Pernambuco

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Juiz Federal de Pernambuco ordena omissão de nome de coronel em relatório sobre ditadura

Coronel Olinto Ferraz comandava prisão onde ocorreram as torturas e assassinato do agricultor e militante Amaro Carvalho

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Monumento Tortura Nunca Mais, no Recife, é uma homenagem às vítimas da ditadura militar
Monumento Tortura Nunca Mais, no Recife, é uma homenagem às vítimas da ditadura militar - Rafael Santos

O juiz federal e desembargador Hélio Silvio Ourém Campos, do Tribunal Regional Federal da 5ª região (TRF-5), em Pernambuco, determinou que a União censure de trechos do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, grupo que atuou de 2011 a 2014 para revelar crimes da ditadura militar (1964-85). A determinação protege o nome do falecido coronel Olinto de Souza Ferraz, que atuou durante a ditadura e é citado no caso do assassinato do trabalhador rural e militante comunista Amaro Luiz de Carvalho.

O referido coronel vem de uma família de militares do sertão pernambucano. Naturais de Floresta, os irmãos Otacílio, Ozires, Olímpio e Olinto de Souza Ferraz, todos integraram os quadros da Polícia Militar de Pernambuco. Durante a ditadura militar, Olinto chefiava a Casa de Detenção em 1971, ano em que Amaro Luiz de Carvalho foi assassinado durante sessão de torturas na prisão. Também conhecido como “Capivara”, Amaro tinha 40 anos, era um camponês, presidente do sindicato rural de Barreiros, na mata sul do estado, além de militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

Na época a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco declarou que Amaro Carvalho teria sido envenenado por outros comunistas presos, mas os exames de necropsia atestam que a morte foi causada por “hemorragia pulmonar decorrente de traumatismo no tórax causado por instrumento cortante”.

A Casa de Detenção foi desativada dois anos após a morte de Amaro e os detentos foram transferidos para um presídio em Itamaracá. Após funcionar como presídio por 118 anos (de 1855 a 1973), o prédio foi restaurado e transformado na atual Casa da Cultura, reaberta em 1976.

Apesar de só ter vindo à tona agora, a decisão do desembargador Ourém Campos data do dia 8 de abril de 2021. O juiz do TRF-5 alega que o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) não atribui responsabilidade direta ao coronel e isso daria margem para “má interpretação”, de modo que a supressão de seu nome visa “preservar a imagem, honra do militar e de sua família”.

“Diante da inexistência de fatos concretos negativos contra o militar em questão e da incerteza quanto a sua suposta omissão por ser Diretor da Casa de Detenção, à época da morte de Amaro Luiz de Carvalho” (...), a supressão de seu nome evita “qualquer má interpretação acerca dos fatos para preservar a imagem, honra do militar e de sua família”, diz a decisão de Ourém Campos.

A ação contra a União para retirar o nome de Olinto de Souza Ferraz dos documentos públicos da CNV foi movida ainda em 2019 pelos filhos do coronel, Maria Fernanda Novais de Souza Cavalcanti e Marcos Olinto Novais de Souza. Na prática, o TRF-5 obriga o Governo Federal a remover o relatório disponível online no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), substituindo-o por uma nova versão, em que todas as menções ao coronel tenham uma tarja preta escondendo seu nome.

Os filhos alegam que o nome do coronel estaria numa “lista de servidores públicos que cometeram ‘graves violações aos Direitos Humanos’ durante a ditadura”. Mas o relatório da CNV não qualifica Olinto Ferraz como torturador, citando-o dentro da hierarquia dos órgãos utilizados para a tortura, atribuindo ao coronel “responsabilidade pela gestão de estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos”.


Monumento Tortura Nunca Mais é pontos de encontro e vigília pela democracia / Marcos Barbosa/Brasil de Fato Pernambuco

Entidades e familiares das vítimas da ditadura protestam

Grupos da sociedade civil que defendem os Direitos Humanos e ligados às vítimas da ditadura emitiram nota de protesto contra a decisão de desembargador pernambucano. O documento classifica a decisão judicial como “inadmissível” e uma “violação ao direito à memória e verdade das vítimas da ditadura, de seus familiares e de toda a sociedade brasileira”.

A nota aponta ainda que a sentença, além de ofensiva às famílias das vítimas, também fere a Lei de Acesso à Informação (LAI, Lei 12.527/2011) em seu artigo 31, parágrafo 4º, em que determina que não se pode restringir o acesso a informação – ainda que sejam informações relativas à vida pessoal – se tal restrição vai “prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.

A carta de protesto também aponta que tal censura viola a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); e a Lei Modelo de Acesso a Informação, da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o Brasil é signatário.

A nota foi assinada por cerca de 50 associações nacionais e pernambucanas de defesa dos Direitos Humanos, como Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), o Centro de Estudos Dom Hélder Câmara (Cendhec) e Centro Cultural Manoel Lisboa (CCML); além de familiares das vítimas da ditadura em Pernambuco, como Amparo Araújo, Anacleto Julião, Edival Nunes Cajá e Marcelo Santa Cruz.

AGU de Bolsonaro não recorreu e já censurou

A Advocacia-Geral da União (AGU) optou por não recorrer da decisão do TRF-5, acatando-a e determinando o cumprimento imediato da decisão. Há quase um ano os documentos da CNV estão censurados. Quando da decisão do TRF-5, a AGU era comandada por André Mendonça, que posteriormente foi nomeado ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) sob a justificativa de ser “terrivelmente evangélico”.

As entidades e familiares pedem a anulação da sentença do TRF-5 e exige explicações pela falta de posicionamento da AGU. “A ação judicial (...) foi conduzida sem a necessária intervenção do Ministério Público Federal (MPF), obrigatória em matéria de justiça de transição, especialmente quando se discute o direito à verdade e à memória”. E também responsabiliza o governo Bolsonaro pela omissão da AGU “em seu dever de defender o direito fundamental de acesso à informação, à memória e à verdade, ao não apresentar recurso contra a decisão (...), determinando ao Arquivo Nacional uma execução excessiva da sentença”.

Em 2017 um outro juiz federal, o desembargador Friedmann Anderson Wendpap, do TRF-1 (Paraná), também determinou a censura, visando proteger o nome de Ney Braga, militar e político paranaense. Mas neste caso a União, ainda que no governo Temer, recorreu e conseguiu reverter. Os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, do seu início (2011) ao relatório final (2014), foram alvo de protestos e ataques dos órgãos militares.

Com atraso, MPF estuda recorrer

O Brasil de Fato questionou a Procuradoria Regional da República da 5ª região (PRR-5), do Ministério Público Federal (MPF), do por que não haver tomado parte no processo. Por meio de nota a PRR-5 respondeu a reportagem informando que apenas nesta quarta-feira (16) o processo foi distribuído na procuradoria e está sendo estudado, não podendo, por enquanto, “emitir nenhuma opinião ou informação a respeito nessa fase de análise”.

Monumento às vítimas destruído

No encontro da rua da Aurora com a avenida Mário Melo, no bairro de Santo Amaro, centro do Recife, fica o Monumento Tortura Nunca Mais, com homenagens às vítimas da ditadura militar. No último fim de semana as dezenas de placas de alumínio com nomes e fotos das vítimas foram roubadas. Não é a primeira vez que a “Calçada da Memória” sofre atos do tipo.

A Prefeitura do Recife anunciou que o monumento será revitalizado e solicitou à Secretaria de Defesa Social (SDS), do Governo do Estado, que reforce a fiscalização na área. O ato pode ter sido uma ação política da direita ou furto motivado pelo valor do alumínio. 

Edição: Vanessa Gonzaga