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Em Pernambuco, Consea teme que políticos se aproveitem da fome para comprar votos

Antes da pandemia 52% dos pernambucanos já estavam em algum nível de insegurança alimentar, mas situação piorou

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Também no interior do estado é crescente o número de famílias que precisam de doações de governos e organizações populares - Divulgação/Unit

Restando apenas seis meses para as eleições, o cenário de vulnerabilidade social em Pernambuco segue grave, em níveis equiparáveis aos do início dos anos 2000. O Governo do Estado, em parceria com as prefeituras, tem tentado ainda estruturar alguns programas visando atenuar o quadro. Mas o Consea alerta que o cenário real está pior que o das últimas pesquisas. O conselho pondera que as ações governamentais de enfrentamento à fome ainda são tímidas e alerta para o risco de vermos cestas básicas virarem moeda de troca eleitoral.

Em 2018, dois anos antes da pandemia, 52% da população de Pernambuco já enfrentava algum nível de insegurança alimentar, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. O levantamento aponta que 7% (661 mil) dos residentes no estado já viviam em situação de fome grave, enquanto 14,2% (1,3 milhão) dos pernambucanos enfrentavam fome moderada e 30,8% insegurança alimentar leve. O número corresponde a 48,3% das residências (ou 1 milhão 455 mil residências).

A insegurança alimentar leve é a incerteza sobre se, num futuro próximo, a família terá uma alimentação em quantidade e qualidade necessárias. A insegurança alimentar ou fome moderada é quando a família já mudou o padrão de qualidade da alimentação (ao trocar carne por salsicha, por exemplo). Já a fome grave é quando a situação já está afetando também a quantidade de alimentos consumida pela família.

O resultado de Pernambuco na POF/IBGE é o pior desde 2004, quando 57% da população vivia em algum grau de insegurança alimentar. Então em 2018 a situação de vida da população já havia regredido a níveis similares aos do início dos anos 2000. Em comparação com o levantamento de 2013 (26% das residências em algum grau de insegurança), o de 2018 (48,3% dos lares) mostra que num intervalo de 5 anos praticamente dobrou o número de lares sob tal condição.

Desde a pesquisa (2018), a situação econômica e social no país piorou em 2019 e, principalmente, durante a pandemia de covid-19 (2020-2022). Em entrevista ao Brasil de Fato, o presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar (Consea-PE), Reginaldo Xavier, diz acreditar que a realidade já está bem pior que o quadro apontado pelo levantamento. “Tenho andado pelo estado desde 2016 e é crescente a quantidade de pessoas com fome, pedindo dinheiro e comida nas estradas e nos terminais rodoviários, esperando sobras nas portas de restaurantes”, lamentou.

Xavier aponta alguns “sintomas” que se tornaram mais recorrentes. “Alguns gestores nos relatam que seus programas de distribuição de sopa, voltados para populações em situação de rua, têm tido demanda crescente. A crise e o desemprego colocaram muita gente para morar nas ruas, dependendo da assistência dos governos e de organizações de caridade ou sindicatos”, conta o presidente do Consea-PE.

Outro sintoma é o aumento no número de assaltos, também na zona rural. “São pequenos assaltos, que visam garantir alimentação. No interior a situação está tão crítica quanto no Recife. É muito duro”, diz Reginaldo. “Estamos preocupados que políticos se aproveitem dessa situação para conseguir votos em troca de alimento”, alerta ele.


Área interna de uma das cozinhas comunitárias já em funcionamento em Pernambuco / Consea/divulgação

O Brasil de Fato questionou a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ) sobre as políticas de combate à fome desenvolvidas no âmbito do Governo do Estado. A secretaria é encabeçada por Sileno Guedes, que é também presidente estadual do PSB em Pernambuco.

A nota enviada à reportagem menciona apenas três programas: o “Horta em Todo Canto”, iniciativa focada no estímulo ao cultivo e consumo de alimentos orgânicos, atualmente com hortas em 200 instituições da administração estadual; o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PEAAF), que compra os alimentos da produção familiar e distribui para a rede de assistência social, mas não forneceu dados concretos sobre valores investidos ou toneladas de alimentos adquiridos; e o programa “Tá na Mesa”, criado em 2021 e hoje carro-chefe do Governo de Pernambuco no enfrentamento à fome.

A SDSCJ afirma que de políticas voltadas ao combate à fome têm base agroecológica e respeitam a cultura alimentar da região. O desenvolvimento destas se dá por meio da Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN-PE). “A Política de Segurança Alimentar e Nutricional (...) tem como prioridade as pessoas em situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar e nutricional, a exemplo daquelas em situação de rua, povos e comunidades tradicionais, entre outros segmentos”, diz a nota enviada ao BdF.

Cozinhas comunitárias

Criado em 2021, o “Tá na Mesa” é o principal programa no enfrentamento à fome, através da abertura e reestruturação de cozinhas comunitárias. A gestão estadual destina recursos para as prefeituras criarem, reestruturarem ou ampliarem cozinhas para produzirem refeições gratuitas para a população em situação de insegurança alimentar.

Segundo a SDSCJ, cada unidade deve oferecer em torno de 200 refeições gratuitas diariamente para a população em insegurança alimentar em cada município. “Além das refeições doadas, parte delas pode ser comercializada a preços populares, onde o recurso arrecadado será utilizado para manutenção da cozinha comunitária”, informa a nota enviada ao BdF.

As cozinhas “são consideradas equipamentos públicos de educação e segurança alimentar e nutricional” e a gestão e execução do serviço ficam sob responsabilidade das prefeituras, cabendo ao estado apenas o aporte financeiro.

A ideia inicial é que essas cozinhas também sejam escolas profissionalizantes e que, além dos pratos gratuitos, possam fornecer refeições a baixo custo, de modo que a arrecadação sirva para manter o próprio equipamento. Mas Reginaldo Xavier, do Consea, tem visitado muitas das cozinhas e avalia que em alguns municípios esse projeto não vai se concretizar, mantendo-se apenas como cozinha comunitária que distribui refeições gratuitas.


Cozinha em funcionamento no município de Serra Talhada, sertão pernambucano / Consea-PE/divulgação


Cozinha comunitária no município de Ingazeira / Consea-PE/divulgação

A expectativa do Governo do Estado é chegar ao fim de 2022 com 97 cozinhas comunitárias em funcionamento, servindo em torno de 19 mil refeições gratuitas diariamente no estado. Mas as cozinhas não têm todas o mesmo nível. Algumas fornecem refeições duas vezes ao dia, outras só uma vez e há ainda as que só conseguem fornecer sopa.

As que já estão em funcionamento recebem parcelas de R$6 mil durante 12 meses, para que possam aumentar sua capacidade de produção de refeições. Outras cozinhas estão fechadas e precisam de reformas para retomar as atividades com ampliação da produção e, por isso, recebem R$ 12 mil por 12 meses. Esses recursos são de custeio, uma “ajuda” para as prefeituras manterem os equipamentos funcionando. Atualmente Pernambuco tem 28 cozinhas comunitárias em 26 municípios, mas apenas metade está em funcionamento e a outra metade está fechada.

Há ainda a previsão de abertura de 69 novas cozinhas em 69 municípios diferentes. Estas receberão investimento de R$ 50 mil (parcela única), além das parcelas de custeio no valor de R$ 12 mil por 12 meses. O orçamento estadual de 2022 prevê um total de R$ 15 milhões 288 mil para o programa “Tá na Mesa”, sendo 22,5% (R$ 3,45 milhões) de investimento na criação de novos equipamentos e 77,5% (R$ 11,84 milhões) em custeio.

Muitos desses equipamentos recebiam aportes do Governo Federal através do programa “Restaurante Popular”, do extinto Ministério da Cidadania. “Mas o novo governo federal cortou todo o recurso e o programa foi extinto, por isso [os equipamentos] fecharam. Estão retomando agora com investimento estadual e municipal”, explica Reginaldo Xavier. Ele alerta que dificilmente municípios de pequeno porte terão recursos para manter essas cozinhas. “O governo estadual precisa pensar como vai conseguir dar sustentabilidade ao programa”, alerta.

“Cestas básicas até quando?”

O presidente do Consea-PE avalia que “se funcionar a contento, dará uma aliviada nesse quadro de insegurança alimentar grave”. E mesmo considerando o projeto interessante, pontua que é um paliativo aquém da demanda. “O impacto ainda é pequeno diante da necessidade. Não dá para focar só no equipamento cozinha e achar que isso é suficiente”, pondera Reginaldo. “Além de ampliar esse número de cozinhas, temos que pensar em políticas mais estruturantes, que possibilitem as pessoas se sustentarem”, completa ele.

Xavier considera que é preciso mudar a estratégia. “Ou fazemos algo diferente, ou vai sempre ter um grande número de pessoas nessa situação”, avalia. “Até porque nem sabemos quando essa situação de insegurança alimentar generalizada vai acabar. Vai ficar dando cesta básica até quando?”, provoca ele.

O presidente do Consea-PE não vê a questão como responsabilidade apenas da área de assistência social. “A política de segurança alimentar é intersetorial, porque não dá para olhar apenas pela assistência, nem só pela educação ou agricultura. Tem que dialoga com isso tudo, com saúde e finanças. De outro modo você não garante segurança alimentar”, explica. “Precisa de emprego, criar fontes de renda, estimular a agricultura e a economia solidária”, resume.


Em todo o país o Movimento dos Sem Terra (MST) realizou doações de alimentos / Wellington Lenon

Ele também espera ver uma maior criatividade por parte do poder público, com outras iniciativas. “Em Pernambuco só um município, Surubim, tem um banco público de alimentos, que é uma coisa simples. Já restaurantes populares só tem no Recife e em Petrolina”, diz ele.

Reginaldo Xavier completa que essas ações precisam dialogar entre si, dando como exemplo o município de Maracanaú, estado do Ceará. “Eles têm cozinha, restaurante popular, banco de alimentos, feira orgânica, programa de alimentação escolar e conseguem fazer com esses equipamentos públicos se articulem entre si, de modo que ampliam o público atendido e potencializam a agricultura familiar”, diz o conselheiro.

“Se o banco de alimentos recebe determinados itens, não vai só para as famílias, mas para suprir a cozinha da escola e o restaurante popular. As sobras da feira orgânica vão para o banco popular de alimentos”, detalha ele, que também diz ter visto iniciativas interessantes nos estados do Maranhão e Rio Grande do Norte.

Sem informações

Como conselheiro da sociedade civil, com papel de fiscalizar a atuação do Governo do Estado nas políticas de segurança alimentar e nutricional, Reginaldo Xavier reclama que o Consea tem tudo “enorme dificuldade” para obter informações junto ao estado. “Parece ser uma prática do governo. Precisamos enviar vários ofícios à SDSCJ e ainda não tivemos retorno”, afirma. Na última terça-feira (29) houve uma reunião de diversos conselhos de direitos com o Ministério Público (MPPE), justamente tratando da dificuldade destes em exercer controle social num cenário de informações escassas.

Outros dados

De acordo com outra pesquisa, o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), publicado em 2021 mas realizado em 2019, no Nordeste já eram 59,7% da população vivendo em algum grau de insegurança alimentar, sendo a segunda pior média entre as regiões do país.

O Norte teve o pior índice: 61,4%. As duas estão mais de 20 pontos percentuais piores que as demais. No Sudeste 39,3% da população vive sob algum grau de insegurança alimentar; no Centro-oeste 38,9%; e no Sul 36,8%.

Este levantamento sinaliza que 47,1% das famílias brasileiras viviam, já em 2019, antes da pandemia, em algum grau de insegurança alimentar. Observando recortes étnicos, esta condição atingia 58,3% das famílias pretas, 51,2% das famílias pardas e 40% das famílias brancas.

Edição: Vanessa Gonzaga