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Coluna

O deboche de Mourão e a Lei da Anistia

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Os movimentos populares, em defesa da reparação das vítimas e a verdadeira justiça de transição para o regime democrático, permanecem lutando pela responsabilização dos agentes do Estado - Levante Popular da Juventude
A investigação dos fatos e a responsabilização dos culpados é fundamental

A ditatura civil-militar imposta no Brasil entre o período de 1964 e 1985, com seu caráter arbitrário, resultou em violações sistemáticas aos direitos humanos e o emprego de violência contra grupos sociais e indivíduos que resistiam ao regime ditatorial ou, mesmo, que eram suspeitos de resistir.

Já no final da década de 70, especificamente em 1979, foi promulgada a Lei da Anistia, a qual tinha por intenção colaborar com a transição do regime da ditadura para a redemocratização do país. À época os movimentos de defesa dos direitos humanos já posicionaram-se contra a concessão de anistia aos representantes do Estado no período militar e a favor da responsabilização criminal destes.

Seguindo os anseios desses setores, a Ordem dos Advogados do Brasil, pleiteou no Supremo Tribunal Federal a revisão da Lei da Anistia, com a finalidade de anular o perdão dado aos agentes acusados de praticar atos de tortura à época. Em 2010 a Suprema Corte negou o pedido de revisão da lei e manteve a aplicação da anistia aos crimes praticados pelos agentes militares.

Em 2011 foi instituída a Comissão Nacional da Verdade, responsável pela elaboração de um relatório1 no qual conclui-se ter havido prática de crimes contra a humanidade. O relatório recomendou 29 políticas e medidas públicas para prevenção de violação aos direitos humanos e promoção do aprofundamento do Estado democrático de direito no Brasil, dentre elas a responsabilização jurídica criminal dos agentes públicos que deram causa às violações.

Os movimentos populares, em defesa da reparação das vítimas e a verdadeira justiça de transição para o regime democrático, permanecem lutando pela responsabilização dos agentes do Estado. Algumas dessas ações foram sintetizadas no livro “Escracho aos Torturadores da Ditadura”, de Ana Paula Britto, que aborda as ações de escracho realizadas contra os torturadores da ditadura civil-militar brasileira os quais não tiveram que responder a nenhum processo penal ou civil sobre os seus atos do passado.

O caso recente dos áudios de tortura, que são objeto de deboche por parte do Vice Presidente da República, é um dos exemplos de que os torturadores da época da Ditadura Militar estão impunes e, pior, sem qualquer temor de algum tipo de responsabilização.

A responsabilização criminal dos representantes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade é fundamental para a própria compreensão da sociedade sobre a ordem excludente tal qual imposta. É de se dizer: o silêncio com que o Estado brasileiro, mesmo no período democrático, trata as violações aos direitos humanos perpetradas na época da ditadura, repercute sobremaneira no próprio Estado democrático de direito, eivado por práticas antigas de tortura e de corrupção.

A investigação dos fatos e a responsabilização dos culpados é fundamental para uma verdadeira transição democrática. A um porque os esforços da Comissão Nacional da Verdade não foram suficientes para promover uma mudança de pensamento na sociedade sobre o período da ditadura. A dois porque forjar o esquecimento da história é perpetuar as atrocidades, deixar o Estado nas sombras e favorecer a manutenção da ordem capitalista e do direito penal como instrumento de controle social. Outro ponto a ser ressaltado é que a sistematização e a responsabilização dos crimes contra a humanidade têm como intenção o refreamento da violência praticada pelo próprio Estado – um Estado que é produto do antagonismo inconciliável de classes e, por isso, pertencente ao poder dominante. 

A possibilidade de responsabilização dos agentes públicos por violações sistemáticas aos direitos humanos tem o papel não apenas de prevenção aos “delitos comuns”, mas também o de promover efetivamente uma transformação da cultura organizacional do próprio Estado. Tanto é assim que estudos científicos apontam a redução de índices de violência praticada por agentes públicos nos Estados de direito da América Latina onde se efetivou a responsabilização criminal dos tempos ditatoriais.

É hora de revogar a Lei da Anistia. Apenas com a responsabilização dos torturadores, podemos falar de um pacto democrático para o Brasil.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga