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“Pena de morte”, diz paciente sobre fornecimento irregular de remédio para câncer em Pernambuco

Depois de quatro meses sem fornecer medicamento, Governo Federal envia a Pernambuco só 3% da necessidade do 1° trimestre

Brasil de Fato | Recife (PE) |
"Falecer por falta de medicamento é um crime bárbaro que não pode ficar impune”, afirma o paciente Adeildo Rodrigues - Arquivo Pessoal

Enquanto o fornecimento do mesilato de imatinibe pelo Ministério da Saúde (MS) não é normalizado, os pacientes de leucemia contam o tempo de uma maneira particular -  em contagem regressiva para quando acabará sua reserva do medicamento quimioterápico. O abastecimento do remédio, considerado de alto custo, foi interrompido em outubro em Pernambuco, mas atingiu da mesma forma as demais unidades federativas.

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No início do mês, a notícia da morte de um morador do Sertão do estado, que estava há quatro meses sem medicação, atingiu gravemente os colegas que também são atendidos na Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope), no Recife. “Foi um baque. A pessoa falecer por falta de medicamento é um crime bárbaro que não pode ficar impune”, comentou o aposentado Adeildo Rodrigues, 71, que vive com  leucemia mieloide crônica (LMC) há 17 anos e tem ajudado na mobilização do grupo pela reivindicação de seus direitos.

“A Constituição garante o direito à vida e à saúde. O artigo 5º, inciso XLVII, fala que nenhum brasileiro deve ser penalizado com pena de morte. Aí eu questiono: quando se tira medicamento quimioterápico de um paciente de LMC, isso é ou não é uma pena de morte? Peço a Deus e ao Supremo Tribunal Federal que diga os nomes das pessoas que têm causado a falta desse medicamento”, expressou ele. “É um descaso, as leis constituintes do País não estão valendo de nada, só no papel. Somos formiguinhas lutando contra elefantes.”

O mesilato de imatinibe começou a ser distribuído em Pernambuco nas últimas semanas, mas de maneira fracionada. Uma parte da medicação chegou no dia 3 de fevereiro, conforme informou a Assistência Farmacêutica do Estado. “Foram entregues 1.410 comprimidos de 400mg, o que corresponde a 3% da necessidade do 1° trimestre de 2022; e 9.780 comprimidos de 100mg, o que corresponde a 87% da necessidade. Todos os insumos recebidos já foram encaminhados para as unidades onde o tratamento é realizado”, disse, em nota.

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Com isso, a distribuição às pessoas em tratamento segue de forma irregular, contou a enfermeira especialista em oncologia Melissa Pereira, gerente de Apoio ao Paciente da  Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) - entidade que representa familiares e pacientes com doenças do sangue. “De Pernambuco, alguns pacientes receberam o medicamento todo, outros receberam apenas alguns comprimidos, e alguns não receberam nada”, confirmou. 

Adeildo foi uma das pessoas que conseguiram uma caixa, no dia 8 deste mês, no Hemope. No entanto, ele repassou 20 dos 30 comprimidos a um colega do interior que ainda não havia sido contemplado. O apoio mútuo tem sido o pilar da relação que se criou entre os pacientes, e o que os manteve vivos nos últimos meses. O aposentado estava há alguns dias sem tomar o remédio em janeiro quando recebeu a doação de 20 drágeas de um amigo, e de mais 10 de outra. Com sua medicação garantida até dia 4 de março, Adeildo pôde retribuir o favor e repartir a caixa recebida.


"É constrangedor e triste ficar correndo atrás de uma coisa que é direito nosso", desabafa Maria Betânia Calado, 57 / CORTESIA

Pacientes fazem vaquinha para poder comprar remédio

Já que para muitos o imatinibe ainda não foi entregue, eles têm se organizado de todas as formas - por meio de vaquinhas virtuais, arrecadações, rifas e bazar - para conseguir custear a compra do medicamento. O grupo também tem contado com doações da Abrale. A caixa com 30 comprimidos do rótulo original, Glivec 400 miligramas, da farmacêutica suiça Novartis, chega a custar R$ 17 mil nas farmácias. Já os genéricos podem ser encontrados por entre R$ 1,3 mil e R$ 2 mil.

A aposentada Maria Betânia Calado, 57, diagnosticada com LMC há 17 anos, está à frente de uma das campanhas de financiamento coletivo que foram criadas. Interessados em contribuir, podem acessar a vaquinha através deste link.

 Até esta terça-feira (15), haviam sido arrecadados R$ 5,9 mil reais - o que daria para comprar, na melhor das hipóteses, quatro caixas do imatinibe. As cartelas com as drágeas são repartidas para quem está precisando no momento. 

Apesar do vigor com que encontram a própria solução, a situação não é ideal, tampouco confortável. “É constrangedor e triste ficar correndo atrás de uma coisa que é direito nosso. Está todo mundo muito abalado com isso. A gente fica com medo. Chegou essa caixa que eu peguei no dia 17 de janeiro, dá para 30 dias, vai até dia 26 de fevereiro. Já fico pensando que vai acabar, ‘será que vai chegar?’, a mente já não dorme. Agora imagine quem está desde dezembro sem receber”, descreveu.

O grupo também continua pressionando o poder público, através de processos judiciais para que o Estado de Pernambuco providencie o remédio - todos decididos ao seu favor -, protestos contra o Governo Federal, ações no Ministério Público e denúncias na ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS).


Pacientes e familiares protestaram em frente ao Hemope em 21 de janeiro, em ato direcionado ao Governo Federal. / CORTESIA

Medicamento deverá faltar novamente em abril

Apesar das tentativas de contato, a Abrale não conseguiu ter um posicionamento oficial do Ministério da Saúde para entender a logística da distribuição, revelou Melissa Pereira. “Não são todos os pacientes que vão ter acesso, e isso é uma preocupação. Tem paciente que recebeu, mas vai voltar a faltar novamente. Eles prometeram que tentaram regularizar, mas não é o que está acontecendo. A gente sabe que a licitação da compra é de três em três meses, e provavelmente já foi feita e vai começar a faltar a partir de abril”, explicou. A última licitação do imatinibe saiu no Diário Oficial da União no dia 12 de janeiro, numa compra no valor de R$ 16.265.657,01.

O assunto será pauta da reunião marcada para esta quinta-feira (17) da Abrale com a Comissão Intersetorial de Atenção às Pessoas com Patologia (CIAPP), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a instância colegiada integrante do Ministério da Saúde responsável por fiscalizar, acompanhar e monitorar políticas públicas de saúde. Paralelamente, a ONG também está no processo de agendamento de encontro com Ana Cecília de Morais, coordenadora-geral de Contratos e Licitações de Insumos Estratégicos para Saúde, do Departamento de Logística em Saúde do MS.

O Brasil de Fato Pernambuco procurou o Ministério da Saúde para entender o motivo do fornecimento insuficiente e se há algum prazo para normalização, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.

Paciente que faz a troca do imatinibe não pode retomar seu uso depois

O dano à saúde de quem teve o tratamento interrompido é classificado como gigante pelo médico onco-hematologista Breno Gusmão, integrante do Comitê Médico da Abrale. “Os pacientes que não receberem o imatinibe e continuarem assim correm o risco de entrar uma recaída. Pode ser que ela seja branda ou seja agressiva, não podemos garantir. O risco que corremos ao deixar o paciente sem tratamento é muito grave e desnecessário”, afirma. Uma recaída grave poderia gerar uma crise blástica ou uma crise de leucemia aguda, fazendo com que o paciente tenha que passar por quimioterapia e transplante de medula óssea.

A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) afirmou, em nota, que as unidades que realizam o tratamento seguem “orientando seus pacientes a procurarem seus médicos e avaliarem a migração de tratamento, como segunda alternativa, incluindo outras opções terapêuticas para que não fiquem desassistidos”. 

Entretanto, o médico Breno Gusmão discorda da recomendação: “Não tem que jogar o paciente de volta para o médico para encontrar uma saída. A saída é ir atrás de fornecedores que possam manter o abastacimento”, defende. Ele explica que o mesilato de imatinibe é considerado uma droga de primeira linha; ou seja, é o primeiro medicamento que é usado quando é feito o diagnóstico de LMC. Na segunda linha, há outros insumos, a exemplo do dasatinibe. “A gente faz essa troca habitualmente quando o paciente não está respondendo à droga ou tem efeitos colaterais que não permita ficar tratando com ela”, afirma. 


O Glivec 400 miligramas, da farmacêutica suiça Novartis, é vendido por até R$ 17 mil / REPRODUÇÃO

Se uma pessoa faz a substituição por um medicamento de segunda linha, não é possível retornar depois para o imatinibe. “Não pode ficar trocando, porque você está mexendo com o mecanismo de ação da doença. Se trocar sem nenhum motivo, corre o risco de favorecer mutações que podem dar resistência ao tratamento”, detalha.

O médico ainda levanta que tampouco há garantias de que os outros remédios não terão efeitos colaterais no paciente. “Vamos arriscar mudar para todos e arriscar a não-resposta ao tratamento e os efeitos colaterais a um paciente que recebe há 17 anos o imatinibe sem nenhuma intercorrência? É um pouco temerário”, acrescenta. Ele conclui ponderando que a decisão elevaria os custos. “O governo está preparado para a mudança de todos os tratamentos (de leucemia) no SUS?”, questiona.

 

Edição: Vanessa Gonzaga