Distrito Federal

Entrevista

"Linha Chinesa" é o novo trabalho de Markão Aborígine, o Velho Abô

Rapper fala sobre a trajetória musical, saúde mental, população periférica e Hip Hop

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"Precisamos de músicas que falem de festas, lazer, romance, balada, porém se fizermos sem consciência de classe a gente tende a pecar reproduzindo machismo e apologias", destaca Markão Aborígine - Foto: Letícia de Maceno

Velho Abô, que antes utilizava a alcunha de Markão Aborígine, está de volta ao rap nacional após pausa na carreira com o lançamento da música e do videoclipe Linha Chinesa.  A música propõe uma analogia sobre a conjuntura política em correlação com a cultura da rua.

"Quando ouvi a produção musical do Scooby Beats vi que encaixava perfeitamente com a ideia antiga de falar sobre pipas, linhas, corte. Foi automático. Observava a conjuntura política, a covid 19, bolsonarismo, as orações, as negações de direitos. Ao mesmo tempo olhava para o cenário rap e via cada vez mais músicas com pouco ou sem nenhum compromisso social. Não descarto a beleza das outras vertentes do rap, precisamos de músicas que falem de festas, lazer, romance, balada, porém se fizermos sem consciência de classe a gente tende a pecar reproduzindo machismo e apologias. Então quis em Linha Chinesa, fazer em cima de uma produção musical de trap, a analogia entre a conjuntura política e a cultura de rua/cultura Hip Hop", descreve o rapper.

Marcus Dantas, o Velho Abô, começou a cantar rap em meados da década de 90 no ensino fundamental. Foi por meio da educação pública, com o incentivo de uma professora que Marcus transformava redações e textos em poesia, consecutivamente em rap.

A trajetória musical perpassou por ganhos de festivais estudantis até alcançar shows. As primeiras experiências artísticas o levaram a pensar em uma alcunha. Como sempre esteve inserido em um contexto de rap com vertente politizada, estudos e leituras, o grupo em que ele participava na época começou a indagar o termo índio, que deriva do latim indian, e significa 'sem Deus, sem alma'.

Na época, o grupo queria contrapor o significado do termo e trazer a proposta musical de um rap com brasilidade e combativo, expressando raízes. Desta ideia surge o grupo Aborígine cujo significado é raiz, início, natural da terra. Marcus Dantas, já mais velho, se tornou Marcão do grupo Aborígine. E logo Markão Aborígine.

Agora nesta nova fase modificou a alcunha para Velho Abô.

"O Abô é um diminutivo de Aborígine, uma forma carinhosa que alguns amigos me chamavam. Eu gostei da sonoridade. Velho Abô surge num momento onde estava estudando, me apropriando e adentrando num rap moderno. Surge na música Revolução dos bichos, uma música que fiz ao lado do Amaro, Taliz e Realleza num beat de trap. Quis ressignificar a palavra "velha'', porque ainda é tida como algo negativo.  Chamamos de velho coisas ultrapassadas, sem valor. Eu via que por onde eu andava, o estilo de rap que faço tem sido considerado como ultrapassado, desacreditado, silenciado. Quis trazer esse vulgo 'Velho Abô' em um momento que estou escrevendo e cantando de forma mais moderna, com mais levada e diversidade. Tenho uma caminhada maior, mas ainda muita lenha para queimar", destaca.

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Hip Hop é memória

Marcus Dantas, como artista poderia ter escolhido outros ritmos ou outra expressão artística para exercer seu dom, porém escolheu o Hip Hop por causa da memória que a cultura proporciona.

"A memória, a construção histórica do Hip Hop é belíssima em quaisquer dos seus elementos originários ou de seus frutos como por exemplo, a leitura popular periférica ou a estética de rua. Quando olho para a música rap e percebo o samplear vejo reconstrução. Enxergo a origem da música na Jamaica que era uma colônia inglesa. Quando vislumbro que um adolescente levou a forma de se festejar da Jamaica para os EUA, e a partir desse adolescente tocando na garagem de sua casa, surgir a cultura hip hop, a memória passa a ser algo que me inspira e motiva. Mas também sabemos que o Hip Hop é identidade e autoestima para nós, periféricos e povo preto. Eu também poderia falar da consciência de classe que me trouxe, da beleza do grafite que contrasta com o cinza, do desafio ao próprio corpo, que é o breaking que está nas olimpíadas, ou da arte do DJ que dada a falta de acesso aos instrumentos musicais, risca um vinil para extrair sonoridade e fazer música. Mas a memória de luta,do sampler, a memória do espaço é o que mais me encanta. O Hip Hop é muito forte. Muito potente. Quem é Hip Hop mesmo, ama. Por isso eu falo de forma apaixonada, por isso o Hip Hop", reflete.

O Hip Hop é identidade e autoestima para nós, periféricos e povo preto

Pausa na carreira

Nos últimos cinco anos, o rapper enfrentou conflitos internos com sensações de abandono e tristeza. Fisicamente experienciou a falta de ar, palpitações no peito e medos. Todos esses sintomas indicavam problemas com a saúde mental.

Com isso, Velho Abô interrompeu a escrita, o acesso às redes sociais e o lançamento de novos trabalhos, mesmo estando em estúdio produzindo novidades. Linha Chinesa, por exemplo, foi gravada em 2020 e o videoclipe também foi gravado no mesmo período.

"A saúde mental me travou, me bloqueou. Eu não tinha forças sequer para lançar. Não conseguia força para bater no peito e dizer que sou artista. É algo que venho me reeducando para fazer. Eu perdi o ideal, o horizonte e a força de bater no peito, por isso me afastei nestes dois anos. Apesar de continuar gravando, estava afastado do eu artístico, da minha família e de mim. Em 2018, cheguei a lançar um disco chamado Atemporal - Álbum do fim, que carrega todo um conceito artístico no nome, mas que pretendia ser uma carta de despedida por causa dessa montanha russa de emoções que vivi durante esses cinco anos. Mas essa pausa não foi publicizada".

No período de 2009 a 2012, Velho Abô assumiu cargo público como Conselheiro Tutelar na região administrativa de Samambaia. Foi nesta época que iniciaram os primeiros sintomas que iriam resultar na crise de ansiedade, agora em tratamento, que o rapper viveu.

Muitos rappers dizem que o Hip Hop salvou suas vidas. Com Velho Abô, não é diferente.

"Continuar a exercer a arte gravando e produzindo mesmo sem lançar, foi libertação, fez parte do processo de cura, foi terapêutico. Buscar ajuda e me realinhar nesse contexto foi muito mais fácil. Porém eu sigo em tratamento com psicólogo. Está sendo um caminho de autoconhecimento. Sigo com fragilidades e cansaços, mas voltar a lançar músicas é uma sensação de recomeço. Me vejo dando os primeiros passos novamente na cultura Hip Hop. E o louco é isso, dar os primeiros passos como um velho, como o Velho Abô", relata.

Periferia e Saúde Mental

Em entrevista recente para o Brasil de Fato DF, o rapper GOG também relatou ter experienciado problemas com a saúde mental. "Quero deixar registrado que psicólogo, psiquiatra, terapia, não é coisa de playboy. Se o estado fosse sério com P, na periferia, não seria polícia. Seria psiquiatra, psicólogo, pedagogo. A periferia vive um estado psíquico de transtorno de ansiedade".

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Morador de Riacho Fundo II, região administrativa do Distrito Federal, Velho Abô conta que para pessoas periféricas, trabalhadores e trabalhadoras, é negado o direito a sentir, a sensibilidade.

“Quantos de nós fomos doentes para o trabalho com medo de sermos demitidos? Com medo de termos um corte no salário? Quantos de nós ouvimos dos nossos patrões: Você está com problema, mas você tem que trabalhar”, questiona.

Segundo ele, as emoções são negligenciadas, ao mesmo tempo em que inexiste uma política pública de saúde mental.

“Porém, tem outro aspecto para nós homens, que é o machismo. A cultura é que o homem não chora, que é provedor, e dá conta de tudo. O machismo adoece muito. O distanciamento dos cuidados da saúde mental perpassa por isso e também pela uberização do trabalho e pela contemporaneidade da exploração capitalista. Estamos adoecendo muito mais. Cada vez mais crianças e adolescentes em processos de crises, mulheres que historicamente sofreram e sofrem violências psicológicas", finaliza. 

Assista ao clipe de Linha Chinesa

 

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Edição: Flávia Quirino