Pernambuco

SEGURANÇA PÚBLICA

Apesar de protestos da sociedade civil, Recife licita tecnologia de reconhecimento facial

Tecnologia tem viés racista e transfóbico e representa ameaça a direitos e liberdades dos cidadãos, denunciam movimentos

Brasil de Fato | Recife (PE) |
O uso de câmeras com reconhecimento facial já foi abolido em várias cidades do mundo por sua falta de precisão e as consequências que acarreta - Divulgação/ Clear Channel

Ignorando os pleitos da sociedade civil apresentados em audiências públicas, a Prefeitura do Recife deu início à aquisição de 108 relógios digitais com câmeras de reconhecimento facial. O uso dessa tecnologia para fins de segurança pública - que é o que o município propõe - é vista por movimentos sociais e pesquisadores como uma ameaça aos direitos dos cidadãos. Mesmo com o andamento da licitação, os protestos continuam.

Desde que o projeto de Parceria Público Privada foi anunciado, em outubro do ano passado, as entidades vêm apontando o potencial da ferramenta de ser insegura quanto à proteção de dados e a sua natureza discriminatória contra populações vulneráveis. 

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Para se ter ideia do risco, os algoritmos de reconhecimento facial, que já possuem altas taxas de erro, têm uma acurácia ainda menor na hora de identificar pessoas negras e trans, podendo representar um aumento no número de prisões injustas e, sendo assim, ilegais. Afinal, são 'treinados' por empresas estrangeiras, a partir de uma amostragem maior de rostos brancos e cisgêneros.

As câmeras estão previstas para serem instaladas em todas as regiões da capital pernambucana, da zona norte à sul, da zona oeste à leste. Um monitoramento da Rede de Observatórios de Segurança, lançado em 2019, mostrou que 90,5% das 191 pessoas presas através da tecnologia de reconhecimento facial e identificáveis pela cor da pele eram negras. O estudo analisou números da Bahia, Ceará, Paraíba, Santa Catarina e Rio de Janeiro. 

As considerações foram apresentadas formalmente à gestão em uma carta aberta assinada por 27 organizações e em duas audiências públicas - a primeira realizada ainda em 2021 e a última, em março. Depois disso, levando em conta o que foi pontuado, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) instaurou dois procedimentos, um para investigar possível discriminação racial resultante da utilização da tecnologia na segurança pública e outro para acompanhar a instalação e manutenção das câmeras. 

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Mas não adiantou: o município desconsiderou os argumentos e não reviu esse ponto mais crítico do projeto. A prefeitura recebeu a proposta de quatro empresas concorrentes no último dia 20, e a ganhadora foi a Eletromídia, que ofereceu R$ 100 milhões pela concessão. O resultado foi publicado na edição desse sábado (2) do Diário Oficial do Recife, após passar a fase de verificação dos requisitos de qualificação da vencedora. As demais empesas ainda podem entrar com pedido de recurso no prazo de até cinco dias úteis, a contar desta segunda-feira (4). Se ninguém recorrer, a Eletromídia ficará encarregada de produzir, instalar, manter e operar os relógios eletrônicos, podendo explorar a tecnologia por nada menos que 20 anos.

O pregão é executado pela Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas do Recife (SEPE), dentro do plano de ação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Recife (Sdecti). 

Raquel Saraiva, presidenta e fundadora do IP.rec - uma das entidades que questionam o uso da ferramenta -, vê com “muita preocupação o movimento da prefeitura de não ter diálogo”. “Apesar de eles terem comparecido à audiência pública na Câmara, eles mandaram só um representante da área de licitações, que é responsável pelas parcerias PPP. Ou seja, nenhuma ligação com Ciência e Tecnologia e discussão de reconhecimento facial. Além disso, a prefeitura em nenhum momento se comprometeu a sequer pensar sobre o assunto”, afirma.


Os relógios seriam instalados em todas as regiões da capital pernambucana, da zona norte à sul, da zona oeste à leste / Reprodução/ PCR

A alegação da prefeitura de que as câmeras não seriam ativadas logo no primeiro momento não é tranquilizadora o suficiente na visão da advogada Patrícia Teonósio, da Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), mais uma organização neste movimento. “Isso por si só não garante nada, causa insegurança muito grande. A gente viu, em sistemas de segurança muito maiores, câmeras sendo hackeadas, invadidas, e a existência dessas câmeras pela cidade já gera uma mudança na postura das pessoas. É um constante estado de risco, que elas podem ser utilizadas para fins que a gente não sabe qual”, avalia.

Tal preocupação se torna mais inquietante quando se faz o recorte de raça. “A gente sabe que hoje a população negra é a primeira e a mais afetada diretamente pelo nosso sistema de justiça - se é que pode se chamar assim, porque, para os nossos, a mão do Estado chega para punir e não para garantir direito. Com essa tecnologia não é diferente. Ela tem uma base de dados de rostos brancos e é falha em reconhecer os nossos. A gente teme, e não é sem fundamentação, que [aumente] o número de erros, de pessoas presas e de abertura de inquéritos policiais a partir de reconhecimentos faciais equivocado”, expõe.

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A utilização da tecnologia não é contestada só na capital pernambucana. Outras cidades que aderiram a essa política encararam tantos problemas que precisaram abolir ou pelo menos rever sua aplicação. São inúmeros casos no mundo inteiro em que as câmeras acusaram “falso positivo”; isto é, falharam ao identificar corretamente um rosto e designá-lo ao indivíduo certo. O resultado é a detenção de pessoas inocentes, confundidas pelos algoritmos.

Entre as cidades que abandonaram o uso da tecnologia com essa finalidade estão as estadunidenses Oakland, Califórnia, Massachusetts, Boston e o polo de inovação São Francisco. Os motivos são os mesmos: a ameaça às liberdades individuais que a ferramenta de vigilância representa e seu caráter discriminatório. Também por isso, empresas da tecnologia, como IBM, Microsoft e Amazon, inclusive, deixaram de fornecer softwares de reconhecimento facial para a polícia desde 2020. Na Europa, o Comitê Europeu de Proteção de Dados (EDPB) e a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (EDPS) já recomendaram a proibição do uso do sistema na aplicação da lei. 

Falta de participação popular e insegurança jurídica 

Além da questão do cerceamento de direitos, a falta de transparência da gestão do Recife sobre a política de uso e tratamento dos dados coletados pelas câmeras é outro ponto que Raquel Saraiva critica no empreendimento. “Não tem qualquer explicação sobre uso dos dados pessoais, como isso vai ser operacionalizado dentro dessas câmeras, qual é exatamente a responsabilidade da empresa e a da prefeitura - isso não está delineado. [Falta] transparência no sentido dos questionamentos que a gente está fazendo desde o início dessa campanha e da tentativa de contato com a prefeitura, e que foram incorporados pelos procedimentos do Ministério Público”, afirma.

A pesquisadora lembra que a prefeitura publicou, em 26 de abril, uma Política Municipal de Dados que dispõe sobre o tratamento de informações pessoais dentro da esfera municipal - mas até isso foi feito sem participação popular e, ainda por cima, esbarra na inconstitucionalidade. 


Gestão municipal não tirou o uso de câmeras de reconhecimento facial do projeto de instalação de relógios / Reprodução/ Google Street View

"Foi feito por meio de decreto, sem qualquer escrutínio do legislativo nem discussão com a sociedade civil. A gente entendeu esse movimento como uma forma da prefeitura de respaldar essa coleta de dados. Mas não tem respaldo, porque existe uma questão muito maior nesse processo que é a constitucional. A proteção de dados desde fevereiro é considerada como direito fundamental, a partir da Emenda Constitucional 115. A prefeitura está ignorando [a questão] nesse processo e não existe nenhuma resposta sobre isso”, observa Raquel.

O decreto municipal cria um Conselho Gestor  de  Proteção  de  Dados  Pessoais, à semelhança do que fez a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) a nível federal. A diferença é que o Conselho Nacional de Proteção de Dados é constituído não só por representantes do governo, mas também do judiciário, da sociedade civil, de instituições científicas, do setor laboral, de confederações sindicais e do setor empresarial. “O conselho municipal adota somente órgãos pertencentes à própria prefeitura. Não é multisetorial, o que seria mais democrático”, avalia.

O tempo de concessão da exploração dos relógios é outro ponto que entra no debate. Raquel considera longo demais o prazo de 20 anos, uma vez que não há lei que regulamente o uso de dados dentro da segurança pública.

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“Apesar de a LGPD já estar em vigor, ela excetua aplicação para segurança pública, que seria o objetivo dessas câmeras. Isso ainda está em discussão. Esse prazo vai engessar esse processo. A prefeitura muito provavelmente vai ter que fazer modificação no tratamento de dados devido ao processo legislativo ainda em curso”, pondera.

Protesto continua e prefeitura silencia

Apesar de a licitação já estar em andamento, os movimentos não desistiram de pressionar a prefeitura a retirar as câmeras com reconhecimento facial do projeto dos relógios. Foi lançada a campanha nacional “Sem câmera na minha cara” e seu o braço local oferece uma plataforma que permite ao usuário enviar e-mails, de maneira rápida, cobrando de representantes do município que recuem na proposta. Interessados podem acessá-la através deste link.

O “enviaço” tem como destinatários o prefeito João Campos; o secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Recife, Rafael Dubeux; o secretário executivo de Parcerias Estratégicas do Recife, Thiago Ribeiro; e o secretário executivo de Transformação Digital, Rafael Figueiredo.

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Os responsáveis pela iniciativa são as entidades IP.rec, Anepe, Rede Justiça Criminal, Gajop, Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), Lavits, Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco (Natrape) e Comissã da Advocacia Popular da OAB-PE.

Até a manhã desta segunda-feira (4), mais de 730 pessoas fizeram parte do protesto. Mesmo assim, conta Patrícia Teodósio, não houve nenhuma resposta por parte da gestão municipal. 

Pelo MPPE, o inquérito civil que investiga o viés discriminatório da tecnologia tramita na 7ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital com atuação na Defesa dos Direitos Humanos. O órgão informou que aguarda informações requisitadas pelos entes envolvidos e que há audiências para ocorrer. Já o procedimento preparatório para acompanhar a instalação foi aberto pela 8ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital com atuação na Defesa dos Direitos Humanos e está na fase de agendamentos de audiências.

O que diz a prefeitura

Procurada pelo Brasil de Fato, a Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas do Recife (SEPE) diz que os relógios eletrônicos digitais surgem com o "compromisso de cumprir uma importante função social" e que o projeto foi "inspirado nas melhores práticas nacionais e internacionais". 

"Em relação à possibilidade de utilização da tecnologia de detecção facial, a SEPE endossa que o uso desta funcionalidade está condicionado, pelo próprio edital da concessão, à regulamentação específica para tratamento e uso de dados. Portanto, qualquer utilidade neste sentido somente deverá vigorar após sanção de regulamentação determinada. Em paralelo, ao futuro parceiro privado caberá a responsabilidade restrita apenas de instalação e posterior manutenção e conservação dos 108 equipamentos e suas respectivas funcionalidades, além da exploração comercial de 216 painéis, sem qualquer acesso aos dados pessoais mesmo depois de ocorrida a regulamentação sobre o tema", afirma em nota.

A pasta ainda menciona que as câmeras de videomonitoramento dos relógios eletrônicos digitais vão "auxiliar a gestão municipal nas políticas de controle de tráfego, de monitoramento da evolução do trânsito, bem como no trabalho das forças de segurança, como Polícia Militar e a Guarda Municipal Civil do Recife (GMCR)". 

"Além disso, todos os relógios terão wi-fi gratuito para a população, também viabilizados pela concessionária. E o mais interessante, como o prefeito mencionou, é que se trata de um projeto todo viabilizado totalmente com recursos privados, sem um centavo de gastos públicos. 'Se a gente fosse contratar todos esses serviços separadamente, seriam milhões de reais gastos anualmente pela Prefeitura', explicou o secretário Executivo de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro", cita o texto.

"Por fim, a SEPE informa ainda que no edital está previsto a reserva de 4% dos espaços publicitários para veiculação de informações institucionais do município, durante o contrato. A tecnologia de detecção facial nas câmeras não é aspecto primordial do projeto e visa estritamente ao maior bem-estar da população, estando devidamente disciplinada no edital e respaldada pelas melhores práticas aplicadas num amplo conjunto de cidades avaliadas."

A nota da secretaria dá destaque ao "grande interesse do setor privado" na licitação. "A maior proposta, no valor de R$ 100 milhões, foi apresentada pela Eletromídia, representando um ágio de 2.757% em relação ao valor mínimo estabelecido para participação na licitação, de R$ 3,5 milhões."

"A parceria entre a Prefeitura do Recife e o ente privado, que está em processo de homologação, também inova ao incluir no futuro edital de licitação a obrigatoriedade de requalificação de mais de 7,7 mil metros quadrados de área verde e a criação de 11 novos canteiros com paisagismo, ampliando a cobertura vegetal na cidade, impactando positivamente na conservação e manutenção de áreas e do meio ambiente no município. Além disso, o projeto previa uma outorga mínima de R$ 3,5 milhões para que a Prefeitura do Recife possa investir em obras, além de recursos arrecadados com por meio de Impostos Sobre Serviços (ISS) com a exploração publicitária das placas. Diante disso, a referida concessão vai além do escopo de apenas uma das funcionalidades previstas no projeto, que é a tecnologia de detecção facial."

Edição: Elen Carvalho