós, pescadores e pescadoras não pudemos falar, não pudemos perguntar como ia ficar a nossa situação, onde iríamos pescar e o que eles pretendiam fazer com os pescadores artesanais da Lagoa dos Patos. Ficamos sem resposta. Essa audiência pública, na verdade, foi uma vergonha”.

Ausência de estudos sobre os impactos ambientais

Roberto Verdum, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Laboratório PAGUS, também criticou o modo como foi conduzida a audiência pública e, de um modo mais geral,  como vem sendo conduzido o projeto para a implantação de um parque eólico na Lagoa dos Patos.

“A avaliação da maioria das pessoas que se manifestaram é de que esse processo está sendo bastante rápido e de pouco conhecimento público. A audiência pública revelou uma intenção de referendar o processo com alguns procedimentos que a gente já conhece. Há um grande desconhecimento do público em geral sobre essa proposta que quer privatizar um espaço público de domínio estadual, federal e também transfronteiriço se considerarmos que a Laguna dos Patos é um complexo associado à Lagoa Mirim que é um corpo d’água transfronteiriço com o Uruguai”.

Verdum trabalha desde 2005 com a temática dos parques eólicos e seus impactos ambientais. O pesquisador assinala que é preciso questionar o mito da Energia Limpa, que teria apenas um baixo impacto ambiental. Ele aponta três grupos de impactos que devem ser levados em conta no projeto em questão. O primeiro diz respeito às transformações na paisagem e aos impactos sobre a fauna. O pesquisador observa:

“Em pesquisa recente no parque eólico de Tramandaí, identificamos impactos e transformações na paisagem local, nas dunas e na morte de aves, sobretudo, nos nichos da planície costeira. No mapeamento das áreas que representam as  paisagens de referência, a Laguna dos Patos é considerada um ícone da paisagem! Quais estudos sobre estes impactos na paisagem e demais parâmetros ambientais foram realizados para se pensar numa proposição como esta?”


Região costeira já sofre passivo ambiental causado pelo plantio de exóticas, na década de 1970, com interferência direta nas dunas / Foto: Roberto Verdum

O segundo está relacionado ao que o pesquisador define como “interferências na dinâmica hidro-geomorfológica no complexo lagunar Patos-Mirim”. “A circulação de água no corpo lagunar resultante dos cenários de vento sudoeste e nordeste tem uma relação direta com o Guaíba e a Lagoa Mirim. Neste sentido, há raros estudos que tratam do complexo lagunar e as intervenções que representaram este passivo ambiental que se propõe instalar. No projeto proposto os estudos são sem sustentação científica”, assinala Verdum. E questiona:

“Será mais um passível ambiental a ser instalado na planície costeira, no mínimo para 30 anos, como já recebemos o passivo ambiental do plantio de exóticas, com interferência direta nas dunas, dinâmica hídrica das lagoas, fauna e flora? Os estudos previram uma projeção de impactos futuros e como passivo ambiental? Quem será o responsável pela desmobilização dos parques que serão instalados, pela sua obsolescência ou falência das empresas da concessão?”

E o terceiro ponto é a “apropriação de território de domínio público estadual, federal e internacional para fins de uso privado”. Roberto Verdum questiona a visão dos autores do projeto que enxerga a lagoa como “um território sem donos e sem cercas”. “Em se tratando de um espaço territorial de interesse público e de domínio do Estado, por que os seus representantes apresentam esta proposta de uso em um espaço público ao interesse privado e que ficará restrito ao acesso das pessoas nas suas diversas atividades?”, indaga.  Para ele, a proposta expressa uma “transfiguração dos interesses ditos públicos em prol dos interesses privados”.

“Inserir parques eólicos no complexo lagunar Patos-Mirim não se justifica, a não ser por interesses privados de não pagamento de arrendamento, uma possível isenção de impostos, nas negociações entre as partes, e privatização de espaços públicos em conflito com atividades de pesca e turismo de valor inestimável, como ambiente lagunar único na escala mundial”, conclui.


Pesquisadores também cobram estudos de impacto sobre fauna da região / Foto: Roberto Verdum

“Estão tratando a lagoa como um mapa estéril”

O gestor ambiental Ederson Silva, especialista em Gestão Pública, mestre em Gerenciamento Costeiro e doutorando em Educação Ambiental também critica a ideia que vê o território da Lagoa dos Patos como uma área vazia, livre para ser explorada. “Estão tratando a lagoa como um um mapa estéril, retirando toda a vida que existe na região e tratando do processo apenas com números. Sou de uma família de pescadores artesanais. Nasci e me criei na colônia Z3. Já pesquei na Lagoa e sei exatamente o tamanho do absurdo que é essa proposta”, afirma.

Ederson também critica o modo como foi convocada e realizada a audiência pública. “Um problema central é a divulgação e a questão técnica que envolve o modo como foi realizada e que é excludente. A solução tecnológica adotada foi extremamente excludente e limitadora. As pessoas teriam que estar acompanhando a audiência no Youtube e na hora de falar teriam que sair do canal do Youtube e acessar um link. Para poder fazer isso, as pessoas teriam que ter se cadastrado anteriormente por e-mail. Quantos pescadores e pescadoras artesanais têm e-mail? Só isso já é um fator de exclusão gigantesco. E as pessoas ainda teriam, em primeiro lugar, saber que o edital havia sido publicado na internet. Estamos falando de comunidades que têm um elevado grau de analfabetismo e exclusão digital. Quando muito o pessoal pede para os filhos criar uma conta no Whatsapp ou no Facebook”.

Além disso, acrescenta o pesquisador, o procedimento na condução da audiência “foi um desastre”. “Não houve uma apresentação técnica do projeto, só uma fala política por parte do governo do Estado, sem nenhuma fundamentação técnica ou apresentação de dados, como alguém que fosse vender uma ideia, vendendo a Lagoa como se fosse um objeto. Durante a fala de uma das pessoas ficamos sabendo que existe um GT no governo do Estado que está discutindo o projeto, quando o governo sequer havia falado da existência desse GT. O governo também citou, para defender a proposta, uma pesquisa do professor Paulo Tagliani, da FURG, que estava participando da audiência e praticamente desautorizou a citação, negando que seu estudo tivesse esse objetivo”.

Ederson também critica o fato de ter havido mais tempo para falas de representantes do governo do Estado do que para debates, além da não aceitação na sala de muita gente que havia se inscrito para participar. “Eu mesmo fui uma dessas pessoas e acabei fazendo várias reclamações no chat. Quando ameacei acionar o Ministério Público porque a minha fala estava sendo cassada, eles resolveram me chamar e admitir na sala. Muitos pescadores que queriam se manifestar acabaram não sendo aceitos na sala, indicando uma intencionalidade clara de não permitir a participação”.

O temor dos pescadores do norte da lagoa

O geógrafo Cristiano Quaresma de Paula, professor da FURG, que também participou da audiência, destaca que, desde que se ficou sabendo da publicação do edital, dia 29 de dezembro, houve uma mobilização de um grupo de pesquisadores, de apoiadores da pesca artesanal e de pescadores. Essa articulação se deu por meio do Fórum da Lagoa dos Patos (que pega o sul do estuário da lagoa) e o Fórum do Delta do Jacuí (que pega o norte da lagoa). Cristiano fez seu mestrado com pescadores da região do Delta do Jacuí. Segundo ele, para os pescadores dessa região e da Região Metropolitana de Porto Alegre, o norte da Lagoa dos Patos é o principal território de pesca.

“O lago Guaíba já foi tão deteriorado que hoje a salvação dos pescadores é se deslocar algumas horas em direção norte da lagoa dos Patos, onde conseguem fazer as melhores pescarias. Comprometer esse território de pesca seria praticamente decretar o fim da pesca artesanal que garante a sobrevivência hoje de aproximadamente três mil famílias de pescadores. A proposta do parque eólico causou um grande alvoroço nessas comunidades”.

Para eles, acrescenta Cristiano, a possibilidade de interromper a pesca em qualquer de seus territórios pesqueiros atuais é algo muito grave porque eles já perderam muito. Algumas lideranças dos pescadores se inscreveram na audiência e buscaram apoio também no Ministério Público Federal, junto ao núcleo que cuida das comunidades tradicionais, onde foi protocolado um pedido de acompanhamento da audiência pública e um parecer técnico sobre a proposta, elaborado por esse grupo de pesquisadores.

“Esses pescadores se organizaram para fazer perguntas, especialmente sobre os impactos do projeto na região norte da Lagoa, mas não conseguiram falar, como foi o caso do pescador Deraldo Silveira, uma grande liderança da pesca na região e que chegou a ficar nervoso e passar mal por não ter acesso à audiência”, relata o professor da FURG, que considera o processo de tramitação da proposta do parque eólico, até aqui, marcado por uma grande injustiça ambiental. “O grupo que será mais atingido pelo projeto não está podendo participar da discussão, o que contradiz diretamente a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o decreto 6040, que determina que esse grupo social deveria ter direito especial de informação e participação em todo o processo”.

“Nós não somos nada para eles”

O pescador Deraldo Silveira destaca a importância do lado leste da Lagoa para os pescadores. “Trabalhamos de Varzinha até Arambaré, próximo de Rio Grande. Essa área é muito importante pra nós. No inverno, com o peixe rei e o linguado, no verão com a tainha, que dá em cima dos bancos. Com a instalação das torres eólicas. a gente não vai ter mais acesso a muitas dessas áreas”.

Na avaliação de Deraldo, os pescadores foram “esnobados” na audiência pública”. “É uma grande injustiça que a Sema e o governo do Estado estão fazendo conosco, sem nos dar qualquer satisfação e nos tratando como trataram o pessoal que estava na reunião, como se fossem uns nada. Tentaram desqualificar inclusive os professores da FURG, assim como pescadores e coordenadores de colônias de pesca. Nós somos nada para eles”.

Edição: Sul 21