Pernambuco

Coluna

O fenômeno da fome em um ano eleitoral

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MLB fome ato
Mais de 20 milhões de pessoas não realizam três refeições diárias no Brasil - Reprodução
Derrotar Bolsonaro como um primeiro passo para derrotar o bolsonarismo

Os dados sobre a situação de fome no Brasil hoje são alarmantes. Voltamos a integrar o Mapa da Fome. Mais de 20 milhões de pessoas não realizam três refeições diárias. O direito social básico à alimentação, que é também um imperativo biológico, pois está atrelado necessariamente a manterem-se vivas, não tem sido exercido por milhões de famílias brasileiras. Não existe política de Estado que repare esta situação, que trate com dignidade as necessidades humanas desta imensa população no atual cenário. Qualquer brasileiro que componha a classe trabalhadora reconhece tal tragédia social. É um diagnóstico sentido na pele e visto a olhos nus.

A coincidência de alarmante conjuntura em um ano pautado pelas eleições desperta atenção nestes primeiros meses do ano, por conta da referência de que “foi dada a largada” e que “já estamos em campanha eleitoral”. Sistematicamente, a política da fome tem sido aproveitada pelas classes dominantes, por meio de instituições conservadoras atreladas à caridade, ao trabalho voluntário (gratuito ou quase), ao primeiro-damismo e que trabalham em prol do engessamento dos sujeitos em uma condição passiva e de subalternidade. 

O assistencialismo com o objetivo de angariar votos para seus respectivos candidatos constitui espinha dorsal acerca da forma como as elites fazem política neste país, principalmente em estados do norte e nordeste, onde até hoje a fome assola mais intensamente. Longe de ser uma prática inédita na disputa pela institucionalidade no caso brasileiro, este ano temos o agravante de dois anos ininterruptos de pandemia, em que os dados oficiais, institutos de pesquisa e organizações populares constatam a amplitude da grave situação de miséria a que o povo brasileiro está acometido.

Em contextos de agravamento das condições de vida e avanço do neoliberalismo, é comum o retorno de iniciativas que propõem a troca de alimentos, um lugar para dormir, ou algum outro benefício em troca de trabalho não-pago ou com baixa remuneração. Trabalhar por um prato de comida é uma prática recorrente diante o processo histórico de colonização e formação brasileiras, por isso é preocupante que projetos políticos referenciados nestas práticas se elejam. Diante à crise humanitária que vivenciamos, explorar a miséria alheia em prol de benefício próprio não deveria aparecer como uma possibilidade. 

Se entre os anos de 2003 e 2016 vivenciamos a garantia de alguns direitos sociais que melhoraram profundamente a realidade do povo brasileiro, ainda assim o golpe institucional de 2016 comprovou a insuficiência de políticas assistenciais sem que necessariamente estejam articuladas a um processo de organização popular e formação de consciência de classe, sobre as engrenagens do racismo e  patriarcado, sobre a importância de povo organizado em luta por seus direitos, pela construção de um projeto de país e disputa pelo poder, sobre a necessária condição de que corpos e territórios estejam vivos e pulsantes, produzindo arte, cultura, empreendimentos, fazendo a roda girar e as coisas acontecerem a partir das potencialidades de cada lugar, suas lideranças, seus grupos históricos, sua história e memória.

Diante do cenário desvantajoso em que nos encontramos – a classe trabalhadora – considerando o avanço do neofascismo no mundo e também no Brasil, o racismo estrutural, o desemprego, a diminuição da renda, o autoritarismo e aumento da violência policial, a aguda situação social que vivem as famílias hoje é ao mesmo tempo necessário e insuficiente “vencer as eleições” com candidatos progressistas. O cerco político que estamos atravessando pelo menos desde 2016, o cerceamento democrático e a forma como o rebaixamento das condições de vida têm rebatido nas formas coletivas de organização e luta demonstram que se houver eleição, se os candidatos em que apostamos forem eleitos, ainda assim teremos grandes desafios na sequencia democrática dos fatos assim como na certeza de que os mandatos serão cumpridos até o final. Derrotar Bolsonaro como um primeiro passo para derrotar o bolsonarismo.

A política da fome tem sido moeda de troca nestas terras há longas datas. Falta comida. Se dá comida. Se tira comida. Compra de votos como tentativa de se comprar consciência. Ao longo das décadas esta barganha em torno da fome, ou melhor dos que convivem diariamente com ela. Um exército a ser “ajudado” e manipulado em prol dos interesses de quem estende a mão. E, em geral são mãos brancas que se regozijam ao aparecerem neste lugar da filantropia, aplaudidas por setores médios.

Marielle Franco, em um texto chamado “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada” elabora de forma irretocável a ideia da existência e necessidade das mulheres negras, moradoras das periferias e favelas, como ativas nos cenários políticos, culturais e artísticos. Assim, mesmo que de forma imediata estas personagens sociais estejam relacionadas as suas vidas nos territórios, no que se refere às condições objetivas e subjetivas, o seu avanço ganha amplitude em toda a cidade, em toda a sociedade. Repito as palavras da vereadora eleita com mais de 46 mil votos, em que ela afirmava que as ações da esquerda no contexto brasileiro devem necessariamente reverberar a potência e construção das narrativas que estimulem a emancipação das mulheres negras moradoras das favelas e periferias, como marcas de conquistas e pigmentações de ações transformadoras, inventivas e potencialmente revolucionárias.

Ou a gente tenta enxergar e combater as expressões do racismo, do patriarcado e da desigualdade social, inclusive, dentro das relações sociais no interior das próprias organizações da esquerda ou estaremos atrelados à uma lógica fracassada e repleta de contradições em seu interior, não apenas na batalha institucional mas em todas as trincheiras de resistência às atrocidades que estão sendo cometidas pelo Estado brasileiro. Importante identificar os adversários, os inimigos, nesta desfavorável correlação de forças. A gente pode até se confundir, mas quem mata a gente não se engana.

Um dos aspectos necessários a serem escancarados nesta relação entre a presença de organizações externas mesmo que parceiras, em territórios negros, estejam eles nas periferias ou no centro das cidades (ocupações, palafitas, mocambos) é a conservação ao longo da história de discursos, práticas e imagens que se sustentam a partir do controle social e tentativa de reduzir a totalidade das experiências negras a fenômenos tais como a violência, a fome, a dor, a morte. Este desafio secular deve ser enfrentado.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga