Entrevista

Educação domiciliar: urgência do governo tem caráter eleitoral, afirma especialista

Objetivos da gestão de Bolsonaro não estão relacionados a melhorias no ensino e à solução de problemas imediatos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Ensino domiciliar não resolve problemas da educação brasileiro - Rovena Rosa/Agência Brasil

A toque de caixa, a Câmara aprovou nesta semana o Projeto de Lei (PL) que libera o ensino domiciliar no Brasil. Único tema da área da educação listado pelo governo nas prioridades para o Congresso Nacional, o homeschooling – termo em inglês para a prática – é alvo de críticas de mais de 400 entidades.

Para as organizações, o PL pouco se relaciona com preocupações para solucionar problemas urgentes nas escolas. A correria para acelerar a aprovação atende a interesses eleitorais e agrada à base religiosa conservadora do governo.

“Essa urgência tem caráter eleitoral. Foi uma promessa de campanha do presidente e de seus apoiadores. A urgência em relação a esse projeto está relacionada a isso e não com alguma justificativa para melhora da educação pública”, afirma Marcele Frossard, assessora de programas e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato.

::Câmara aprova texto de PL que libera a educação domiciliar::

A Campanha é uma das entidades que assina um manifesto contrário à adoção da educação domiciliar no Brasil. O documento ressalta que a liberação da prática no Brasil “pode aprofundar ainda mais as imensas desigualdades sociais e educacionais, estimular à desescolarização por parte de movimentos ultraconservadores e multiplicar os casos de violência e desproteção aos quais estão submetidos milhões de crianças e adolescentes."

Marcela Frossard pontua que a “massiva contrariedade” dos movimentos de defesa da educação ao projeto já acende o sinal de alerta. “Nós não temos conhecimento de aspectos positivos, só conseguimos perceber o quanto isso produz desproteção e risco para crianças e adolescentes.”

Confira os principais trechos da entrevista com Marcele Frossard abaixo e ouça a conversa na íntegra no tocador de áudio abaixo do título deste texto.

Problemas mais urgentes

“Dentre as milhões de prioridades que encontramos na educação hoje, o governo decidiu que a sua grande prioridade é a discussão sobre a educação domiciliar. 

Tem alguns dados que são importantes mencionar. A lei orçamentária de 2022 foi aprovada com R$ 63 bilhões a menos do que deveria ser necessário na área da educação. Temos também uma redução desse financiamento da educação devido à lei do teto de gastos. O Plano Nacional de Educação, de 2014 até 2024, teve menos de 15% dos seus objetivos cumpridos até esse momento. 

São alguns dados que demonstram o quanto não é prioritário falar de educação domiciliar neste momento. 

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Outro aspecto muito relevante tem a ver com o impacto da pandemia. Uma pesquisa realizada logo no início da pandemia conta que mais ou menos 5,5 milhões de estudantes estão fora da escola, em situação de exclusão escolar. 

Não existe nenhuma grande política do estado coordenada pelo MEC que dê conta de todas essas defasagens. Pelo contrário, nós vimos que, durante a pandemia, não houve nenhum plano, nenhum programa federal de ajuda a estados e municípios para melhorar a infraestrutura dessas escolas e promover higiene, banheiros, água potável, sabão para lavar as mãos e esse tipo de coisa. 

Como garantir a formação?

Desde que começou a pandemia, o assunto voltou à tona. Foi um momento em que os apoiadores desse projeto da educação domiciliar começaram a ventilar a ideia.

Eles aproveitaram um momento de confusão entre o que é educação domiciliar e as crianças ficarem em casa por causa da pandemia, sendo ensinadas à distância. 

A educação domiciliar não é só a criança que está matriculada numa escola ficar em um ensino híbrido ou fazer o ensino à distância devido a uma circunstância excepcional, como foram os últimos dois anos. Educação domiciliar é quando os pais ou responsáveis decidem que essas crianças vão sair da escola, elas não vão a nenhuma instituição educacional e são ensinadas pelos pais.

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Se os pais vão ensinar em casa, mesmo que esses pais - como previsto no Projeto de Lei - tenham ensino superior ou tecnólogo isso não significa que eles têm domínio de conteúdos, metodologias e técnicas pedagógicas para abranger todos os anos escolares pelos quais essa criança tem que passar. 

Dificilmente você tem um professor, inclusive na escola, que seja qualificado para dar aula do ensino infantil ao ensino médio na sua área de atuação."

A escola como lugar de proteção

É um modelo de educação privada, é um ambiente privado e doméstico, inclusive. Isso vai trazer implicação na formação da identidade e das subjetividades de milhares de crianças. Não tem nenhuma análise de impacto sobre isso. 

Tem toda uma questão que dificulta o conhecimento do que acontece com essas famílias. Não existe nada nesse Projeto de Lei que fale sobre como vai ser o acompanhamento dessas famílias. 

Existe a ideia de uma escola base dessa relação e que a criança passe por avaliações frequentes, mas não tem nenhuma avaliação psicológica, psicossocial, nenhum acompanhamento com assistente social, psicólogos, conselheiros tutelares para dar conta da proteção dessas crianças e adolescente. 

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Por aí, temos dimensão do problema e da abertura que isso vai gerar para desproteção de crianças e adolescentes. O projeto é uma prioridade do governo e, ao mesmo tempo não foi refletida, conversada com a sociedade civil. 

Não teve um estudo, pesquisa, acompanhamento dessas famílias em longo prazo para saber como foi o desenvolvimento da criança.  Nós não temos conhecimento de aspectos positivos, só conseguimos perceber o quanto isso produz essa desproteção e risco para essas crianças e adolescentes."

Anulação de direitos

"Desde a Constituição e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente temos essa garantia dos direitos das crianças e adolescentes.

Falar de direito dos pais e de liberdade dos pais sobre a educação dos filhos é uma inversão na lógica de direitos, porque você retira da criança e do adolescente o direito que é dela, garantido por lei."

Posicionamento da sociedade é essencial

“O processo não terminou, vai ser apreciado também pelo Senado. É muito importante que professores, estudantes, responsáveis se mobilizem, cobrem dos senadores, conversem entre si, dialoguem e tentem entender.

É uma ameaça para a escola da maneira geral. Todo o investimento em formação dos professores está sendo desconsiderado. É como se a pedagogia, as técnicas, os conhecimentos específicos fossem facilmente substituíveis por listas de exercícios ou por metodologias que se aprende na internet, desconsiderando anos e anos de formação e de conhecimento que essas disciplinas têm para ensinar esses estudantes.

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É uma maneira muito reduzida de compreensão da educação e da participação democrática. A escola faz parte do que é sermos formado enquanto cidadão. Aprenderr a ser tolerante, qual é o nosso papel enquanto cidadãos, como conviver com diferenças, como conviver com pessoas que praticam hábitos, religiões diferentes para nós. 

Estar na escola é estar nesse turbilhão de pessoas pertencendo a vários lugares diferentes. A escola pública é esse lugar, não é a toa que ela é tão complexa. É um ambiento rico, plural diverso. 

De certa forma, a educação domiciliar é a negação desse espaço. É a tentativa de os iguais se manterem entre os iguais, evitando a diferença, evitando essa integração com a diferença e essa inclusão."
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho