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Entrevista | "É angustiante saber que pelo segundo ano consecutivo não temos carnaval de rua"

Márcio Santos falou sobre os principais impactos culturais, sociais e econômicos do segundo ano consecutivo sem carnaval

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

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Com mais de 42 anos de história, Vozes da África segue colecionando títulos e memórias por onde passa - Maracatu Vozes da África

Com mais um ano sem Carnaval por conta da pandemia do coronavírus, vários estados brasileiros cancelaram as grandes manifestações de rua com objetivo de evitar aglomerações e combater o avanço do coronavírus e o surgimento de novas variantes. Mas quais as consequências econômicas, sociais e culturais dessa ação? Para falar sobre o tema, o Brasil de Fato conversou com Márcio Santos, vice-presidente carnavalesco do Maracatu Vozes da África.

Brasil de Fato – Gostaríamos que você falasse um pouco sobre quem é o Maracatu Vozes da África?

O Maracatu Vozes da África é o terceiro maracatu mais antigo em atividade de Fortaleza. O grupo foi fundado em 1980 durante a semana da consciência negra, quando o jornalista Paulo Tadeu se reuniu com um grupo de intelectuais envolvidos em várias áreas como professores da UECE, músicos, historiadores, pesquisadores, poetas, compositores, carnavalesco e outros. E foi nesse encontro, durante a semana da consciência negra que surge o Vozes da África. E o maracatu vozes da África pisa pela primeira vez os pés na avenida no carnaval de rua de Fortaleza em 1981, onde se consagra campeão e também recebe o estandarte do povo como melhor loa e melhor destaque do carnaval.

E desde esse encontro o maracatu Vozes da África foi pensado para ser um maracatu espetáculo, diferenciado dos demais, e que saísse desse modelo de maracatu que faz atividade somente no carnaval e que estivesse ativamente durante o ano todo, o que não era tão comum naquela época. E é nessa trajetória de 42 anos que o Vozes da África tem mais de 16 títulos de campeão somado com vários títulos de vice-campeão. Nós já estivemos em todas as regiões do estado do Ceará e em algumas capitais, também estivemos em alguns países aqui da América do Sul, Uruguai, Paraguai e Guiana Francesa. Além desses, já estivemos também participando de vários festivais internacionais de folclore no continente Europeu como, por exemplo, na Bélgica, Finlândia, Espanha e França.

E o maracatu é um ponto de memória vinculada ao Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), um espaço museológico onde acolhemos pesquisadores e profissionais de várias áreas, porque o maracatu consegue abranger várias áreas do social, o design, a moda, o jornalismo, a história, enfim, é um espaço de pesquisa, de estudo e também um ponto de cultura titulado pela Secretaria de Cultura de Fortaleza. Hoje, os grupos de maracatu de Fortaleza são reconhecidos enquanto Patrimônio Imaterial da Cidade, e é presidido pelo Aderaldo Oliveira que é um grande parceiro que tem um amor muito grande pelo que faz, pelo maracatu, que se dedicou a vida inteira e hoje é o nosso presidente.

Brasil de Fato – Qual deve ser o impacto social, econômico e cultural do segundo ano consecutivo sem carnaval?

Sem dúvida é um impacto muito grande e uma situação meio angustiante, porque é o segundo ano que não temos carnaval. Desde o ano passado a gente ficou nessa esperança de que iria acontecer o carnaval por conta da vacinação, mas mesmo após a vacina veio segunda e terceira onda, novas variantes, então não foi possível acontecer o carnaval.

Durante o período do carnaval, o nosso grupo acolhe em torno de quarenta pessoas dentro do barracão, além de vários profissionais de várias áreas: designers, soldadores, escultores, pintores, aderecistas, costureiros, cozinheiros entre outros que ficam praticamente o dia inteiro no barracão, e não tendo carnaval não tem esse acolhimento. Então é um impacto muito grande não só dentro dos grupos, mas desde a pessoa que vende água na rua durante os ensaios até os grandes artistas, além do impacto social por conta desse acolhimento dos profissionais que fazemos. Acolhemos também pessoas da comunidade durante os ensaios, nos espaços de convivência, de socialização, e essas pessoas acabam tendo pertencimento com essas tradições e essas culturas. E a gente vê isso tudo parado, fechado, isso é angustiante, angustiante mesmo.

Brasil de Fato – Sabemos que alguns grupos de tradição popular e cultural dependem de editais para se manter financeiramente. Qual é a realidade desses grupos atualmente?

Os grupos estão indo atrás do que é possível para se manter. Nós, do Vozes da África, estamos até agora esperando uma posição da Secretaria de Cultura, do poder público e até agora nada ainda, mas também a pandemia nos deu lenha para hoje buscarmos as empresas privadas como SESC, que vem sendo parceiro desses grupos, não só dos maracatus, e tem apoiado financeiramente as manifestações culturais desses grupos através da realização de lives. Hoje, inclusive, nós estamos em parceria com o Shopping Rio Mar Kennedy, com a exposição “Maracatu Vozes da África, uma imersão no Maracatu cearense”, onde expomos várias comendas, troféus, fantasias e adereços, frutos de uma parceria financeira que o shopping nos deu para que a gente pudesse se manter, e além da exposição faremos duas apresentações culturais no espaço.

O Voz da África, diferente de alguns outros grupos que possuem suas próprias sedes, tem uma sede que é alugada, então temos todo custo fixo mensal de água, luz, internet, telefone e ficar sem esses recursos financeiros causa um impacto muito grande para manter esse espaço. É muito difícil a realidade desses grupos nesse momento, temos buscado outros meios já que ainda não houve aprovação da Lei Aldir Blanc 2, e temos conseguido vários recursos financeiros mantendo a sede aberta.

Brasil de Fato – De um modo geral, como esses grupos receberam a notícia de que não teríamos o Carnaval este ano?

Como eu falei foi muito angustiante, porque o ano passado a gente estava nessa esperança com a chegada da vacina, que voltaríamos ao novo normal e, mesmo embora não acontecesse de forma pensada, nós achávamos que com a vacina fosse acontecer alguma manifestação de rua ainda. Inclusive a gente tinha programado, diante de todo o decreto de que se não houvesse o carnaval oficial da Domingos Olímpio, nós iríamos produzir o nosso desfile dentro da nossa comunidade para acolher essas pessoas que estão com essa lacuna, esse vazio do carnaval, da manifestação do maracatu que a gente faz ali na José Bonifácio.

A gente ia fazer um cortejo pela rua e quando vimos o decreto, e que realmente não seria possível. porque o decreto diz que não pode acontecer nenhum tipo de manifestação, foi um balde de água fria. E com isso a gente está muito angustiado e triste.

Brasil de Fato – O Governo Federal, Estadual ou Municipal tem alguma ação para evitar os impactos causados pelo coronavírus e, consequentemente, pelo cancelamento do carnaval?

Não. A gente teve a Lei Aldir Blanc e agora está em tramitação a Lei Paulo Gustavo que pode trazer esse novo suporte para nós.

Além de ser carnavalesco, eu também sou pesquisador, artista plástico, produtor cultural e trabalho com captação de recurso para projetos culturais por meio de editais. A gente teve um impacto enorme, fomos os primeiros a parar e até agora ainda não voltamos propriamente dito e o impacto vai se tornando cada vez maior.

Até agora temos esperado por essas políticas públicas para cobrir a falta de recursos e que vem chegando de forma minguada. E por enquanto são só promessas do Governo Federal, que também é um governo que não está nem aí para a cultura, nem para coisa nenhuma.

E estamos nessa situação, dependendo de nossos deputados e senadores para aprovarem essas leis, que seria a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo para amenizar esses impactos.

Brasil de Fato – E qual a expectativa para este ano e para 2023?

Estamos na luta, correndo para nos mantermos, porque como eu falei, os recursos foram poucos e, praticamente, acabaram. Iniciamos essa corrida em busca do apoio das empresas privadas para manter a sede de pé e não somente a sede, afinal, a gente precisa manter todo o material de reparo e de restauro. Recentemente teve até um grupo de maracatu que perdeu em torno de oito mil a dez mil de plumas, porque elas são delicadas e precisam ter um certo cuidado de manutenção, e como não houve o cuidado no armazenamento e não houve uso também acabaram perdendo todo o material. Está cada vez mais complicado, mas vamos manter a esperança.

Brasil de Fato – E quais iniciativas esses grupos estão tomando para se manterem ativos?

Através de muita mobilização e cobrança do poder público, do governo do estado, das prefeituras, através de mobilização em grupos de whatsApp, se organizando para ver se eles conseguem alguma coisa. E também, o único meio agora é buscando as privadas, trabalhando junto com as empresas privadas, fazendo permuta, onde a gente apresenta algumas propostas, fazemos lives e elas estão nos ajudando de certa forma.

Brasil de Fato – Para esse ano existe alguma possibilidade de programação ou até mesmo apresentações online?

Desde o início da pandemia a gente passou um período distante de tudo, e depois começamos a fazer essas lives por conta própria, E através da Lei Aldir Blanc começamos a fazer várias lives, mais estruturadas, e a gente continua fazendo essas lives. Durante o carnaval vamos produzir algumas lives através do SESC para matar essa saudade.

Brasil de Fato – Você acredita que falta investimento na cultura? Principalmente nesse período de Carnaval?

Sim, falta. Eu estava até lendo um artigo que fala sobre o impacto de não haver o carnaval do Rio de Janeiro. Você sabe que o Carnaval do Rio é feito, em sua maioria, por pessoas negras e da periferia, que constroem aquele material, todo aquele arsenal, e a falta desse momento traz um impacto muito grande nessa parte da sociedade.

A mesma coisa acontece no nosso carnaval, que é feito pelo povão mesmo, pelo povo das comunidades que chega junto, porque o carnaval é muito democrático, todo mundo participa, criança, jovem, adulto, idoso, etc.

Não tenho muita esperança que teremos carnaval este ano. O que a gente escutou é que deve ser lançado um edital de manutenção desses grupos, e o que sabemos até agora de informações é que o edital deve abranger uma parcela muito pequena, com poucos recursos.

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Edição: Francisco Barbosa