Pernambuco

Coluna

O espetáculo dos bons legitima a vulnerabilidade dos ruins

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Ouça o áudio:

O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência perdeu o direito de ter seus representantes com deficiência legitimamente eleitos - Alan Santos/PR
O 'merecimento' decorre do sentimento de pena diante da sua condição construída no imaginário social

[Audiodescrição: Em fotografia o presidente Bolsonaro aparece centralizado, em pé, abraçado com dois jovens com deficiência intelectual negros, à esquerda e direita, segurando o microfone em direção a um deles, os quais também estão em pé e vestem a camisa da seleção brasileira. Ao fundo, sentada à frente de uma parede azul está a  Ministra Damares observando sentada. Fim da descrição.]

Há muito tempo me incomoda a veiculação de qualquer tipo de notícia ou texto sobre pessoas com deficiência com uma entonação de caridade e assistencialismo. Tal incômodo tem se intensificado diante da atuação do atual governo, o qual não apenas pratica como reforça esse tipo de construção.

Simplificando, as coisas acontecem da seguinte maneira: a caridade contribui para com necessidades imediatas, como a fome, mas não evidencia o motivo pelo qual uns comem em fartura e outros não, em tempo que sua prática, ao enaltecer a vaidade dos que a exercem, “os bons”, torna legítima sua superioridade em relação aos “ruins” e “insuficientes” reafirmando quem tem valor e quem não.

Nesses termos, essa relação desigual é constantemente enaltecida e aceita, quase que consensualmente, tanto da parte de quem está no topo, quanto de quem segura essa pirâmide com o próprio punho. 

Vale ressaltar que não estou trazendo aqui os que de maneira solidária caminham lado a lado na luta do povo, o qual mais do que nunca experimenta a fome e a necessidade imediata por dignidade. Pessoas como Padre Júlio Lancelloti, ou o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, por exemplo, alimentam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade e encabeçam lutas amplas por justiça social.

Falo dos que seguem como “o bom rico”, os quais dispõem dos seus privilégios para os que necessitam – sendo reverenciados -, mas garantem que essa condição desigual não seja questionada, já que normalmente as pessoas que necessitam estão ocupadas sendo exploradas, construindo os privilégios de quem lhes doa, ou sendo usurpadas do direito de existir. 

Assim, se houvesse a revelação do princípio violento oculto por detrás da caridade, ela não seria tão eficaz. Talvez a sua imagem fosse transferida da ótica dos filmes dramáticos de superação, para um filme de terror, no qual a assombração é a própria desigualdade.

Neste caso, a ideia de tornar as pessoas com deficiência ícones desse protagonismo encabeçados pelos que “precisam” casa muito bem com a proposta meritocrática de levar a reflexão do quanto somos sortudos e privilegiados pelo que temos, em tempos que nos motivamos para ser alguém “melhor”, sem ter do que reclamar. 

A sociedade naturaliza essa ideia nefasta de que quanto mais essas pessoas fizerem ou sofrerem mais merecedores elas serão. No caso das pessoas com deficiência o “merecimento” decorre do sentimento de pena diante da sua condição construída no imaginário social de sub-humanidade, a qual impulsiona “os bons” a tornarem-se “melhores”.

Exemplo disso são algumas ações dos “bons sujeitos” do Governo Federal que discursam sobre sua caridade ao povo com deficiência e organizam o cenário macabro do filme de terror:  

Recentemente o CONADE – Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, perdeu o direito de ter seus representantes com deficiência legitimamente eleitos para que a Ministra Damares os engolisse em seu Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, o qual passará a representá-los, garantindo a suposição de que essas pessoas precisam de uma entidade superprotetora, retirando-lhes assim a dignidade duramente conquistada de decidirem por si sobre suas vidas. 

Mais uma ação caritativa de opressão se materializa na “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, que ao instituir o retorno das Instituições Especializadas, faz da proposta de uma Educação Inclusiva a personificação de um conto de fadas ou uma peça de ficção. 

Sendo mais explícitos ainda em seus propósitos, temos a Pátria Caridosa, projeto do governo que poderia ser representado pela imagem icônica do herói de guerra, o qual em nome da honra não deixa ninguém para trás, mas que na verdade é o responsável pelo próprio conflito que funda o ódio da batalha. Uma “pátria” que em nome da caridade doa seu dinheiro para o “vulnerável”, no intuito de garantir que “o rico fique cada vez mais rico” e aquele esteja lá para sustentar a sua altivez.  

Desta feita, o espetáculo se faz ornamentando por uma ideia enjaulada de superação, a qual é abraçada pela sociedade legitimando um verdadeiro show de horrores representado em gêneros diversos e transmitido em todos os meios, transformando os sobreviventes da perversidade do sistema a sua própria imagem, a qual é vendida aos consumidores de tragédia, enquanto esses batem palmas e louvam os que lucram diante da morte. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga