Paraíba

REPARAÇÃO HISTÓRICA

Moradores da cidade de Rio Tinto (PB) estão livres de pagar aluguel à família Lundgren

Aluguéis eram pagos desde 1910, o que caracterizava a cidade como sendo uma área privada dos Lundgren

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Ginásio do Sesi, na cidade de Rio Tinto, durante a assinatura do decreto de desapropriação 42.345. - Ascom MPF

Cerca de 700 famílias da cidade de Rio Tinto, litoral norte da Paraíba, puderam testemunhar a assinatura de desapropriação de suas futuras residências, ocorrida nesta última quinta (24). Desde 1910, as famílias da cidade pagavam aluguel para a família sueca Lundgren, que se instalou no lugar, fundou a fábrica de tecidos Rio Tinto e construiu milhares de casas para alugar aos funcionários da indústria têxtil. Por isso, desde essa época quase a totalidade das residências pertenciam aos Lundgren, que continuavam a receber os aluguéis. No entanto, o dia 24 de março de 2022 marcou a libertação dessas famílias e da cidade de Rio Tinto da dependência da família Lundgren, com a assinatura do  Decreto de Desapropriação n.º 42.345.

Niedja Maurício, 51 anos, é “inquilina” há 31. Antes dela, a família Maurício já pagava aluguel por mais 30 anos. A moradora destacou que o decreto é ‘a maior felicidade do mundo’ e crê que a data de 24 de março será feriado no município nos próximos anos. Acrescentou que seus pais e avós trabalharam na fábrica dos Lundgren e ‘eram humilhados’.

Já Severino Ramos, de 60 anos, reside no município com sua mãe, responsável pelo pagamento do aluguel à família Lundgren. Porém, há oito anos deixou de pagar aluguel, ‘aí, ela entrou nessa briga para ver se ganha agora’, em suas palavras.

Como aponta a socióloga Eva Alterman Blay (1985), a construção de vilas operárias pelo proprietários das fábricas, além de reter o operariado no local de trabalho e obter o domínio sobre todo o cotidiano, a posse sobre as casas que a classe trabalhadora reside, e paga mensalmente, gera outra forma de ganho sobre o salário, porque a casa se configura também como mercadoria.


Ginásio poliesportivo do Sesi, em Rio Tinto, durante desapropriação. / Ascom MPF

A desapropriação, no valor de R$ 23,5 milhões, foi feita pelo governo estadual e é resultado de longa negociação intermediada pelo Ministério Público Federal (MPF), desde 2014. Na época, o então procurador regional dos Direitos do Cidadão, José Godoy Bezerra de Souza, foi informado pela presidente da Companhia Estadual de Habitação Popular (Cehap), Emilia Correa Lima, que as moradias no município pertenciam quase que exclusivamente a uma pessoa jurídica, os Lundgren, por conseguinte, violando direitos humanos, como o direito à moradia. 

O decreto prevê os critérios para as famílias que serão beneficiadas com o decreto 42.345: residir há, pelo menos, cinco anos em Rio Tinto; não possuir imóvel próprio e se encontrar em moradia de aluguel na data do decreto; receber até três salários-mínimos de renda e, por fim, estar assentada em áreas exclusivamente residenciais.

O evento de assinatura do decreto de desapropriação dos imóveis em favor das 700 famílias residentes em Rio Tinto contou com a participação do governador do Estado, João Azevêdo (PSB), a presidente da Cehap, Emilia Lima, Magna Gerbasi (PP), prefeita de Rio Tinto; Adriano Galdino (PSB), presidente da Assembleia Legislativa da Paraíba, deputados estaduais e vereadores do município. Durante o evento, o governador João Azevedo falou sobre a importância de honrar o povo e compromisso assumido e finalmente a cada família dizer que, “ retornariam para suas casas, para o abrigo, para a proteção, para o espaço onde se retorna para os seus, para a própria família”. 

A presidente do Cehap, Emilia Lima, relatou as dificuldades na resolução do conflito, como a morosidade da liberação de recursos federais para a desapropriação das moradias. Disse que, apesar de a Cehap ter realizado levantamentos em quase toda a cidade, os recursos por parte governo federal nunca eram destinados, sendo-lhe negados, inviabilizando a desapropriação. Ela relatou que ficou surpresa e quase chorou de emoção quando ouviu do governador que o tesouro do estado arcaria com a desapropriação de todas as casas. A presidente da Cehap encerrou a fala solicitando que as escrituras de posse dos imóveis fossem lavradas no nome das mulheres moradoras de cada residência.

“Foi um privilégio ter contribuído na luta do povo de Rio Tinto. A data de 24 de março é um marco histórico para o município”, afirmou o procurador da República José Godoy, que foi o responsável por acompanhar a representação protocolada no Ministério Público, salientando o protagonismo do povo potiguara, envolvido na luta pela propriedade dos imóveis residenciais. 

Na ocasião, também foi assinado o Termo de Obrigação e Compromisso, celebrado entre o Estado da Paraíba, por meio da Cehap, Ministério Público Federal e a Companhia de Tecidos Rio Tinto, para a regularização dos demais imóveis que se adequem aos limites estabelecidos na portaria da Cehap e no decreto do governo do estado, entre eles o bairro de Salema, que se fez bastante presente no evento. Dessa forma, cerca de 100% dos imóveis em situação análoga àquelas 700 famílias beneficiadas, inicialmente, poderão receber também a escritura de posse.

Um pouco sobre a história dos Lundgren

O primeiro membro da família Lundgren chega ao Brasil em 1855, o sueco Herman Theodor Lundgren. Inicia seus primeiros experimentos comerciais, saindo do comércio de exportação, passando pela fabricação de pólvora, até chegar ao ramo das indústrias têxteis. Uma vez que iniciam os investimentos na indústria têxtil, depois da compra da Fábrica Paulista, os Lundgren no intuito de ampliar para outro estado a sua companhia, chegam até a Paraíba e iniciam a instalação do complexo - onde criaram uma cidade - desde a preparação do solo até a edificação dos prédios.

Em 1907, a Companhia de Tecidos Paulista (Pernambuco), dedicada apenas a sacos, abasteciam o mercado do açúcar, tendo o estado como maior produtor da época, a iniciativa passou a produzir os que viriam a ser carros-chefe do negócio: chita e brim, inclusive com a primeira estamparia da região. Três anos depois, Herman morreu e o filho Frederico assumiu o negócio, que chegou a produzir oito milhões de metros de tecido por mês, segundo Nilson: “A companhia Paulista tornou-se a maior fábrica têxtil da América Latina”.

Em 1918, uma nova fábrica de tecidos foi montada pela família, desta vez na Paraíba. A Companhia de Tecidos Rio Tinto, a 450 km de João Pessoa, não se dedicava à estamparia, mas à produção de brim e tricoline. O sucesso obrigou a família a investir também no ramo de vendas do próprio tecido, o que fez nascer as Casas Pernambucanas, com mais de mil lojas em todo o país.

Uma curiosidade sobre os Lundgren gira em torno da suposta simpatia com o regime nazista. O Palacete dos Lundgren, em Rio Tinto (Paraíba), construído por Frederico Lundgren, com 3 andares, decorado com um rico mobiliário, tapetes italianos, lustres e azulejos, seguindo o estilo arquitetônico de Manchester (Inglaterra) e Berlim (Alemanha), segundo relatos, além de moradia, funcionava como uma espécie de tribunal para que os altos funcionários julgassem os operários e moradores que não obedeciam à ordem estabelecida pela família Lundgren. Quando a Segunda Guerra Mundial começou, inúmeros alemães fugindo da guerra se estabeleceram na cidade para trabalhar na fábrica, desagradando os trabalhadores e moradores locais.

Nessa época, surgiram muitos boatos sobre o Palacete. A população suspeitava que o palacete poderia servir para abrigar Adolf Hitler. Em 18 de agosto de 1945, os moradores recebiam a notícia do final da guerra e a derrota dos nazistas. Revoltados, eles invadiram o palacete e saquearam, quebrando tudo e exigindo que os estrangeiros fossem deportados. Hoje, a área pertence a aldeia Monte Mor, dos indígenas de etnia potiguara.

Fontes: MPF, Paraíba Criativa e artigo de Letícia de Carvalho Santos.

Edição: Heloisa de Sousa