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Coluna

Autismo: não existe cura para o que não é doença

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O mês de abril é marcado como o de conscientização do autismo, com dia D no 2 de abril - Marcelo Camargo/Agencia Brasil
O percentual de pessoas autistas na população brasileira poderia ser de até 4 milhões

[Audiodescrição: Em fotografia colorida aparece um grupo de pessoas, na rua, soltando balões azuis e segurando uma faixa de fundo branco com a escrita em letras vermelhas e azuis: 2 de abril. Dia mundial da conscientização pelo autismo . Ao longe um céu azul com nuvens brancas. Fim da descrição]

O mês de abril é marcado como o de conscientização do autismo, por isso, é comum que o azul e as fitas de quebra-cabeças tomem conta dos encartes que começam a ocupar a mídia. Apesar de reconhecerem a importância da data, muitas pessoas com autismo, com razão, têm manifestado preocupações para com essas veiculações.  

Afirmo isso porque, ao acessar as diversas programações que se espalham na data, chamou-me atenção o fato de que as pautas de conscientização sobre o tema, majoritariamente, estão sendo propostas por profissionais clínicos, tais como: Médicos, Psicólogos, Terapeutas Ocupacionais, Assistência Social, além de mães/cuidadoras, pessoas com outras deficiências, etc, sem que os sujeitos que vivenciam, de fato, o espectro estejam na programação. 

Pensando nessa realidade, para abordar a temática convidei Alice Melo, a qual dividiu comigo o espaço na escrita dessa coluna. Ela que é conhecida nas redes como Tartaruga Albina, começou o seu trabalho digital falando sobre filmes, cinema, veganismo e afins, todavia, aos 22 anos recebeu o seu diagnóstico como autista e sentiu a necessidade de falar abertamente também sobre essa realidade. 

Alice inicia a nossa conversa chamando atenção para o fato de que a luta e visibilidade acerca da temática não devem reduzir-se apenas a um mês em específico, evidenciando o fato de que: “essa luta é principalmente nossa, não apenas de nossos responsáveis. Ainda precisamos dizer que somos “pessoas”, não somos heróis ou anjos e, acima de tudo, precisamos enfatizar que o autismo não é um vilão, não é maléfico, estamos tratando de uma condição, na qual muitas de nossas comorbidades e mal-estar provêm das interações com a falta de acessibilidade. Precisamos calar aqueles que pensam que nós estamos sempre em silêncio e, ainda que nosso manifesto não seja oral, não estamos calados, porque nos comunicamos de diversas formas”. 

Outrossim, constantemente as pessoas com autismo estão sendo questionadas quanto às suas capacidades, ou sobre as dificuldades aparentes ou não. São comuns os paradoxos sobre ser autista, pois enquanto uns preservam uma boa comunicação oral, entretanto, possuem dificuldades em atividades simples e diárias, ocasionando em questões constantes sobre possuir ou não o espectro, outros, seguem sendo indagados quanto a sua capacidade de existir, já que a ausência de comunicação oral acarreta na interpretação capacitista de que estes são incapazes, desumanizando-os.  

Sobre isso, Alice disserta sua realidade: “sempre tive dificuldades com horários e turnos, fossem de estudo (faculdade e escola) ou trabalho (estágios). Como todos envolvem muita interação social e eu fico muito incomodada com barulhos, por exemplo, carecia de acolhimento [...] possuo suspeita de Síndrome de Ehlers Danlos, uma síndrome comum em autistas, que afeta o sistema conectivo e colágeno no corpo, levando à hipermobilidade e outras coisas, incluindo dor crônica. Sinto dor quase todos os dias e quando tenho crises devido ao meu emocional ou a muitos estímulos sensoriais elas podem piorar, então, a barreira social sempre se agrava. É difícil para mim pedir um pão na padaria, porém não sinto dificuldade em estudar códigos ou aprender a editar vídeos, por exemplo. Não escolho no que meu cérebro vai dedicar tanta energia. E então vem o preconceito, já que muitas pessoas podem não acreditar e acharem ser tudo "invenção ou corpo mole", já que não sou a "autista clássica", aquelas dos filmes cheios de estereótipos”. 

Além desses pontos, observamos que a interseccionalidade também é ofuscada pelo laudo, o qual na maioria das vezes é veiculado como uma espécie de taxação comportamental, ocasionando o apagamento de identidades. Ocorre uma orientação em torno da falácia de que essas pessoas precisam sair do “seu suposto mundo”, mas a verdade é que se existe um mundo em que pessoas com autismo vivem, com toda certeza, é o mesmo das que não possuem o espectro, portanto, capacistista e altamente preparado para oprimir qualquer pessoa com deficiência. 

Isso fica muito claro quando lançam uma campanha na cor azul na tentativa de direcionar o espectro ao sexo masculino, deixando de levar em consideração as particularidades das mulheres com autismo, bem como da população LGBTQIA+ ignorando, portanto, a vastidão e multiplicidades das pessoas com autismo; novamente Alice explica: “em mulheres e pessoas que se identificam no espectro feminino o diagnóstico pode demorar justamente porque conseguimos "esconder" as estereotipias: movimentos repetitivos, modo peculiar de falar, fingimos não ter interesses restritos. Isso tudo é corroborado pela lógica machista generalizada de que devemos ser "recatadas". E aí se cria todo um lapso na hora que a grande mídia fala de autistas, os quais são sempre figuras masculinas, geralmente com interesse em áreas matemáticas e lógicas e brancos. Não vejo o debate interseccional na comunidade, especialmente na comunidade de pais e mães, os quais inclusive já são ensinados desde cedo, a partir do diagnóstico a nos tratar como alienígenas e robôs que precisam de programação. Qualquer frustração normal de uma criança por exemplo, já se torna motivo de medicação para autistas. Querem nos dizer o tempo todo para diminuirmos nossa subjetividade, mas quando mascaramos demais, nos acusam de fingimento ou não se importam”. 

Precisamos ainda falar sobre a falsa suposição do aumento de número de diagnósticos, como se houvesse uma motivação externa para que as pessoas passem a adquirir autismo. Autismo não é uma condição adquirida. A ampliação do número de diagnósticos diz respeito ao aumento da conscientização, visto que pessoas que vivenciam essa condição são múltiplas e sempre estiveram em todos os lugares. 

Esse tipo de suposição, a qual relaciona o autismo aos fatores externos, só aumenta a culpabilização dos pais, especialmente das mães, alimentando assim uma busca desesperada por cura a partir dessa falsa projeção. No entanto, não existe cura para o que não é uma doença. 

Como disse Alice ecoando a voz desses sujeitos “estamos em todos os lugares. Existem autistas médicos, psicólogos, artistas, especialistas em tecnologias, mas não somos vistos ainda assim. O diagnóstico é tido como tragédia na infância, depois é esquecido quando chegamos na adolescência ou idade adulta. Pesquisas acusam que o percentual de pessoas autistas na população brasileira poderia ser de até 4 milhões. Isso significa que está mais que na hora de tirarmos os estigmas, lutarmos por diagnóstico gratuito no SUS, sem capacitismo ou burocracias e ver nosso grupo como parte da sociedade”.


Por isso, é primordial reforçamos a escuta sobre o que estão dizendo as pessoas com autismo. É assimétrico e realça as relações de poder acharmos que temos mais a dizer em relação aos que vivenciam a neurodiversidade diariamente. O que precisa ser superado é, de fato, a estigmatização da cor azul, as histórias sensacionalistas, a ideia de tragédia humana e tristeza, bem como conclusões não científicas e rasas acerca da temática. Ser uma pessoa com autismo não é um erro a ser corrigido, na verdade o autismo é parte essencial e constituinte das pessoas que vivem essa condição, ao contrário do capacitismo, este sim, um erro histórico e que mata diariamente. Agradeço à Alice Melo pela disponibilidade e conversa generosa.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

 

Edição: Vanessa Gonzaga